LINDO DIA DE SOL

- Sabe? Quando criança, sentia-me profundamente frustrado em ver meus colegas na escola a exibir suas miniaturas de automóvel de marca famosa, ao passo que eu tinha de contentar-me com meus carrinhos de plástico, os únicos que meu pai se dispunha a comprar. Ele considerava uma tolice desperdiçar suas finanças em brinquedos caros. Dizia e repetia para mim e meu irmão que o dinheiro deve ser investido com sapiência. Eu ainda me pergunto, porém, se vale a pena acumular fortuna à custa de prazeres, mesmo se momentâneos, efêmeros. Tudo é passageiro, de qualquer forma.

A voz do rapaz mostra-se calma, pausada, em sintonia com a expressão tranquila do rosto. Narra sua passada frustração com sincera serenidade, sem demonstrar rancor, indiferente ademais ao que deveria ser o atual momento de tensão.

A moça, ao contrário, deixa transparecer sua apreensão. Quase não fala. Seu olhar revela o nervosismo que sente, fruto da sua natural ansiedade e da irritação que lhe provoca o prolongado convívio com seu interlocutor. Aquela fala mansa só faz aumentar seu desconforto. Embora não confie em um desenlace feliz, parece-lhe preferível chegar logo ao final desse relacionamento sem maior perspectiva.

O rapaz continua a falar sem pressa e agora tece comentários sobre o modesto apartamento em que se encontram há tempo suficiente para adquirir ares de uma eternidade.

O imóvel consiste num desses quarto e sala conjugados, cuja dimensão reduzida tende a gerar a impressão de ser ainda mais acanhado. Sufocante, diria a moça, caso lhe viesse o desejo de expressar-se. A cama de casal, embutida numa das paredes, reforça o aspecto de uma prisão conjugal. A pequena mesa de fórmica, encostada a outra parede, serve para trabalhar, fazer refeições, jogar baralho e mil outras finalidades, na opinião do comentarista, que procura extrair da sua minuciosa descrição algum toque de humor ou de inútil filosofia. Trata-se de um móvel tosco e limitado como o restante do espaço que o cerca.

A poltrona em que ele se senta oferece relativo conforto, não obstante o estofamento já irregular, bem como o desgastado tecido, que foi vermelho vivo outrora e atualmente se encontra descolorido, com vários pontos esgarçados, como a suplicar nova roupagem. De resto, a velha poltrona combina quase nada com a outra, defronte, feita de imitação barata de couro, igualmente deteriorado. Em sua diversidade, as duas peças reproduzem, talvez por mero acaso, a ausência de sintonia entre os dois seres que nelas repousam.

Quer dizer, repousa o rapaz, aparentemente. Sua interlocutora permanece inquieta, a ponto de poder detectar-se ligeiro brilho de suor em suas têmporas.

Ela mal ouve o que relata o jovem diante de si. Como ele passou dos móveis às janelas de vidros encardidos e, agora, volta às reminiscências da infância? Conversação interminável, sem sentido. Melhor seria o silêncio absoluto entre ambos. De sua parte, ela bem contribui, evitando o diálogo e meramente estreitando ou arregalando o olhar, ante a pressão maior das palavras que lhe são dirigidas. Mantém a boca hermeticamente cerrada, contudo, como forma de externar sua pretensa frieza no tocante à situação.

Ligeiramente mais jovem do que seu par, angariou, mesmo assim, farta e sofrida experiência quanto aos males da humanidade. Aprendeu, por exemplo, a confiar bem pouco em pessoas de fala mansa, mas de instinto perverso. Mais de uma vez observou cordeiros que se transformaram em lobos. É, não dá para acreditar piamente.

Infenso ao mutismo e ao gélido rosto da menina, o rapaz prossegue em suas divagações. Recorda que, adolescente, aprendera a caçar com um tio e havia superado o temor infantil de causar dano aos animais. O uso de armas de caça aumentou sua auto-estima e deu-lhe maior confiança para enfrentar diferentes desafios, das candidaturas a empregos aos casos de amor (a menção a armas causou imediato calafrio à ouvinte contra a vontade).

O rapaz ensaiou discorrer sobre sua primeira namorada, mas logo mudou de assunto, ao perceber o ar de nítida reprovação estampado no semblante da moça. Pulou para o caso de amor de um ex-colega da universidade e rapidamente passou a outro tema bem distinto, relativo aos problemas de saúde ocasionados pela poluição urbana. Retomou seu discurso sereno e pausado, desfiando histórias do seu conhecimento que permitiam identificar as grandes mudanças ambientais nos mais diversos bairros da cidade.

Cada vez mais aflita por esse desfile de assuntos que não lhe interessavam, a jovem novamente refreou o desejo de mandar calar-se o incômodo companheiro. Evitou fazê-lo, receosa de alguma reação contrária violenta. Afinal de contas, se ele manifestara seu apreço por armas de fogo, recomenda a prudência jamais atiçar a fúria dissimulada.

Enquanto a ladainha do outro enveredava pela necessidade de maior controle sobre as atividades industriais, o celular disposto sobre um banquinho entre ambos mantinha-se mudo. Não vinha a chamada ansiosamente aguardada. Nem ao menos um simples sinal de mensagem interlocutória. O silêncio do aparelho contrastava com o monólogo ininterrupto, acentuando seu efeito negativo.

O rapaz já parecia comprazer-se, aos olhos dela, do drama vivido pela aflita criatura. Na hipótese de recusarem pagar o resgate, tudo terminaria em morte, estúpida e desapiedada. Seria a família insensível a esse ponto?

A situação beira o desespero, mas o rapaz não cessa a cantilena.

Repentinamente, o telefone chama. Acataram o pedido de resgate, que está de posse dos comparsas.

Exultante, a moça empunha a pistola e abate o rapaz com um só tiro. Dinheiro garantido, risco eliminado de incômoda testemunha.

Poderia tê-lo feito sofrer mais. Preferível, no entanto, agir rápido, abandonar a cena do crime e ganhar as ruas, em busca de ar fresco.

Fazia um lindo dia de sol!

Brasília, julho 2023.