Meu Grande Amor do Passado
Havia anos não sentia o movimento de seres humanos. Da poluição em forma de fumaça negra a esvair-se da chaminé de alguma fábrica ou do som louco e estressante dos automóveis em fúria pelas estradas civilizadas. Minha morada, distanciada de tudo e de todos, proporcionava-me a felicidade em forma de paz e de tranquilidade. No mais completo e salutar silêncio passava os meus dias. Mandei reconstruir a frente do salão principal da minha mansão e transformei as paredes frias em amplo painel envidraçado. Nas manhãs de sol podia acompanhar, ainda da cama, a passagem dos raios por sobre as copas das árvores e, ao erguer os olhos da leitura que me entretinha nas primeiras horas, seguia o seu rastro, manso e discreto, até se esparramar nas águas do rio Purus.
Realmente privilegiada era a minha morada. Em volta, havia árvores que, subindo a encosta, faziam pender frutos por sobre o telhado. Quando caiam de maduro, rolavam e se espatifavam no meu jardim frontal, fazendo a festa da passarada. As asas minúsculas e multicoloridas desses pequenos seres fremiam agitadas no deleite matutino e vivaz. Em tempos de chuva, obrigava-me a um recolhimento mais triste e solitário. O frio era intenso nesses dias e eu tinha na lareira uma companhia de horas. Ao lado do fogo crepitante e ameno eu lia, tomava chá ou mesmo dormia enfiado em uma casaca de lã, calças e meias grossas. Com frequência, ao despertar de um sono leve, mas reparador, a noite já havia caído.
Então, levantava-me para as horas que me esperavam. Descansado e leve, tão cedo não veria a cama. Precisava de exercício; aí, andava pela casa a procura do que fazer. A imensidade de minha casa, com seus inúmeros cômodos, chegava a ser para mim uma ilha inabitada. Os quartos de hóspedes, os salões de jogos e outras dependências viviam abandonados. Todavia, as lembranças de épocas gloriosas levavam-me, vez ou outra, ao sótão, onde mitigava em parte a minha solidão, ao contemplar as fotos das grandiosas festas que promovi no passado. Foi numa dessas noites que se iniciou o fato que pretendo narrar.
Era início de primavera. As flores do jardim estavam no auge da beleza e das cores. A mansão fervia de agitação por esta época, pois eu hospedava. O pátio principal abrigava as carruagens que se enfileiravam. Quando delas desciam as lindas donzelas trajando a moda da época – vestidos rodados, luvas de seda e cachecol – arrancando suspiros de admiração, eu podia ver, na fisionomia de seus acompanhantes, a expressão do orgulho e da felicidade. Havia os que chegavam dias antes da festa. A estes eu recepcionava com simpatia e não sem interesse, pois deles provinha alta paga pelo conforto e tratamento especial que recebiam.
Tínhamos nossas refeições na parte de trás da propriedade, cujo amplo e aconchegante espaço, dava lugar não só à longa e ornada mesa com suas trinta cadeiras, mas, e principalmente, aos encantos naturais que eu não poupava de cuidados e melhorias. Ao fundo, a ampla piscina arrebatava o visitante pela beleza de sua decoração. Incrustei de pedras raras as suas bordas, colocadas de forma tal que, a cada hora do dia, a depender da direção em que incidia a luz solar, o efeito variava em diferentes cores sobre a água e, pelo brilho de um refletor que era ligado à noite, a profusão estendia-se ao longo de toda área; o efeito era fascinante e impressionava a todos que ali se encontravam.
Ao lado, o pomar, fervilhante de frutas da estação. De suas árvores procediam as uvas, os mamões, as laranjas, entre outras, que ornavam as bandejas de prata e complementavam nossas fartas refeições. Comíamos sob um caramanchão à frente do pomar. O aroma das orquídeas e dálias que enfeitavam os vasos belamente pendentes e perfilados ao redor da construção confundia-se com o cheiro de assados, saladas e molhos que iam chegando frescos e fumegantes e logo desaparecendo, dando lugar a novas travessas e potes. Os criados não tinham descanso ante a frenética agitação de braços e vozes que requeriam sua atenção. Tudo, porém, na maior educação e cortesia. Taças transbordavam. Garrafas e travessas eram passadas de mão em mão. As damas não perdiam suas posturas. Respondiam, com sorrisos e frases gentis, aos elogios e curiosidades de seus acompanhantes e vizinhos de mesa. Às tardes, tinham vez os passeios pelas redondezas para alguns e, para outros, as conversas nos salões de jogos regadas a vinhos e charutos.
Foi nesse recinto acolhedor da minha herdade que, pela primeira vez, travei contato com Bárbara. Desde sua chegada, três dias atrás, não tivera oportunidade de abordá-la, além dos compromissos formais e da negociação que trouxeram-na até ali. Até então perguntava-me a razão de estar só, sendo tão bonita e simpática. Sua beleza chamava a atenção. A cabeleira loura, sedosa e macia, ia até o meio das costas. Usava óculos escuros e, as poucas vezes em que a vi sem eles, como agora, inebriou-me ante o formato perfeito e graúdo dos seus olhos azuis na face rosada. Sentada num dos bancos altos do bar, apreciava com interesse uma partida de bilhar entre dois de meus convidados. Eu acabara de descer as escadas, vindo do salão principal e, ao vê-la sem companhia, aproximei-me pelo lado interno do bar. Ela tomava vinho. De pernas cruzadas descansava, sobre uma coxa, o braço que segurava a taça abaixo da metade. Estiquei-lhe uma garrafa e ela, de bom grado, aceitou a oferta.
- Está de parabéns. Tem uma bela propriedade − disse, exibindo um lindo e cativante sorriso.
- Tento fazer o melhor para agradar as pessoas que gosto. Profissionalmente falando é a forma que encontrei para unir minha paixão pela música ao prazer de receber.
- Já conheço o seu talento.
- Só poderei dar valor a essas palavras quando me vir atuar.
- Aí é que está. Já o vi reger. Assisti as suas duas apresentações quando em Uberlândia com sua maravilhosa orquestra. Gostei tanto que aqui estou para vê-lo mais uma vez.
- Mas, isto já faz tantos anos! Foi no começo da minha carreira. Como ainda se lembra? Além do mais, não sou um artista famoso, muito menos popular.
- Como me lembro?! Não consegui esquecê-lo, se quer saber a verdade. Não imagina como o procurei. A sua forma de reger uma orquestra, a harmonia dos seus gestos, a leveza de sua batuta; arrebatou-me por completo. Hoje é um dia especial para mim; estou feliz como nunca.
Foi uma noite inesquecível a da minha apresentação e do meu reencontro com Bárbara. Nunca havia sentido com tanta intensidade as notas que cada um dos meus instrumentos emitia. Sua satisfação era evidente no sorriso largo e contagiante; estava ainda mais bela. O agrado foi geral e as opiniões unânimes de que eu havia feito uma apresentação sem igual. Seguiu-se o baile. O salão à meia luz tingiu-se de casais refinados. Os pares dançantes ganharam a noite que se fez curta para tamanho glamour. Dancei com Bárbara; penetrei um pouco mais em sua intimidade e dela me enamorei. Três dias após a despedida da última carruagem ainda a tinha em minha companhia; como amiga, como admiradora e como mulher, principalmente. Que aprendi a amar. E nunca consegui esquecer. Ela retornou outras vezes e as mesmas aventuras vivenciamos. Para mim, cada vez mais intensas e marcantes, até que, um dia, me disse em despedida:
- Não podemos mais. Por favor, não me faça perguntas, apenas tente compreender; um dia conhecerá a minha verdade.
Tantas eram as lembranças em forma de roupas, fotografias e objetos que guardava em meu sótão. Os espaços viviam abarrotados de caixas, tomando toda a extensão da parede e, embutido nesta, um guarda-roupa que, além das oito portas, possuía gavetas e prateleiras. Tudo remetia ao passado, um passado distante, mas vivo e insistente dentro de mim. Penetrar ali era ceder à nostalgia que, não raro, me deprimia. Partituras em folhas amareladas enchiam por completo um dos gavetões. Batutas de todas as cores e modelos viviam espalhadas sobre as prateleiras, contrastando com o dourado das molduras laterais dos espelhos. Os cabides exibiam toda uma variedade de fraques, smokings e outras vestimentas especiais usadas em minhas apresentações. Os troféus que conquistei não os mantinha ali, mas em uma sala especial ao lado do salão de visitas. Porém, muitas das medalhas e condecorações que conquistei ao longo dos anos, guardava-as numa das repartições do grande armário, penduradas lado a lado com minhas adoráveis gravatas importadas, grande sucesso na época em que as usei. Possuo delas uma invejável coleção e o ciúme que tenho não me deixa sequer mostrá-las a alguém.
Perdido na contemplação das fotografias que me transportavam a épocas douradas ficava horas a fio. Meu pensamento voava livre em sonhos para um tempo que não mais voltaria. Contemplava as imagens e, levado pela saudade, deixava às vezes vir um sorriso, outras, uma lágrima ao meu rosto envelhecido. Nas fotos em que me via com Bárbara, demorava-me longamente, como a beber nas taças do tempo o néctar do amor eterno. A visão de sua beleza e juventude pervagava em mim ao ponto do quase hipnotismo, tal eram o meu enlevo e meu encantamento. Numa dessas noites adormeci sobre a poltrona, deixando cair da mão que pendia uma das fotos de Bárbara.
Um canto longínquo de galo anunciou a aurora. As águas do Purus desciam mansas e silenciosas. Em frente a minha propriedade ele fazia uma curva quando seu leito declinava um pouco e daí em diante não mais o via, pois se perdia floresta adentro. Uma voz soou em meus ouvidos, chamando-me repetida e insistentemente pelo nome. Afastei para o lado uma parte do cortinado e olhei a rua. O vidro embaciado não me permitia distinguir o vulto que me sinalizava. Abri a porta e atravessei a varanda. Ao descer os degraus que me levariam até o portão, a poucos metros deste, estanquei pasmado e aturdido. Reconheci, linda e atraente, num longo e formoso vestido branco, a figura de Bárbara. Recorri ao esforço máximo de minhas pernas trementes para não perder os sentidos e ali me deixar cair estatelado. Pois, não encontrei sentido, muito menos, explicação para o que meus olhos estavam testemunhando.
- Aproxime-se! Sou eu mesma, em carne e osso; não tenha medo.
Estas palavras despertaram-me do meu torpor; consegui sair do lugar e, abrindo o portão, chegar até ela.
- Bárbara! Não pode ser você! Não desse jeito.
- Sim! Sou eu, meu amor, do jeito que gostaria de me ver, tenho certeza.
- Mas, não é possível! Eu devo estar sonhando. O que fez?
Bárbara desaparecera de minha vida há pelo menos trinta anos. Tínhamos não mais do que quatro ou cinco anos de diferença um do outro. Logo, se ela tinha trinta e oito ou trinta e nove anos na época em nos vimos pela última vez, devia ter hoje nada menos do que sessenta e três anos de idade. Pelo menos, matematicamente falando, não poderia ser diferente. Contudo, pasmem! Aqueles que agora me leem. A Bárbara que ali estava, diante de mim, era a mais pura imagem do desafio a toda e qualquer ciência, até então, no terreno da lógica e do real. Estava tão jovem e bela como em nosso último encontro; arrisco-me a dizer, ainda mais jovem e ainda mais bela.
- Diga que não é você. É isto alguma brincadeira?
- É claro que não. Como quer que o prove? Pode ser pelo beijo?
Puxou-me suavemente a cabeça e mordeu-me com ternura o lábio inferior, gesto que costumava fazer quando desejava ser beijada e eu retribuía, como sempre fazia.
Fiquei perplexo, não sei se pelo beijo, repleto de recordações, ou se pela desconcertante confirmação. Passou em seguida a falar sobre o passado, trazendo com detalhes, fatos, momentos e conversas que, felizes, vivenciamos.
- Diga-me o que está acontecendo – falei. Ela me pegou pela mão.
- Venha comigo.
Descemos, silenciosos, um pedaço da ruazinha de terra e alcançamos o rio naquele trecho; lento, porém caudaloso e abundante. O som baixo, mas, harmonioso das águas que desfilavam em seu leito, convidava realmente a um passeio. Como que respondendo ao meu desejo secreto, eis que avisto, aproximando-se, uma canoa. Conduzia-a, com remadas lentas e vigorosas, um índio, de pele um tanto avermelhada do sol e de aparência jovem e muito saudável.
- Cunhã, esse é Wagner, de quem falei uma vez.
Olhei curioso para Bárbara antes de cumprimentar o selvagem.
- Venha comigo; tenho algo de que vai gostar – ela disse.
Cedi ao convite. Não me via em condições de opor resistência. Bárbara enfeitiçara-me. Assim, subimos e nos sentamos. Seguimos, a princípio, emudecidos, rio abaixo. Eu desconhecia esta parte da floresta. As margens estreitavam-se à medida que a canoa avançava, ganhando as águas. Surgiu então um igarapé e o índio entrou por ele. Ao fim deste, um imenso lago natural, rodeado por árvores que surgiam fora d’água, expondo galhos desnudos onde cisnes brancos misturavam-se a araras e gaivotas. À nossa chegada, dispersaram-se todos de uma só vez e o céu ganhou ares de festa no ato da debandada. O bater de asas, frenético e assustadiço, quase me ensurdeceu. O índio remou até uma das margens onde havia terra firme. Encostou a canoa. Desceu. Auxiliou-o Bárbara e sinalizou-me a que desembarcasse, também. Caminhamos silenciosos por entre árvores ao longo de trilhas que ele muito bem conhecia.
O frio me fazia tremer. De mãos dadas, caminhávamos atrás do selvagem com muita dificuldade, pois longos e acelerados eram os seus passos. Finalmente, ao virarmos em uma das curvas, avistei o que seria a sua cabana. Era arredondada, de madeira, coberta de palhas da floresta. Tinha o formato de um iglu dos pólos. Vivia ali sozinho, pelo que constatei ao chegarmos. Não tinha muita coisa. Em um dos cantos havia uma esteira onde, provavelmente, dormia. Ao lado, no chão de adobe, uma comprida flauta de bambu, uma espécie de chinela com tranças e alguns colares. Na outra extremidade, um fogareiro à lenha com algumas cuias de madeira sobre ele.
O índio sorveu, de uma das cuias, de forma lenta e quase solene, três goles de um líquido escuro e viscoso. Abriu então um largo sorriso e convidou-nos a sentar com ele na esteira. Sentamo-nos em círculos. Começou a falar num estranho dialeto, olhando-me dentro dos olhos como se para ele eu entendesse cada palavra do que dizia. Para minha surpresa, Bárbara começou a traduzir sua fala. Demonstrava empolgação e um entusiasmo envolvente. A cada explicação de Bárbara ele abria um sorriso de felicidade.
- Não sei até onde posso acreditar no que está me dizendo - eu dizia, bestificado.
- Eu sou a maior prova, como você pode ver - ela respondia. Disse-me que o índio contava agora com a idade de 130 anos e ela já o conhecia há vinte e cinco. Aprendera com ele o dialeto e com ele compartilhava o maravilhoso segredo da juventude eterna. À medida que me dava estas explicações, os olhos do selvagem iam lentamente se fechando até que um sono incontrolável dominou-o por completo. E ele deixou pender a cabeça na mesma posição em que se encontrava. Bárbara ajeitou-o para que melhor se acomodasse.
- É o efeito - disse, enquanto se levantava. Olhei para a cuia que jazia sobre o fogareiro e, em seguida, para Bárbara. Ela, virando-se, deixou a cabana. Calculei este seu gesto como proposital a fim de me deixar sozinho com a poção. Levantei-me. Aproximando-me do vasilhame, vislumbrei o líquido, cujo brilho fustigava-me de um desejo incontrolável. Num gesto vacilante, ergui-o com ambas as mãos, que tremiam. Levei-o até a boca e sorvi um gole. Depois outro. E depois, outro.
O conteúdo desceu, queimando-me a garganta e penetrou no estômago raivosamente como a arrancar-me as entranhas. Subitamente, um torpor desconhecido apoderou-se de mim e eu tive medo. Minha mente tornou-se turva, os pensamentos anuviados. Pensei em Bárbara e, ato contínuo, saí para ter com ela. Estava sentada na grama úmida, de olhos fechados, sobre as pernas entrecruzadas. Meditava
- Bárbara, meu amor – disse, abaixando-me ao seu lado – tomei da poção; o que diz? Estou sentindo algo estranho. Vou ser como vocês?
Ela não respondia e continuava em seu estado contemplativo.
- Responda-me, por favor. Por que não fala comigo? – Abriu os olhos e sorriu. Nunca me pareceu tão linda.
- Você já é um de nós. Mas, durma e esqueça. Aguarde o melhor, que ainda está por vir.
Tonto e encantado por aquelas palavras doces e envolventes, deitei-me ao pé de Bárbara, com a cabeça em seu colo; o sono me dominou.
- Pronto, durma - dizia baixinho, acariciando-me os cabelos. - Torne-se um de nós. Entre em nosso mundo da juventude eterna. Durma …durma … e rejuvenesça. Durma … durma.
A garoa fina e insistente caía lá fora. Os passarinhos festejavam, cheios de vida, a chegada de mais um dia. Fui despertado pelo grito agudo de uma arara. Que rasou pela lateral do sótão e sumiu no horizonte da selva. Doía-me o pescoço pela posição de mau jeito em que agarrei no sono sobre a poltrona. No chão, a me sorrir, a foto de Bárbara. Trazendo-me ao coração, mais uma vez, a doce e eterna saudade. Do seu amor. De sua beleza. Ah! Como eu gostaria que assim ainda fosse!