1173-MORTE INGLÓRIA

MORTE INGLÓRIA

Já na pia batismal a vida dele começou a se complicar.

Dona Maria Imaculada Conceição, fervorosa fiel da Virgem Maria, não só da Imaculada Conceição, como de todas as Virgens Marias, que são muitas, queria batizar o seu quinto filho como Amor de Deus Mirota, sendo o último o sobrenome do marido, pai da criança.

— Este nome não pode. Amor não é nome de gente, inda mais Amor de Deus.

O padre Carmine era fiel depositário das ordens que lhe foram investidas e não permitia que o nome de Deus fosse pronunciado em vão. Foi severo e taxativo:

— Escolham outro!

A mãe, o pai, as madrinhas e os padrinhos e até mesmo o acólito que ajudava na cerimônia assustaram-se com as palavras do reverendo, severas e ditas com demasiada ênfase, que encheram a igreja e talvez tenham sido escutadas até na praça defronte ao templo católico.

Refeitos do susto, começou um murmúrio, em busca de sugestões para um nome diferente.

— Deusdedit...— Sugeriu alguém.

— Alaor.— Sugestão de uma madrinha.

— Não Pode — disse o padre. — Tem o nome de Alá, que é o deus dos muçulmanos.

— Anor, pode ser? - pergunta o pai da criança, que corria o risco de ficar pagã por falta de nome.

A mente ágil de padre Carmine repassou todos os nomes bíblicos começados com a letra a e nada encontrou.

— Sim, pode.

E assim, com um nome único, sem registro em qualquer livro ou documentos no mundo até então, foi batizado Anor de Deus.

Conheci Anor de Deus na segunda série ginasial. Calado sobre sua vida, só muitos meses após, quase no fim do ano, soube que viera de um seminário do norte do Estado. Tinha dezesseis anos, quando a maioria da classe tinha treze ou quatorze anos. Era o mais alto e não conversava muito com os colegas. Durante as horas de estudo (aulas de trabalhos manuais, que não havia professor mas éramos obrigados a ficar em classe, estudando), lia livros que não eram do currículo, de assuntos variados, principalmente de religião e de história. Por isso tornamo-nos amigos, pois eu gostava muito de ler assuntos diversos; história (principalmente a época da Inquisição), passagens da Bíblia ( o Velho Testamento, com textos de difícil compreensão), muita coisa que os Irmãos professores do ginásio, se soubessem, não aprovariam. Eu, católico praticante e que já tinha sido acólito, participando diariamente nas missas da capela do colégio onde estudava, vi logo a preferência de Anor por livros que tratavam de religião.

Não me ocorreu, naquela época, indagar Anor de Deus porque ele gostava daquele tipo de leitura - e de discussões com o Irmão Montefiori nas aulas de religião. Só mais tarde soube que ele frequentara um seminário por três anos, antes de vir para o colégio dos Irmãos Antonianos - o nosso colégio, como dizíamos.

Ao adulterarmo-nos, isto, tornarmos adultos, Anor, que já era ateu e anticlerical, tornou-se comunista.

Ser comunista, na década de 1960, anos da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética era muito perigoso. Significava ser contra o sistema capitalista, com ideias revolucionárias, pregadas por Fidel Castro, ditador de Cuba. Vivia modestamente, pouco saia de casa e raramente era visto na cidade. Vida social, nenhuma. Um ermitão urbano. Mas ativo e constante nas reuniões clandestinas do pequeno grupo de contestadores, que nem chegava a ser de comunistas autênticos, pois não saberiam definir com propriedade o que era o comunismo. Anor de Deus, pelas leituras, era o líder dos contestadores.

Veio o golpe militar de 31 de março de 1964. Anticomunistas na raiz, as primeiras providências dos ditos revolucionários foram a prisão de pessoas suspeitas de serem comunistas. Interrogatórios, torturas, degredo de políticos importantes, perseguições a instituições, num clima de terror.

Anor tinha boas fontes de informação. Ao saber do golpe, tratou logo de comunicar com seus companheiros.

— Vamos debandar, sumir. Ninguém conhece ninguém, é cada um por si. Adeus, camaradas!

Na noite de primeiro de abril, pelas oito e trinta, saiu furtivamente de casa. Estava muito frio e ele vestiu duas calças, duas camisas e um capote grosso, colocou na cabeça um gorro de lã que lhe cobria as orelhas, a testa e a nuca. Nos bolsos, documento de identidade, papeis e lápis para anotações. Nada de livros ou escritos comprometedores. Dirigiu-se ao local chamado de Cruzamento, devido ao viaduto da Estrada de Ferro Mogiana sobre o leito de um ramal de outra ferrovia (a Açucareira). Em lá chegando, subiu no pontilhão de ferro e deitou-se ao lado de fora dos trilhos, estirando-se ao máximo, para não ser visto por alguém que por ali passasse.

Esperando. Noite clara. A lua em crescente subia mansamente pelo ocidente.

O trem Açucareiro, assim chamado porque transportava o açúcar produzido por duas usinas da região, deveria passar ás 22 horas -

A ideia que tinha em mente era pular do pontilhão sobre o trem quando ele passasse debaixo do pontilhão. Agarrado nas saliências do teto do vagão, viajaria clandestino até Campinas e depois até São Paulo, onde desapareceria.

Viu as estrelas, o Cruzeiro do Sul, Marte, Júpiter. Esperando.

Ouviu o apito ao longe da maria-fumaça que puxava a composição. Levantou-se, passou as mãos pelas roupas e postou-se de pé, na beira do pontilhão. A Açucareira resfolegava sonoramente ao aparecer na curva, bem lá embaixo, subindo o trecho.

—Quando passar por baixo do pontilhão, vou saltar sobre o segundo vagão, depois do vagão de lenha, pensou.

A locomotiva soltava fumaça e fagulhas pela chaminé. Apitava loucamente, ao aproximar-se do cruzamento. Anor observava com atenção, aguardando o momento exato para pular.

Estava agitado, pois poderia haver gente do exército até naquele comboio, composto de locomotiva, vagão de lenha, três vagões de carga e um de passageiros.

A locomotiva diminuiu um pouco a velocidade, ao aproximar-se do Cruzamento, conforme ordens e sinais ao longo dos trilhos. A fumaça da chaminé era levada para longe pelo vento frio da noite e não atrapalhou nem um instante a visão de Anor, agora de pé e preparando-se para saltar de cima do pontilhão. Esperou a passagem da locomotiva, do vagão de lenha, e do primeiro vagão de carga. Deu um impulso em si mesmo, esticando as pernas e elevando os braços, como se fosse um herói das histórias de que tanto gostava. A atirou-se no ar. Caiu sobre o teto do vagão como um gato, pés e mão tocando ao mesmo tempo a cobertura lisa e escorregadia. Agarrou-se a uma estreita saliência de metal, que corria por sobre o teto. Encontrou firmeza e deitou-se sobre o teto. Estava firme e sentia o vento frio no rosto, querendo entrar por sob as roupas.

A locomotiva aumentou a velocidade, e o vagão começou a balançar doidamente. Anor apertou as mãos na estreita saliência. Depois do trecho reto, veio uma curva acentuada e as mãos suadas não foram suficientes para manter Anor agarrado. Num tranco do vagão as mãos não aguentaram o peso de Anor, que rolou para fora do teto. Não teve como segurar-se nas laterais e foi atirado ao ar, caindo nas touceiras de erva-cidreira, que eram plantadas ao longo dos trilhos, a uma distância de dois metros, aproximadamente, para evitar a erosão.

Sentiu uma dor aguda que, partindo das pernas, percorreu todo o corpo e foi até o fundo de seu cérebro, donde voltou mais lancinante e se alojou na perna esquerda. Consciente, Anor olhou para o local de onde vinha a dor.

— PUTA QUE PARIU! - gritou, ao ver o osso da canela aparecendo por entre a pele.

O maquinista fez o apito soar duas vezes, como um adeus maldoso a Anor antes de desaparecer na escuridão da noite.

— VAI À MERDA! — Gritou de novo Anor, sem imaginar que suas palavras desapareceriam tão logo saíssem de sua boca.

Não era de dizer palavrões nem amaldiçoar. Mas a queda e a dor lancinante acabaram com seu controle. Impossível saber o que mais lhe deixava descontrolado e com raiva. Tentou levantar-se e não conseguiu. As afiadas folhas da erva-cidreira arranhavam seu rosto. Rolou o corpo para a estreita faixa de terra limpa e lisa. Rolou mais uma vez o corpo - e a cada vez a dor aumentava mais e mais o osso da canela ficava exposto.

Focou alguns minutos quieto, e sentiu um certo alívio da dor na canela quebrada. Um arbusto de tronco mais ou menos reto estava por perto, ao seu alcance, arrastou-se até ele. Às apalpadelas sentiu sua mão esquerda tocar o tronco lenhoso. Em seguida, segurou com a mão direita. Sentiu firmeza. Tentou levantar-se; conseguiu ficar ereto sobre o pé direito. Foi quando sentiu um ardor na garganta, como uma lâmina em brasa cortando o pescoço.

“ “ “ “ “

— Pois é aí como estou lhe dizendo, doutor delegado, já tava aí passando as tramela nas porta e janela da minha casa, tinha chegado tarde e tava cum sono danado. Aí ouvi os apito da maria fumaça quando passa aí pela curva grande, aí mais acima e aí vi um vurto, parecia um home pulando de riba do vagão do trem. Aí suntei um poco e pensei qui era um ladrão e fui pegá a cartucheira, mode preveni de arguma surpresa. Aí quando vortei na porta de casa, vi o vurto dum home impé, segurando naquele pé de barbatimão e aí, pensei, é ladrão e mandei bala. Aí o vurto caiu e fui lá ver. O homem tava estrebuchando e da garganta saia muito sangue. Aí, no que agachei, vi que ele tava morto. Aí pensei, já que tá morto num dianta nada eu incomodá de i na cidade avisá a policia. Amanhã cedo vou lá.

Luiz Rogério, dono do sítio onde Anor morrera, deu o depoimento ao delegado Davanti, que andava atarefado com as diligências de procura e prisões de comunistas e suspeitos de atividades secretas. Mesmo assim, ouviu com paciência o depoimento do sitiante. Quando ele parou de falar , com seus “aís” em cada frase, o delegado chamou um auxiliar e ordenou:

— Cabo, traga o jipe que vamos averiguar as informações do “seu” Rogério.

O sítio ficava próximo da cidade, talvez uma légua, se tanto. Chegaram com o jipe à casa de Rogério e subiram á pé pelo pasto acima. No local do pé de barbatimão, viram o corpo, já infestado por moscas. No céu limpo da manhã, alguns urubus já haviam sentido o cheiro da morte e rodeavam, aguardando o momento de se arremessarem sobre a carcaça.

O cabo, que era antigo no serviço da cadeia, logo identificou o corpo:

— É o Anor de Deus.

— O Anor de Deus? O Senhor tem certeza, cabo?

— Absoluta, doutor delegado.

— Mas nada consta na delegacia sobre ele.

— Sempre foi um cidadão sossegado, tranquilo, quase não saia de casa. - Confirmou o cabo.

— Nem estava na lista de suspeitos que recebi ontem.

— Ladrão não podia ser. Quem sabe, estava fugindo. De alguém... - disse o cabo.na tentativa de esclarecer a morte que já se tornava em um caso misterioso.

O Delegado olhou em volta e para os urubus, lá no alto.

— Talvez estivesse fugindo de alguma situação, algum crime misterioso. —A mente do delegado Davanti, sempre ligada à morte e ao mistério, pensava em mais um caso a resolver.

No final das contas, acabada a histeria anticomunista que avassalou nas autoridades do golpe de 31 de março de 1964, Anor de Deus não constava em nenhum registro policial ou dos arquivos de segurança do Exército.

O Delegado Davanti jamais exprimiu a conclusão a que chegara sua mente arguta:

— Estava fugindo, sim. Se pensava que seria preso como suspeito ou comunista ativo, exagerou na sua importância. Para as autoridades, ele não era suspeito de nada. Sua morte foi uma morte inglória.

ANTONIO ROQUE GOBBO

- o Senhor dos Contos -

Belo Horizonte, 9 de julho de 2022

CONTO Nº 1173 DA SÉRIE INFINITAS HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 16/08/2023
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