O Pátio de Basalto
“E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música” (Friedrich Nietzsche)
A colina de Piemonte guarda um segredo obscuro e incompreensível. Um segredo que foi acessível somente na infância de alguns camponeses. O porquê ninguém sabe.
Antes do trágico acontecimento, os moradores da aldeia de Lascarani não suspeitavam sobre cenas estranhas nem sussurravam segredos antigos, pois viviam rodeados pela calmaria da aldeia, onde os entardeceres eram quentes e dourados.
Ao Sul, atrás dos estábulos dos cavalos e além do campo de trigo, uma imensa floresta dormia tranquila enquanto alguns riachos corriam e se espalhavam como veias. Nascendo no coração de Piemonte, o rio Mezena cortava a floresta e a dividia em duas partes.
Em determinado trecho do rio, onde a vegetação parecia ser propositalmente mais densa, localizava-se, na margem oposta, um grande templo branco de colunas romanas. Bem na sua frente, na parte superior, havia o símbolo de uma harpa envolta por uma cobra cujo significado era desconhecido ou ignorado.
A exuberância da floresta proporcionava uma visão parcial do templo, de forma que, entre arbustos e árvores, só era possível enxergar algumas colunas romanas e o símbolo na parte mais elevada da construção. Os adultos jamais perceberam algo de diferente na enigmática construção do outro lado do rio. Histórias contadas em suas infâncias diziam que aquelas terras não eram para simples camponeses. As tradições orais cumpriram seu papel e o temor pelo templo se manteve por séculos, afastando qualquer curioso ou aventureiro.
Os filhos dos aldeões costumavam colher framboesas próximo ao local onde a vegetação crescia de forma abundante. Enquanto um grupo de crianças colhiam e brincavam em terra firme, as mais travessas subiam nas árvores. Clara, Matteo e Vito, pendurados nos robustos galhos de uma árvore, deliciavam-se com as framboesas ao invés de as depositarem na cesta. Vito sempre tentava manchar o rosto de Matteo usando a ponta dos dedos avermelhadas pelo suco da fruta.
Naquela manhã dourada, o vento dançava entre os ramos produzindo assovios e o farfalhar das folhas tornava o ambiente sonolento. Pinheiros robustos se erguiam nas redondezas projetando sombras amplas sobre a vegetação que parecia descansar abaixo. Os pequenos aldeões sentiam o clima convidativo ao sono. Alguns aceitavam o convite e se permitiam adentravam em mundos oníricos.
A poderosa corrente de ar que descia da grande montanha ao leste, parecia trazer um outro som para compor a doce sinfonia matinal. Timidamente, conduzida pelo vento ou por outras forças desconhecidas, uma música muito distinta daquela produzida pela natureza se fez ouvir. Uma melodia doce que atraiu a atenção das três crianças sobre a árvore.
Posicionados sobre o galho, tinham uma visão privilegiada e procuravam a origem da melodia que vez ou outra se dissipava com o vento até voltar aos seus ouvidos curiosos. Uma forte lufada de ar separou os galhos entrelaçados de duas grandes árvores mais a frente, na outra margem. Desprendendo-se solenemente, abriram uma janela natural para lugares que deveriam permanecer desconhecidos.
Nessa fresta quase mística que fora desvelada, era possível enxergar um espaço nunca visto do templo branco. As colunas coríntias à esquerda já eram bem conhecidas, mas agora, Vito, Chiara e Matteo podiam enxergar um grande pátio circular formado com pedras de basalto. Foi assim que descobriram a origem da melodia sussurrada pelo vento.
O pátio de basalto estava apinhado por notáveis criaturas metade homem, metade animal. Ao som de alaúdes e flautas elas dançavam profanamente. Os faunos de orelhas pontiagudas e chifres curtos, saltitavam frenéticos e em transe. Estavam embebidos em seus mistérios arcanos e faziam curiosas reverências ao obelisco posicionado no centro do pátio. Mesmo de longe, as crianças conseguiram ouvir o ritmo acelerado de cascos em atrito e de bufadas selvagens. Os três pequenos aldeões foram envolvidos na mais completa hipnose e mergulhados nos abismos do tempo e do mito.
Matteo foi o primeiro a descer do galho, os dois amigos o seguiram. Deram as mãos ao redor do tronco da árvore e rodopiaram freneticamente. Sentiam um desejo novo queimar em seus corações. Desejavam se unir aos faunos do outro lado do rio Mezena. Desejavam compor a dança macabra, rodopiar e reverenciar o obelisco ao centro. O largo rio era um obstáculo, mas o trio parecia disposto a alcançar o curioso ritual a todo custo.
Vito já entrava no rio quando foi impedido por outras crianças que notaram sua insanidade. Matteo se esperneou enfurecido quando foi amarrado por duas cordas que suas irmãs usaram para salvá-lo. Infelizmente o grupo não teve tempo de impedir Chiara. Ela correu, alcançou um rochedo mais alto e de lá saltou nas profundezas do Mezena.
A partir daquele dia, não mais se ouviu o som de alaúdes e flautas horrendas. Nenhuma outra criança olhou através de frestas estranhas abertas por árvores na margem do rio. A janela mística fora selada.
Lendas sobre faunos se espalharam na região de Piemonte. Placas de madeira foram pregadas nas árvores da região onde a vegetação crescia misteriosamente alta, pois os aldeões buscavam alertar viajantes e andarilhos que cruzavam as imediações. Muitas gerações comentaram sobre os dois jovens sonâmbulos. Vito e Matteo. Os episódios de sonambulismo se tornaram muito frequentes. Ambos foram encontrados diversas vezes perambulando na floresta, muito além dos campos de trigo. Talvez estivessem à procura de brechas para contemplar mais uma vez o obelisco que os atraíra na infância.