Demônios do dia a dia
Era como uma constante imutável, um estado intrínseco ligado ao ser ou uma correnteza que jamais poderia ir contra. Não estava bem, por vários motivos, e sempre chegava em casa cansada. Aliás, exausta seria a palavra mais adequada para defini-la. Inúmeros eram seus problemas e em sua mente parecia haver um turbilhão, tamanha era a desordem mental em que se encontrava; porém, sem saber como, conseguia se manter firme diante tudo que lhe ocorria, que era como se fosse um novo e permanente normal, que não se recordava quando havia começado em sua vida. Era o estresse do trabalho, por conta da pressão e de alguns colegas indesejáveis; o relacionamento, que parecia ser mais um que iria naufragar; problemas familiares, pois, por mais que optasse por se abster dessa questão, sempre havia os respingos habituais; a vizinhança, que começava a irritá-la por questões rotineiras; o dinheiro, que parecia não dar para nada, suprindo apenas o básico; e claro, o maldito trânsito que enfrentava no abarrotado transporte público, tanto para ir como para voltar do trabalho. Talvez ela pudesse escrever um livro só relatando as coisas que a estava exaurindo. Sabia que boa parte dos seus problemas também eram uma constante na vida da maioria das pessoas, mas só conseguia pensar no seu próprio caso, afinal, como se preocupar ou ajudar alguém quando não se está bem e mal consegue ser o suficiente para si mesma? Era um questionamento frequente que, por mais incomodo que a causasse, lhe trazia certa dose de conforto, pois, assim não poderia se culpar. A rotina maçante não apresentava sinal de melhoras ou até de alguma mudança; e os questionamentos gritavam em sua mente: meu Deus, quando tudo isso irá passar? Se é que vai passar... Será que esses problemas e toda essa correria são, de fato, meu novo normal? Quando é que tudo isso começou?
Em casa após o dia de trabalho, fazia contagem das horas que poderia dormir até ter que despertar de madrugada para começar tudo de novo; e sempre ficando na espera do único, mísero e insuficiente dia de folga para poder descansar. Sempre fazia os afazeres o mais rápido que podia e após fazer uma breve arrumação na casa e a comida que levaria na marmita para o dia seguinte, tomava um banho e, enfim, deitava na cama; onde passava um tempo vendo séries ou interagindo nas redes sociais até pegar no sono. Quase sempre era assim, mas antes de dormir em definitivo, ficava pensando na vida e em como o tempo parecia passar mais rápido que outrora, e tinha a impressão que os dias pareciam estar se comprimindo, não sobrando tempo para a vida fora do trabalho. O cansaço extremo seria por conta de tudo que passava ou teria algo além? Sentia um peso sobre si, como se alguém estivesse montado em suas costas e, muitas vezes, ao longo do dia, fechava os olhos longamente após lutar para mantê-los abertos. Lhe faltava cuidar com afinco do seu lado espiritual? Ela sabia que sim, mas com a sonolência, as luzes apagadas e os pensamentos mergulhados nos problemas, nunca conseguia raciocinar de maneira coerente sobre esse assunto ou qualquer outro que fosse, pois, seu cérebro já entrava em 'modo de descanso' nesses momentos que antecediam o sono. Costumava ficar de bruços, balançando um dos braços para fora da cama até dormir e, às vezes, tocava o chão gelado, que era uma preparação para receber o toque daquelas mãos gélidas pertencentes aos braços esqueléticos que saíam debaixo de sua cama para lhe tocar. Não se importava e nem se assustava, apenas acariciava uma a uma, chegando, em alguns momentos, a entrelaçar seus dedos nos dedos esguios e compridos das mãos gélidas. Ficando assim até dormir em definitivo.
Não estava bem, mas estava ficando bem, afinal, mesmo não podendo afirmar a veracidade do que lhe ocorria pouco antes de dormir, ela estava se acostumando a ter que lidar com os demônios do dia a dia. Será que eram eles que estavam ali tocando nela, fazendo companhia até na hora de dormir, para lembrar que não seria possível se desvencilhar dos problemas? Não saberia responder, mas sabia que tudo o que vivia e a afligia estava sendo o seu novo normal, uma constante que não enxergava soluções para mudar; e parecia que, após muito relutar, aceitaria dançar com os demônios do dia a dia.