O Pomar de ossos #01: Raven
Era uma vez, uma menina chamada Raven. Sua mãe havia morrido no parto e desde então, ela foi criada pelo pai.
Raven sempre foi uma criança solitária e muito quieta. Quando tinha seis anos, o pai a levou para um passeio no parque, mas ela não quis brincar em nenhum brinquedo.
Quando voltavam para casa, passaram em frente à um cemitério muito antigo, que os mais velhos diziam já estar ali muito antes da cidade ser construída.
A menina parou e olhou para o cemitério. As grades estavam enferrujadas, as árvores eram velhas e seus galhos eram secos e retorcidos.
O pai precisou puxar a menina pelas mãos para que pudessem ir embora. Ela foi arrastada pelo pai, mas olhou pra o cemitério até aonde pôde.
A oficina do pai de Raven ficava nos fundos da casa. Ele bebia muito e estava quase sempre bêbado. Numa dessas bebedeiras, ele apagou no banco traseiro de um carro.
Raven aproveitou e saiu de casa. Era fim de tarde e ela seguiu pela estrada que levava ao cemitério.
Por morarem perto do cemitério não possuíam vizinhos, por isso ninguém viu a garotinha sozinha na estrada.
Ela chegou à entrada do cemitério. O imenso portão duplo de ferro da entrada estava fechado, preso por uma grossa corrente com um velho e enferrujado cadeado, porém havia uma folga por onde a menina passou sem dificuldade.
Ela olhou para as imensas árvores com os seus galhos secos. Olhou para um caminho que se perdia entre as arvores e seguiu por ele. Ela não estava com medo.
Ela parou quando escutou o primeiro pio. Era um som estridente, que parecia com o som de galhos secos sendo partidos. Aquilo não assustou a menina, que seguiu na direção do som. À medida em que avançava, ela viu algumas poucas lápides escondidas entre as arvores. Ela ouviu o som de asas batendo e o pio de muitas aves. Ela continuou andando.
Raven chegou numa clareira rodeada de arvores secas. Ela se sentou e esperou.
Após algum tempo, ela ouviu o barulho de asas batendo e o canto fúnebre dos pássaros ao redor da clareira. Estava escurecendo e os galhos secos das arvores contra o céu aos poucos desapareciam.
O barulho cessou de repente. O cemitério ficou no mais absoluto silencio.
E então, nas árvores ao redor da clareira, pequenos pontos luminosos começaram à aparecer. Eles piscavam intensamente como vaga-lumes no meio da noite... mas eram olhos. Milhares de minúsculos olhos incandescente que se abriam e fechavam cada vez mais rápido.
As luzes param de piscar e a escuridão tomou conta da clareira. E então apenas um par de luzes brilhou. Era maior e mais forte do que as todas as outras.
Uma voz rouca soou no meio da noite:
“O que faz aqui no pomar de ossos, criança?”
Ela se levantou e respondeu com voz firme:
- Eu segui as vozes dos pássaros. Elas chamavam o meu nome.
O par de olhos flamejantes piscou na escuridão e disse:
“Você é bem vinda aqui, pequenina.”
Ela acenou com a cabeça. Em resposta, as outras luzes começaram à piscar com rapidez e de repente os corvos bateram as suas asas e levantaram vôo cantando ruidosamente, rumo à noite escura.
Raven voltou para casa e seu pai nem percebeu a sua ausência, pois continuava bêbado e roncava alto no banco de trás do carro na oficina.
Sempre que podia, Raven escapava para o pomar de ossos. Era assim que os corvos chamavam o lugar e ela passou à chama-lo da mesma maneira. As arvores antigas com seus galhos retorcidos, pareciam realmente ossos finos e frágeis.
Raven fez nove anos e passava cada vez mais tempo no pomar de ossos. Certa vez, ela voltou tarde da noite e encontrou o pai bêbado, porém acordado e sentado no sofá.
Ele mandou que ela se sentasse e ela obedeceu. Ele a abraçou. Sua voz era melosa e seu hálito era puro álcool. Ele começou á abraça-la cada vez mais forte e à passar a mão pelo corpo dela.
Raven tentou se soltar, mas o pai era maior e mais forte do que ela. Deitou-a no sofá por cima dela e como a menina se debatia muito, ele deu um soco no rosto dela.
O soco pegou no olho direito de Raven, que viu tudo girar ao seu redor e pedia com voz débil para que o pai parasse. Ele pôs a mão debaixo do vestido dela e tentava arrancar a calcinha da menina.
De repente, o vidro da janela se quebrou e uma revoada de corvos entrou na sala, voando de um lado para o outro. Raven aproveitou a distração do pai com as aves e com as mãos livres, tateou o vazio buscando alguma coisa para usar contra o pai. Achou uma garrafa do lado do sofá. Ela segurou firme e golpeou com toda força a cabeça do pai, que soltou um palavrão e rolou de cima dela para o chão.
Raven saiu correndo de casa. Seu olho ardia e a cabeça latejava. Os corvos saíram pela janela quebrada e se misturaram com a noite.
Ela pegou a estrada para o cemitério, passou pela brecha do portão e desapareceu no pomar de ossos.
Ninguém nunca mais a viu.
Denis, Dreamaker
07/10/2008-02:37
NDA.: Este conto foi escrito entre as 00:00 e 02:38.
A história de Raven é triste e não tem final feliz... é um final misterioso.
O cemitério que descrevo no conto, é uma homenagem ao filme “Cemitério maldito”.
O Termo “Pomar de ossos”, foi retirado de uma das histórias de Sandman, de Neil Gaiman e é citada apenas uma vez num pequeno quadro. Aí, eu pensei “caramba, pomar de ossos é um lugar muito legal e um puta nome para uma história”. “Como é que o Neil Gaiman deixou passar esta?”.
Já estou com isso na cabeça à um bom tempo e hoje, não sei por que, aconteceu... tudo o mais foi surpresa para mim, até a Raven. Eu ia usar o nome Rita (eu usei esse nome na primeira linha e apenas uma vez), mas quando surgiu a idéia dos corvos, me lembrei que Raven em Inglês se traduz como corvo... aí, não teve jeito, não é?
Um dia retornarei ao pomar de ossos... ou tentarei contar as desventuras de Raven, quem sabe?
Até a próxima.
Denis, O Dreamaker
07/10/2008-02:51
ra.ven.1
n Orn. corvo. // adj da cor do corvo, negro, preto.
A série "O pomar de ossos", conta com os seguintes títulos até o presente dia:
O pomar de ossos # 01: Raven
O Pomar de ossos # 02: Magpie
O pomar de ossos # 03: Interlúdio #01: Ritos de passagem
O pomar de ossos # 04: Interlúdio #02: Ecos
O pomar de ossos #05: Interlúdio #03: As histórias que as pessoas contam
Copyright © 2008 by Denis “Dreamaker”.
Confiram outros textos inéditos de minha autoria no meu Blog Terra dos Sonhos (http://sonhosdesperto.blogspot.com):
Eu me dou o direito (Poesia)
Rita Lee (Indriso em homenagem a Rainha Rock 'N' Roll nacional)
Arrependimento (Micro conto)
“Decifra-me ou devore-te” (Mensagem/Pensamento)
Música & Letra Especial: Mulher
Depois do ato consumado... (Poesia)
Somos livres? (Poesia)
The Last Remaining Light (A Última Luz Restante) (Mensagem)
A tempestade (Conto)
Andar na chuva... (Poesia)
Uma carta para as estrelas... (Carta)
Seu nome é Gal (Versão 2) (Indriso)
Zero Hora (A hora morta)
Amigo... (Mensagem)
Who cares? (Quem se importa?) (Poesia)
Aceitações (Pensamentos)
Dia 19 de Abril – Dia do Índio
Música & Letra #01: Viajante (Ney Matogrosso)
Aonde está você agora? (Again) (Poesia)
O pacto das sombras (Conto)
Quem foi que disse que a tristeza não sorri? (Poesia)
... apenas um menino perdido... (Microconto)
Conte-me uma história (Indriso)