Reencarnação

Nunca acreditei na ideia em que o nosso universo tem um arquiteto. Embora respeitasse as opiniões, às vezes me pegava pensando quem estava aqui antes do arquiteto, na imensidão do nada. O meu ceticísmo não parava por aí. Para mim a morte é o fim da linha, é voltar para o que éramos antes do nascimento. Ser nada, ser alguém e ser o nada. A reencarnação também era algo que estava fora de cogitação. Morrer e voltar no corpo de outra pessoa para mim era coisa de doido. E por quase toda minha vida, ouvia pessoas dizendo que no leito da morte, um flashback passaria por nossas cabeças daquilo que fizemos em vida. Está ai uma coisa que eu já tinha certa crença, mas depois do que me aconteceu, até quando eu existia, toda a minha concepção e conhecimento mudara.

Pois é, o tal flashback veio no exato momento em que eu estava morrendo. Até então não me fazia sentido estas lembranças, mas quando fui pego de surpresa, a dor de cabeça que eu estava sentindo deixou tudo mais claro. Mas antes do flashback, antes mesmo que a morte chegasse e a vida persistisse por um fio, eu lembrei de estar lavando o carro na porta de casa, no encostamento da calçada. Meu Ford estava todo empoeirado com o tal fosfato de monoamônico, aquele encontrado nos extintores de incêndio. Tudo começou la na empresa onde trabalhava. O pessoal do corpo de bombeiros dava um treinamento no pátio do estacionamento, e no final da tarde todos os carros estavam brancos por causa do fosfato. No fim do expediente, eu olhava pro meu veículo pensando em dar uma boa lavada ao chegar em casa. Foi aí que por volta das dezoito e meia, horário esse que eu já tinha chegado em casa, trocado de roupa e botado a mangueira para derramar água na calçada, me veio a ideia de limpar primeiramente os pneus. Lembro de estar agachado com o escovão no pneu traseiro esquerdo, a parte do carro que se encontrava para a rua, e foi então que escutei um barulho vindo em minha direção. O cara do chevrolet deve ter começado a queimar os pneus a mais ou menos os dez metros de onde eu estava. A pancada foi certeira.

Tenho poucas lembranças do acidente, mas lembro que voei por cima do para-brisa do chevrolet. Lembro-me também de estar no hospital e escutado vozes dizendo: — ele fraturou a coluna e tem um afundamento do lado esquerdo na cabeça. E ai tudo ficou escuro demais, o flashback veio de imediato, de quando eu era criança, de ter passeado no primeiro carro do meu pai, de quando eu e meu irmão ficávamos no fundo do quintal deitado debaixo das mangueiras e de correr quando o avião passava. Naquela época tínhamos medo do avião. Então fui levado as escadas mais altas do ginásio da escola que estudava, onde passava o tempo me divertindo com colegas da sala de aula. Vi todas as meninas mais bonitas que me apaixonei na escola. Senti novamente as surras que minha mãe me dava e todas as peraltices que fazia com meus dois irmãos. Passei pelos campinhos de futebol que eu adorava, das pipas no céu até as bolas de gudes que jogava com minha tia. Visualizei os rostos de todos os meus colegas durante o período escolar e de todos aqueles que eram meus vizinhos. Da minha formação até meu primeiro emprego, da minha filha e esposa, dos familiares vivos e mortos até o bendito Ford vermelho. Entre tantas alegrias e tristezas uma luz bem forte se abriu no meio daquela escuridão e se postou bem no alto de minha cabeça. E então pude passar para um novo plano de vida.

Aquela luz forte me carregou até um túnel comprido no nada. A velocidade do transpor era absurdamente rápida. Parecia uma viagem por um longo tobogã de piscina, mas com um desfecho espacial. Agora estava eu olhando para os astros mais belos do infinito. Eu podia respirar no espaço, eu podia voar, me locomover naquela escuridão estrelada. Eu vi de perto a nossa lua e todas suas crateras. Eu vi também a estrela sirius e sua irmã, isso a oito mil anos luzes da terra. A constelação de Órion e tantas outras. Eu fiquei diante do sol, eu enxerguei de perto os planetas da via láctea: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, o belíssimo Saturno, Urano e Netuno. Vi também outros planetas do qual não saberia dizer o nome. Conheci no espaço sideral tudo o que há de mais belo incluindo galáxias distantes, como Andrómeda e a ursa maior.

Enquanto admirava toda a beldade do universo na minha pós morte, notei que um cometa de calda luminosa esverdeada se aproximava do meu espectro. Fui puxado para dentro daquele cometa. Ali dentro daquele fragmento de rocha a minha alma tomou uma forma fetal viajante no infinito. E depois de alguns segundos, o cometa colocou-me frente a frente com um dos mais belos planetas que conhecemos. “Terra, o planeta água”. Os meus olhos ficaram fixos naquela bola azul e logo o meu quase corpo flutuante foi levado para aquele quarto de hospital, onde eu repousava em coma profundo. Aquele ano era 2002, os médicos lamentavam qualquer possibilidade de vida. E foi ali a minha primeira morte.

Agora aqui estou eu, já quase desistindo da vida, sem movimentos e quase sem respirar direito. Estou no meio da consciência e o inconsciente. A dor de cabeça ainda é de latejar. Cambaleando por entre um rio ao chegar nas margens, o escondido da mata nos aguarda silenciosamente para um banquete apetitoso. Ainda irei de me lembrar desse momento desesperador e de quando aquele cometa me enviou para terra em forma de um ser das águas. Irei me lembrar de tudo isso quem sabe numa próxima vida. O fato é que estou morrendo, e vejo uma luz se abrindo no meio da escuridão. Mas quem aguenta, estou eu com as presas do maior felino das Américas cravada em meu pescoço. O meu crânio está rachado como da outra vez que morri. Naquele mesmo ano que fui atropelado, a minha reencarnação veio em forma de crocodilianos de água doce do rio amazonas.