UM LOUCO NO APARTAMENTO
Veio gradativamente, pingos d'água ralos que se transformaram em chuva torrencial a pouco e pouco, e foi tomando de conta. Devagar, mas constante. Assenhorando-se de corpo, alma e mente, os quais passou a governar. Primeiro a estranheza incômoda, gritos repentinos e sussuros vindos dalém imaginação, a seguir o esquecimento da própria humanidade. Num crescendo.
A solidão certamente foi a grande aliada da desagradável mudança. Jamais o deveriam ter deixado sozinho, abandonado naquele apartamento silencioso. Por anos e anos, dias e noites enclausurado no denso universo dos pensamentos, desejos e sonhos, tudo ao seu redor foi tomando diferentes formas, contornos e significados.
O lindo mundo que lhe fora outrora caiu, rolou ladeira abaixo e ficou de bruços. Inerte, mero peso morto. Distante. Ele nele sozinho, molambo velho, simples traste, um lixo poder-se-ia dizer. Nada mais. Logrou por um tempo esquivar-se do abismo final cantando melodias de sua preferência, lendo em voz alta, dançando com o cabo da vassoura à guisa de parceira e falando diante do espelho com o intuito de ouvir a voz humana. Cansava e até doía abster-se de interlocutores. Ouvir a própria voz, contudo, passou a ser insuficiente com a continuação da jornada solitária.
Daí a ter pesadelos, ouvir vozes absurdas, esquecer o fogão aceso por instantes enquanto a lucidez ia e vinha, foi um passo. Se antes varria o apartamento, passava pano no piso, arrumava as coisas em seus devidos lugares, punha as roupas sujas na máquina de lavar, preparava as refeições diárias e lavava as louças, ignorou alguns desses afazeres de vez em quando, depois todos, jogado no vão obscuro e vazio da mente esfacelada.
A amargura uniu-se à carência, veio o terror da realidade do abandono, a percepção da indiferença monstruosa geral, a falta de uma palavra amiga e dos abraços de antes, do amor que conhecia e desfrutou, a rotina perigosa e, por fim, a loucura. Enlouquecer lhe pareceu transpor-se para nova e delirante realidade; sair da roda viva sassariqueira; mergulhar na vastidão do desconhecido; caminhar na desproporcionalidade da razão; morrer para o ontem.