KOI 2
Atenção!!
leia este conto apenas se tiver lido "KOI 1".
— Achei umas conchas hoje mais cedo, quando caminhei pela praia — passo os dedos na superfície lisa e calcificada. — Pode ficar com elas.
Rita, a primeira garota a falar na reunião da tarde anterior, pega as cinco conchas e as admira.
— Disse que seu pai colecionava, ontem.
Ela balança a cabeça e suspira.
— Não sei quem é meu pai, nem de onde vim. Sei só o que Ohana me contou hoje cedo, mas isso pode ser a história de qualquer pessoa.
Assinto, sentado na grama, perdurando aquela manhã pelo máximo que eu posso. Consigo ver Derek e Spencer atrás de Rita, tentando derrubar a manga da árvore. É curioso que ela não pareça nota-los.
— Fiquei pensando no que posso ter dito a ele quando brigamos. Talvez tenha dito algo errado. Queria poder fazer melhor.
— Mesmo sem fazer ideia de quem ele seja?
Rita balança a cabeça e fita a margem.
— O que acontece se eu mergulhar?
— Você nunca mais volta.
— Mesmo que eu saiba nadar?
Eu rio.
— Ninguém se lembra de como nadar. E mesmo que alguém soubesse, essas águas, elas fazem coisas. Elas puxam você para o mais fundo possível.
Rita tremeu.
— Alguém aqui já...
Balanço a cabeça positivamente.
— Muitos tentaram um tempo atrás, mas ninguém sabia o que acontecia com eles, de forma que o medo impediu que outros tentassem.
Rita continua a olhar as ondas com uma curiosa fixação. Penso que ela pode estar assustada e propensa a fazer alguma besteira, portanto a convido a ficar em meu trailer por alguns dias. Ela é uma garota simpática e educada. Me faz lembrar de alguém, mas não consigo ir além disso. É como se houvesse névoa em minha cabeça encobrindo qualquer lembrança.
Passo por Aaron e Ann quando começo a correr pela praia; ele recolhe os equipamentos de pesca e ela o ajuda a guardar tudo com um olhar otimista nos olhos. Mais uma manhã sem que um peixe morda a isca. Eu continuo correndo, olho para a areia e sinto algum tipo de lampejo que até então não havia sentido. Começa como um desconforto atrás dos olhos, uma coceira que se alastra até a ponta do meu nariz e de repente tenho vontade de espirrar.
Ninguém fica doente na margem, o que me faz ter aquela mesma estranheza. O sol está parado no mesmo lugar, e lá ficará até que eu volte ao trailer para uma xícara de café, mas hoje é sexta-feira e quero aproveitar o máximo de cada instante do dia. Entro na verdejante floresta e corro sobre as raízes, passo por baixo de cipós, estendidos nos galhos como minhocas, e me aproximo do que parece ser o som de uma cachoeira.
De imediato, sinto frio e sei o que significa. Peter White está aqui, com um grupo de pessoas. Dentre eles estão: Kacey, Mike, Derek, Cinthia e David. Todos usando roupas de baixo e prontos para mergulhar no rio.
— Ei, procurei por você no trailer e não te vi — Peter se aproxima e eu apenas sorrio.
Meu sorriso é diferente do dele; é tímido e discreto, já o dele, é radiante e ofuscante. Imagino que ele possa sentir algo por mim que eu não saiba o que é, aquilo me faz ter outro lampejo.
— Vocês não têm medo de se afogar? — é tudo que digo.
— O rio é bem raso — avisa Kacey, soltando seus cabelos negros e cacheados.
Minha testa se curva e isso deixa Peter intrigado.
— O que foi?
— Nada. Só é conveniente que haja um rio aqui, quando não podemos entrar no mar, não acha?
Ele entorta a cabeça de lado e dá um sorriso tenso.
— Calma. Você não deveria estar questionando assim, sabe disso.
Minha cabeça fica embaralhada e uma leve pontada e minhas têmporas me devolve ao lugar onde devia estar. Eu sorrio.
— Ótimo — Peter abre o mesmo sorriso radiante. — Aceita mergulhar com a gente? Podemos ficar o tempo que quisermos.
Na verdade, quero retornar para os trailers e conversar com Rita. Talvez seja hora de um café e pular para a parte em que sigo para a reunião do dia, mas algo nos olhos de Peter me faz querer ficar.
— Meredith e Kane estavam brigando de novo — Kacey conversa com uma garota, ambas deitadas sobre uma pedra, recebendo a luz do sol em seus corpos.
— Eles brigam todas as manhãs, já repararam?
— Bizarro, quando ele veio para cá, lembro de Ohana ter dito que ele era um assassino, mas ela omitiu isso dele no dia seguinte.
— É sério? — David se inclina de dentro da água cristalina.
— Sim, ela disse que era melhor omitir certas coisas dos novos membros, para evitar problemas.
— Ela deve ficar sabendo de muita coisa, não é? — Derek me cutuca. — Você vai a todas as reuniões, também deve ouvir as histórias.
— Ouço boa parte delas, sim, mas tento esquecer a maioria. Eles trazem muita dor.
Kacey me observa.
— Alguma vez já se perguntou?
— O que?
— O que é este lugar e o que fazemos aqui?
Eu nego e aquilo me parece uma mentira. Olho para a cachoeira e as águas me parecem estranhas. Derek e David brincam de jogar água um no outro quando decido sair. As garotas dormem em suas pedras enquanto as águas do rio se recusam a secar sobre suas peles. Tento me afastar de volta para o acampamento, mas fica frio de repente e vejo que ele está comigo.
— Não precisa me acompanhar, pode ficar com eles.
Peter sacode a cabeça.
— Não quero que ande sozinho pela floresta.
Eu rio.
— O que pode acontecer?
— Não sei, mas prefiro me prevenir. É um dos meus poucos amigos aqui. Não quero perde-lo.
— Perder para o que?
Peter olha para as folhas nos galhos e se silencia.
— Eu só... acho que nunca tive com quem conversar antes disso.
Fico calado, ele me olha de repente e sinto a temperatura voltar a cair.
— Existem centenas de pessoas aqui, no acampamento. Tem muito mais gente pra conversar.
Entro no trailer. Rita está de frente para a pia e enche um copo com água corrente. A água escorre por seus dedos.
— Aquele homem pesca todas as manhãs?
— Aaron? — digo. — É, ele tenta pescar, mas nunca pega nada.
Rita sorri para a água como se soubesse de algo que eu não sei. Caminho para a cafeteira e respiro fundo. Quando a xícara está vazia, consigo ouvir o som da discussão entre Meredith e Kane, o entardecer se aproxima. A caminho da reunião, vejo Ohana reunir um grupo de quinze pessoas ao redor da campina, mas dessa vez há algo errado. O grupo está muito próximo dela e há rostos conhecidos do acampamento, que geralmente não estão ali. Eles tentam conter uma pessoa que se agarra a ela, uma garota de cabelos negros e pele rosada, a recém-chegada segura o vestido de Ohana como se estivesse prestes a cair de um penhasco. Ela suplica para ir embora.
— Por favor, por favor, não... eu preciso voltar, meu filho, ele acabou de fazer um ano, ele estava comigo quando...
Ela soluça e cai de joelhos. Ohana se abaixa, envolve os ombros da garota em um abraço, e em seguida, olha para os membros do acampamento.
— Vamos leva-la até a cachoeira.
Estremeço. Por um breve instante penso em dar meia volta e retornar ao meu trailer, mas sei que se fizer isso o anoitecer não chegará. Preciso ter um tipo de contato com os novos membros para que aconteça. E mesmo não tendo ideia do que Ohana pretende em uma cachoeira, me esgueiro pelos arbustos e os sigo. Ela guia a garota, amparada por dois homens; eu os conheço, são Billy Hall e Matt Bryce, membros tão antigos quanto Ohana. Ambos vivem em trailers afastados, longe do acampamento. Possuem a mesma idade, trinta e quatro, barbas longas e negras abaixo do rosto cansado e severo.
Os quatro caminham por uma trilha verde com inúmeros pássaros assobiando. Logo seu assobio se torna inaudível, ofuscado pelo som da cachoeira que é familiar para mim. É o mesmo lugar misterioso em que estivera poucas horas atrás. Desta vez, estamos no alto, Ohana se aproxima da borda e olha para o rio, mas desta vez ele está diferente. Me inclino para fora de meu arbusto para me assustar com uma profundidade hedionda de águas negras e raivosas, elas se sacodem criando ondulações como as ondas sedentas do mar.
— O que estamos fazendo aqui? — a garota se encolhe, mas Billy e Matt a tem sob seu controle.
— Em geral, eu tentaria acalmá-la. Faria de tudo para que se sentisse mais confortável e esperaria até o dia seguinte, mas as coisas estão ficando estranhas e recebi novas instruções para quando esse tipo de coisa ocorresse.
Ohana caminha para perto da garota e a envolve com seus braços.
— Vamos para a borda, quer ver seu filho, não quer?
A garota assente.
— Como ele se chama?
As duas caminham para a cachoeira.
— Henrique.
— Lindo nome, e você?
— Erika.
— Pois bem, Erika, olhe para baixo e respire fundo, não vai demorar.
A garota permanece na ponta do rochedo e espera, com os olhos fixos no rio. Olho para baixo e vejo as ondas começarem a correr em círculos. Erika se inclina e pisca várias vezes. Ohana se afasta com seus homens e espera que aconteça. Meus olhos, ainda fixos na água, veem as ondas se abrirem revelando que há mais do que apenas água naquele lugar. De repente há dentes no rio. Longos e pontiagudos, se abrem ao redor de todo o círculo e aguardam que sua presa caia. Como uma aranha esperando pela mosca em sua teia.
Erika sorri, o brilho das águas reflete em seus olhos e suas lágrimas são as primeiras a caírem, seguidas dela, que mergulha para a boca da carpa, que emerge do rio e salta em seu encontro. O peixe Koi respinga água de sua calda ao saltar em um arco. Abocanha Erika no ar e volta a mergulhar. Suas escamas, vermelhas e brancas, refletem a luz em meus olhos e eu preciso fecha-los. Quando os abro, o rio volta a ser raso e cristalino.
Ohana chega à campina pouco depois de mim. Ainda estou tenso e descrente do que vi, mas tento manter a calma. Assisto a reunião, ouço as histórias e então cumprimento os novos membros para finalizar a tarde. A noite chega e hoje não há fogueira, não há Peter na minha porta. Decido permanecer na cama, vejo Rita deitada no outro lado do trailer, ela dorme serenamente. Penso em fazer o mesmo e esperar que o dia seguinte nasça.
O som de suas lágrimas e de seus gritos me fazem pular sobre a cama, imediatamente me sento e a vejo, encolhida em sua cama.
— Rita — me arrasto pelo chão e me ajoelho diante dela.
Ela soluça quando toco seus ombros.
— Eu estava sonhando — disse entre lágrimas. — Tinha um homem e uma criança. Eu não sei quem são, mas eles sorriam para mim e eu senti meu coração apertar.
Rita esconde o rosto enquanto chora e soluça. Instintivamente, a abraço.
— Ninguém sonha aqui — sussurro.
Ouço o som do trovão ofuscando as lágrimas de Rita e vejo uma chuva repentina cair sobre o acampamento. As lágrimas de Rita escorrem enquanto as gotas de chuva congelam em minha janela.