Koi

Meu trailer é o 364. Vermelho, da cor do sangue, tem uns cinco metros, assim como todos da fileira principal e os das fileiras laterais. Há uma porta amarela sobre dois degraus de madeira azuis, e as janelas, são verdes como a grama úmida que ladeia as trilhas. É estranho, apesar de cada trailer possuir um tipo diferente de coloração, não me lembro de gostar das cores do meu.

Eu acordo todas as manhãs com o som da agulha do meu vizinho. Samuel é tatuador, e ele faz uma tatuagem nova em seu corpo ao nascer de cada dia. Ele é meu despertador, avisa o exato momento em que os primeiros feixes de luz tocam as ondas do mar.

Estico os braços, olho o teto cinza, depois me sento sobre o colchão branco. Há uma pia com uma cafeteira, mas não tenho inclinação para um café forte naquele horário. Ao invés disso, deixo a água morna do chuveiro de metal cair sobre meus ombros pelos próximos cinco minutos e então saio, ainda molhado e envolto numa toalha preta. Escolho roupas coloridas, as que combinam melhor com a estação em que estamos e deixo o trailer, ainda com os cabelos úmidos.

Vou à margem, onde posso ver Aaron Brocke lançando sua linha de pesca no mar. Ele faz aquilo todos os dias, insistentemente, mas nenhum peixe nunca morde sua isca. Ele volta para seu trailer com as mãos vazias e retorna na manhã seguinte. Dia após dia, com o apoio de sua esposa, Ann Brocke, que se limita a ficar sentada na areia, pois não tem coragem de pisar na jangada improvisada pelo marido e ir além da costa com ele.

Depois de correr pela areia, me aproximo da trilha e vejo Spencer e Derek, os dois eram amigos antes e continuaram sendo depois. O tipo de amizade que sei que não existe para mim, mas existe pra eles. Ambos tentam derrubar a mesma manga, da mesma árvore, todas as manhãs. Ao acenar para eles, corro pela trilha, dando voltas pelo perímetro, e volto para a fileira principal de trailers, onde vejo o último rosto que vejo pelas manhãs.

O de Peter White. O garoto de pele branca como algodão e cabelos cor de areia está na frente do meu trailer, pegando uma bola de beisebol que o irmão mais novo rebateu longe demais, todas as vezes em que retorno. É engraçado, mas este homem fica com a pele levemente avermelhada sempre que me vê. Talvez eu o assuste ou... bom... não sei, mas ele também gagueja e tenta alimentar uma conversa que nunca vai muito longe. Não sei o que significa, mas é a melhor parte da minha manhã. Sempre é.

— Está bem quente hoje — Peter diz movendo a bola de beisebol de um lado para o outro nas mãos.

— Sim, está — sorrio tentando expressar animação. — Joseph rebateu forte demais de novo?

— Sim, ainda estamos trabalhando isso, devia ir nos ver, qualquer hora.

Eu assinto.

— Sim, talvez. Se encontrar um tempo na minha agenda.

Peter apoia as mãos na cintura e franze a testa.

— Muitos afazeres no seu trailer? Eu posso ajudar, caso queira.

— É eu queria mudar minha pia pra mais perto da mesa, pra entre ela e a geladeira, mas eu não sei mexer no encanamento.

Ele sorriu e ergue a mão.

— Eu sei, meu pai era encanador.

Os olhos de Peter de repente ficam vazios e nebulosos.

— O que foi?

— Não sei, meu pai, ele... não o vejo faz muito tempo. Nem sei como me lembrei disso.

Eu me aproximo com cumplicidade.

— Também não me lembro de muita coisa.

Estamos dentro do meu trailer, instantes depois, e Peter parece realmente saber o que faz. Ele possui uma maleta de ferramentas e usa algumas delas para separar a tubulação, e desviar parte dela por trás da minha geladeira até estar entre ela e mesa. Depois, com minha ajuda, movemos a pia e o gabinete, encaixando o encanamento novamente.

— Então, você vai à reunião na fogueira hoje à noite? — Ele pergunta enquanto abre as torneiras e testa se não há vazamentos.

— Acho que sim, antes tenho que ir à reunião de novos membros.

Os olhos de esmeralda de Peter se desviaram para mim.

— E você vai falar alguma coisa?

Dei de ombros.

— Nunca digo nada, não tenho motivos.

Ele balança a cabeça.

— Bom, tenta dar uma passada mais tarde. Kacey vai assar marshmallows.

A manhã termina logo após eu terminar de tomar o café da xícara. É curioso que eu possa fazer com as manhãs durem horas, até dias, desde que eu fique longe da cafeteira. Mas de repente, ao colocar a xícara na pia, já é meio-dia e a reunião está começando.

Desta vez, Aaron e Ann Brocke estão próximos ao último trailer da fileira. Eles tentam apaziguar uma briga entre Meredith e Kane, ambos casados, e sempre discutem sobre as coisas mais simples, mas também amam um ao outro pelas mesmas coisas. Eu aceno e sigo para longe dos trailers, para o mais longe que se pode ir sem que o chão comece a congelar. Ali há uma clareira, onde cadeiras de madeira são posicionadas em um círculo, umas de frente para as outras, sob um sol morno e aconchegante. Novos rostos se sentam naquela clareira todas as tardes. No centro, ela fica de pé.

Ohana Flint, a mais velha do acampamento; a primeira a estar na margem. Ela os ouve, preservava suas memórias mais recentes, pois em breve, elas desaparecem. A maioria daquelas pessoas sequer vai se lembrar o nome ou o de seus pais até a manhã seguinte e precisarão da ajuda de Ohana para se lembrar de tudo.

Na margem, só se esquece uma vez.

— Saudações, eu sou Ohana Flint — a mulher de cabelos cinzentos diz sorrindo para as vinte pessoas ao redor dela. Eu me sento atrás, não quero causar estranheza nem atrapalhar a imersão deles. — Estou no acampamento faz um bom tempo. Tempo suficiente para saber que suas cabeças estarão limpas ao amanhecer. Caberá a mim lhes dizer quem são. Gostaria que me dissessem mais sobre vocês.

Ohana olha para a pessoa mais próxima, uma mulher de óculos redondos, pele preta e cabelos ondulados ao redor do rosto jovem.

— Você, minha jovem, como se chama?

— Rita — diz ela com uma voz trêmula.

— Bem-vinda à margem, Rita. Me diga, do que se lembra?

A garota soluça e olha os outros. Todos no mesmo estado que ela.

— Eu jantava com amigos da faculdade. Estávamos na sobremesa quando alguém entrou no restaurante. Eu me lembro de sentir um cheiro salgado de peixe fresco.

Minha testa se curva.

— Ele caminhou pelo salão até bater um punho na minha mesa. De repente, eu estava deitada na areia, com o corpo molhado e com a garganta seca.

Rita abraçou a si mesma.

— Meu pai e eu tínhamos brigado por que eu decidi mudar de curso. Não ia ser médica, como ele e minha falecida mãe sonharam.

— E o que você quer ser?

— Chefe de cozinha, mas ele detestava isso.

Rita prossegue. Vejo Ohana perguntar sobre tudo que a garota amava em sua família e amigos. Faz questão de gravar cada detalhe para poder lembra-la no dia seguinte. Depois disso, ela passa para outra pessoa.

— Eu estava sozinho em casa — o homem grisalho sentado na cadeira ao lado diz. — Chovia e eu também senti o cheiro de peixe e sal, mas também senti frio e vi as gotas de chuva congelarem na janela e na soleira da minha porta quando ele entrou.

— E depois disso?

— Eu acordava na margem, ouvi o som de escamas e então, adormeci mais uma vez.

Ohana se repete com este homem e com todos os outros. Ela nota minha presença discreta, mas não me pressiona a dizer nada, embora eu seja uma das poucas pessoas que se lembra de alguma coisa mais concreta.

— Tudo bem com você? — ela se aproxima solenemente de mim assim que seus ajudantes, todos vestidos de branco, vem para pegar o grupo e leva-los para os novos trailers, que de repente surgem no acampamento, onde antes haviam apenas árvores.

— Sim, nada de diferente no meu dia até aqui — digo tranquilo. — É um número maior do que o de ontem.

Ohana olha para eles e acena com a cabeça.

— Muitas histórias para eu guardar comigo até o amanhecer.

Ela parece exausta; esgotada por ter sua mente bombardeada com tanta informação. Tantas confissões, tantos segredos.

— Cada um deles me toca de um jeito — continua ela. — Me pergunto quanto mais vou suportar.

— Você é forte, está aguentando mais do que o último, antes de você.

Ela acena.

— Sim, estou. Você vai à fogueira?

— Não sei.

— Melhor decidir logo. Sabe, logo vai anoitecer.

Eu assinto. Assim como a manhã, minha tarde depende de uma única ação para avançar de encontro com o anoitecer. O momento em que eu deixo a clareira e aceno para os novos membros do acampamento, a partir dali o sol se inclina e mergulha para trás das montanhas anunciando seu descanso. Depois disso as luzes nas laterais externas do teto de cada trailer se acendem e as lâmpadas que ladeiam as trilhas também. Parece um acampamento de verão, e eu sequer me lembro como é isso. Talvez nunca tenha conhecido um. Não, não conheci nada disso antes de ele me visitar.

Peter está parado na frente do meu trailer, com uma camiseta cinza e uma bermuda branca. Ele sorri e fica vermelho, e mais uma vez, fico intrigado com isso.

— Então, você vai? — ele diz se encostando ao lado da minha porta com olhos inocentes que sugerem que está suplicando.

Suspiro e dou de ombros.

— Só alguns minutos — digo e entro.

Direto para o banho. Água quente, sabonete líquido com cheiro de eucalipto e eu saio envolto na toalha. Fico parado diante do espelho organizando meus cabelos, da cor do tronco das árvores, e então, visto minha melhor roupa de verão. Peter caminha ao meu lado. Ele fica calado durante toda a descida até as areias da margem, onde as ondas avançam com certa fúria. Vemos nuvens escuras e clarões acima do alto mar, mas não há nada com que nos preocupar.

Há uma fogueira grande, cujas chamas tem quase duas vezes a minha altura. Centenas de pessoas ao redor e mesas de madeira com barris de bebida e bandejas com frutas ao redor de um grande e suculento peixe assado. O estranho é que, ninguém naquele acampamento, além de Aaron Brocke, sabe pescar. E ele nunca pesca absolutamente nada.

Caminho ao lado de Peter, sentindo seus olhos sobre mim todo o tempo. Mesmo com todas aquelas pessoas tão divertidas e interessante. Mais uma vez sinto estranheza e isso me faz querer me aproximar dos outros. Sou recebido por Derek, Spencer, Meredith e Kane, todos com espetos de marshmallows assados nas mãos.

— Kane ama esses doces — Meredith comenta alegremente. A mulher possui cabelos longos e escorridos ao redor do rosto, como uma cortina de cor vermelha.

— Eu não me lembro de gostar tanto assim — Kane retruca.

— Você, gosta, não gosta? — Meredith diz, irritada.

— Gosto, mas você disse de um jeito, que parece que eu amo essa droga mais que tudo na vida.

Meredith fecha a cara e cruza os braços.

— O pai dele tinha uma loja de doces — ela sussurra só pra mim ouvir. — Eles faziam marshmallows todos os dias.

— Eu não me lembro disso.

Meredith o encara.

— Me contou isso ontem.

Kane de repente está pálido e pestanejando sem parar.

— Deve ter sonhado.

— Mas... não sonhamos. Nunca sonhamos.

Há um relâmpago e eu me sinto deslocado. Como o doce, jogo a vareta queimada no fogo e pegou uma bebida de frutas na mesa. Peter me olha de longe, mas não se aproxima. Não sei se agradeço por isso ou lamento, pois a temperatura tende a subir quando ele está longe de mim e cair quando se aproxima. E eu amo o frio.

Ainda consigo ver a manga que os irmãos tentavam derrubar pela manhã quando decido subir um pouco para me sentar na grama e fitar o mar. As ondas batem nos pés da montanha e se dispersam, os trovões e os raios brigam entre si com o mover das nuvens, e como sempre, nenhuma delas se aproxima da margem. Não, nada nunca chega à margem, com exceção dos novos moradores que devem chegar antes do sol nascer. Frios, molhados, confusos e em pânico. Assim como eu, um dia. Assim como Peter antes de mim e todos os outros. Fadados a se repetirem dia após dia, sem jamais se cansarem ou envelhecerem.

Apoio a cabeça nos joelhos e tenho a ligeira impressão de ver algo se mover sobre as ondas. Depois, aquilo me parece bobagem e me coloco de pé, pronto para partir de volta para meu trailer e decretar o fim daquele dia.

Não me surpreendo ao voltar e ver que a pia que Peter mudara de lugar havia voltado a estar onde estava. Ou que minhas roupas sujas de repente estavam limpas e guardadas e que havia comida nova na geladeira.

Não. Isso não é nada surpreendente aqui.

EdésioFilho
Enviado por EdésioFilho em 09/05/2023
Código do texto: T7784323
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