Uma última vez antes de ir
Aquela avenida estava um caos. Era normal, em horários de pico, que o trânsito fosse intenso, mas estava pior que de costume; e tudo por conta de um acidente. Um motoqueiro tentou, de forma imprudente, cortar para outra faixa e não esperava que não fosse dar tempo. O carro que vinha atrás, em alta velocidade, o arremessou de encontro a um caminhão que estava mais à frente. Alguns motoristas precisaram frear bruscamente e houve um pequeno engavetamento. Uma quantidade razoável de pessoas se feriram e muitos carros ficaram danificados, porém, apenas o motoqueiro morreu.
Bombeiros, policiais e guardas de trânsito faziam seus respectivos trabalhos para fazer o tráfego da avenida voltar ao normal. Os carros passavam vagarosamente, muitos motoristas diminuíam mais ainda a velocidade para olhar os estragos com mais atenção. Pessoas se aglomeravam para observar o acidente de perto, quase rompendo o cordão de isolamento. Aquela velha curiosidade que a maioria parece ter por coisas mórbidas; ainda mais quando se pode ver de perto.
Um pouco mais afastado dos curiosos havia um homem alto e esguio; estava imóvel, olhando fixamente para os acontecimentos, completamente alheio ao falatório das pessoas, aos sons das buzinas e a todo aquele tumulto.
Após quase duas horas, enfim as faixas foram liberadas por completo. As pessoas foram se dispersando e o fluxo da avenida foi voltando ao seu normal.
O homem alto e esguio foi o último a se retirar dali, fazendo isso apenas após o corpo do motoqueiro ser levado.
Se alguém pudesse vê-lo, juraria que era algum transeunte sem rumo, porém, o destino que ele queria chegar lhe era determinado. Após sair da avenida, o homem alto e esguio se embrenhou numas ruas que conhecia perfeitamente, afinal, elas foram o caminho que sempre fazia para chegar em casa após o trabalho. Porém, diferente de antes, agora estava fazendo o trajeto de dia e não estava vindo do trabalho. Totalmente absorto e compenetrado, caminhou por algumas horas até que, enfim, cessou o seu caminhar. Se deteve em frente a uma casa e entrou; passou pelo quintal e atravessou a porta da sala, onde se encontravam algumas pessoas. No cômodo, a tristeza imperava, o choro era inevitável e a angústia reinava. Uma mulher soluçava de tanto chorar e era consolada por sua mãe; as outras pessoas se abraçavam e também choravam. Num dos quartos, uma menininha estava sendo distraída por dois adultos, para não saber o que se passava por ali. O motivo do pranto era o recebimento da notícia de morte. A família do motoqueiro já estava ciente do óbito de algumas horas e, já passavam pela dor do luto. A única pessoa que ainda não sabia do falecimento era a menininha, que era filha do motoqueiro. Depois, com mais calma, iriam arrumar uma forma de contar tal notícia devastadora. O homem alto e esguio olhava para todos na sala e tinha uma expressão sorumbática; não foi notado por ninguém, a não ser pelo gato que, também se encontrava na sala, e se arrepiou, ficando com o pelo eriçado. Se se deparar com aquela mulher chorando a morte do esposo lhe foi lastimável, pior quando entrou no quarto onde estava a inocente menininha sendo distraída, para não saber da morte do pai. Voltou para a sala e contemplou aquelas cenas dramáticas pela última vez, afinal, o homem alto e esguio era o motoqueiro falecido no acidente; ou melhor, seu espírito, que veio ali se despedir de sua família, mesmo não podendo ser visto. Mas isso não importava mais, pois, já sentia sua presença nesse plano terreno se esvaindo, onde apenas teve o tempo necessário para ver pela última vez quem amou em vida. Em questão de poucos minutos seu espírito já estaria dormindo o sono da morte.