A Canoa de Jatobá - Antologia: Folclore, Mistério & Amor
Curumaré conduzia a sua longa canoa de casca de jatobá em silêncio, compenetrado nas nuvens que se formavam no horizonte. As mãos fortes e largas manuseavam o remo de madeira que manobrava o veículo de forma orgânica, como se fosse uma extensão do corpo de Curumaré. Com movimentos leves, ele evitava um banco de areia aqui, correntes traiçoeiras ali, ou uma pedra acolá. O homem conhecia aquelas águas como as palmas de suas mãos experientes. Sentado à sua frente estava Martins, um caraíba, homem branco, antropólogo, que não entendia o que fazia dentro da canoa de Curumaré. Há anos trabalhava com os povos originários das margens do Araguaia, mas não se lembrava de entrar no veículo, tampouco conhecia aquele rio.
O semblante do velho Curumaré era pacífico, mas Martins não podia deixar de perceber certo cansaço em seus olhos, como quem carrega um grande fardo nas costas. “Quem é este homem?”
O céu tornou-se alaranjado e uma sinfonia de insetos parecia celebrar o fim de mais um dia. O chacoalhar das ondas e a água batendo contra a casca de jatobá transmitiam uma profunda sensação de paz, até demais. Havia algo místico na atmosfera, no cheiro da natureza, e na brisa que refrescava o calor do dia. Martins sentiu-se sedado, entregue a todas as sensações que aquele mundo estranho oferecia.
“O que foi isso?” Um vulto comprido nadou por baixo da canoa, imerso nas águas cristalinas do rio. Sua forma era estranhamente familiar, mas irreconhecível pela escuridão da noite que se aproximava. Curumaré sorriu e pediu calma para o antropólogo, pois era apenas Uiara, a mãe d’água. Martins ignorou a tranquilidade do homem e passou a olhar, nervoso, de um lado para o outro da canoa. O vulto passou mais uma vez por baixo deles, com sua enorme nadadeira e barbatanas, e nadou na direção do pôr do sol, onde finalmente emergiu. O medo de Martins tornou-se admiração. Era difícil enxergar a figura misteriosa contra o sol, mas ele reparou que o busto nu que se erguia além da água era o de uma belíssima mulher, que os encarava profundamente. Um canto doce ecoou por todo o rio, o tipo de canção que já levara vários homens, hipnotizados, para o fundo das águas, onde encontravam a sua morte, mas os dois navegantes não foram tentados pela canção, pois onde estavam, Uiara não tinha efeito sobre eles. “Por quê?” Curumaré deu de ombros. Uiara mergulhou novamente, desaparecendo de vista e deixando o antropólogo com mais perguntas do que respostas. A tranquilidade novamente tomou conta do rio, onde a canoa seguia o seu curso.
Numa das margens, Martins reparou no som do galope de um cavalo, que acompanhava a canoa além das árvores. O som se tornava mais intenso conforme o rio se estreitava, e Curumaré navegava mais próximo à superfície. Novamente, o homem confuso foi surpreendido por uma figura misteriosa: um menino, com não mais de dez anos de idade, roupas rasgadas e pele preta, em cima de um enorme cavalo baio. Cavaleiro e montaria pararam na margem do rio e observaram a canoa. Os olhares de ambos eram intensos e curiosos. Curumaré deu um sorriso quase imperceptível e fez um gesto com a mão, cumprimentando o menino, que respondeu com um aceno de cabeça. “Pobre menino escravo!” Disse Curumaré. “Banhado de chibatadas e jogado num formigueiro. Hoje é o santo das causas perdidas!” O menino, montado no cavalo, acompanhou a canoa de casca de jatobá serpentear o rio, até que os navegantes não conseguiram mais ver o Negrinho do Pastoreio. A confusão na mente de Martins só aumentava. Por que estava lá? Quem era Curumaré?
A escuridão tornou-se completa e o canto dos insetos ensurdecedor. As estrelas brilhavam fortemente sobre o céu sem lua, o que significava maré baixa. Um clarão quente começou a surgir de dentro da floresta, como uma chama viva que se movimentava rapidamente entre as árvores, sem queimá-las. Por um breve momento, entre os troncos, Martins jurou ter visto vários olhos flamejantes o encararem. Eram os olhos de uma cobra gigantesca. Curumaré riu do espanto do homem e tentou tranquilizá-lo, dizendo que a serpente de fogo jamais o feriria, a menos que ele tentasse queimar a floresta. “Sábio é Boitatá!”
E assim a canoa seguiu, cruzando o caminho de diversas criaturas fantásticas. Dentre elas, o Mapinguari foi o mais chocante aos olhos de Martins. Corpo alto, robusto, pelos vermelhos, um olho no centro da cabeça e uma bocarra grotesca com dentes afiados em sua barriga. Contudo, o monstro ignorou a canoa, deitou-se sob uma árvore e dormiu tranquilamente.
Martins não entendia o motivo de estar na canoa e Curumaré não se sentia confortável em contar a verdade. Afinal, o antropólogo não era o primeiro cadáver encontrado na floresta, morto por caçadores ilegais que seriam denunciados. Curumaré tinha apenas a função de levar as almas dos mortos através do rio, para que finalmente encontrassem paz. Já as criaturas místicas da floresta, lá permaneciam, pois não estavam vivas nem mortas, apenas esquecidas. Eram histórias, e histórias podem voltar à vida, diferente da alma de Martins.