Fumaça esbaforida
Ayrés já estava atordoada. A rotina regrada já lhe havia convertido em máquina humana. Naquela tarde cinzenta, Ayrés estava nublada. Não, ela estava o superlativo de nublado. Seu sol se manifestava incapaz e a enchente assolava seu íntimo. Não havia nada que pudesse deixá-la desta forma. Solteira, bom trabalho, sem filhos e família estruturada. Absolutamente nada notável que pudesse afligir-lhe.
Chegou em casa. Ao abrir o portão, deu-se conta que havia esquecido de alimentar seu cachorro. Julgava seu único confidente e melhor amigo. Como pôde Ayrés ter esquecido de atender a necessidade mais básica de seu melhor amigo? Como?
Fechou o portão. Ficou prostrada. Estava inerte. Pensou e não entendeu o porquê de seu esquecimento, tido por ela como falta gravíssima. Pensou de novo.
Pela primeira vez, seu cão não se levantou nem abanou o rabo. O cão não se manifestou.
Ayrés, já atônita, abriu a porta, adentrou em casa, abriu a janela que ampliava sua relação com o seu animal. Não obstante, pegou seu cigarro, acendeu-o. Sentou-se no sofá e se pôs a pensar. Fumou.
Esbaforiu em direção ao cachorro.