PRESSENTIMENTO
Naquele dia, que embora ele ainda não soubesse, seria diferente e mudaria o rumo de sua vida para sempre, Santiago acordou com um pressentimento por ele considerado bobo, uma tolice de quem já passou dos setenta e começa a valorizar mais a vida. E teve o sonho, melhor dizendo, o pesadelo que o acordou suando no meio da madrugada. Mas sonhos, pensou ele, não passam de devaneios das mentes ociosas. Sonhos e pressentimentos, isto é, bobagens e devaneios nada significam na prática certamente. Mas ele pensava assim para convencer a si mesmo, no fundo uma pontinha de receio se instalou no seu coração.
Aos setenta e cinco anos de idade, Santiago viveu a realidade da metade do século vinte e continuava personagem viva do século vinte e um. Testemunhara o nascimento dos Beatles, o surgimento da mini saia, a fundação de Brasília, a revolução de 64, a descoberta da pílula anticoncepcional, os atos terroristas da esquerda, a queda do muro de Berlim, a tv em preto e branco ficar colorida etc e etc. No novo século aberto à humanidade lá estava ele acompanhando todas as mudanças e transformações sociais, climáticas e políticas.
Aposentado, pai de cinco filhos e avô de oito netos, enviuvara aos setenta anos quando um acidente vascular cerebral levou sua companheira para a eternidade. Desde então, com a saída do último filho em busca da própria vida, passou a viver sozinho num condomínio fechado, cuidando de tudo no apartamento, inclusive cozinhando, pondo a roupa na máquina de lavar e demais tarefas do cotidiano. Os filhos tentaram de tudo para ele contratar uma empregada, mas Santiago preferia a liberdade de fazer as coisas do seu jeito, por isso bateu pé e rejeitou a ideia.
Nos fins de semana costumava encontrar os amigos no shopping para almoçar e bater aquele papo descontraído, assistir a um filme para se distrair e regressar para casa no começo da noite. Ele mesmo dirigia seu prisma ano 2018 com o cuidado e a destreza de mais de quarenta anos como motorista amador.
Porém, ele lembrou depois, no domingo do pressentimento e do pesadelo, ao sair do shopping e adiante parar no sinal vermelho, a moto com dois sujeitos que viu atrás de seu carro acelerou e o carona saltou já de arma em punho. Sem pensar duas vezes, Santiago engatou a marcha e saiu numa louca disparada, sob os olhares dos poucos transeuntes e o ardor de raiva do assaltante, que imediatamente subiu na moto cujo piloto desembestou atrás do prisma louco de ódio e decepção por ter sido enganado pelo velhote.
Santiago percebeu estar sendo seguido pelos marginais, notando a arma em riste na mão do que ia na garupa. Assustou-se, claro, mas sem pensar acelerou ainda mais, os bandidos notaram e fizeram o mesmo, carro e moto ultrapassaram sinais e assustaram pedestres que buscavam atravessar na faixa. O rebuliço estava lançado. Em dado momento, Santiago avistou a moto chegar perigosamente mais perto do seu carro, preocupou-se, porém não era homem dado a covardias. Foi então que tomou a grande decisão de sua vida enquanto seus perseguidores ainda vinham atrás, e antes que os meliantes emparelhassem com ele, tirando toda e qualquer chance ou algum jeito de escapar. Era arriscado e perigoso, no entanto intrepidez nunca lhe faltou.
E agiu conforme num centésimo de segundo maquinou a astúcia, freando bruscamente, os pneus cantando no asfalto. A moto bateu de chofre na traseira do prisma, jogando os dois malfeitores por cima do carro até uma distância de dez metros. A arma caiu a dois metros. Ciente disso e das vítimas se contorcendo no chão, ele abriu a porta, saiu do carro, apanhou o revólver e correu na direção dos feridos, ambos com fratura exposta nas pernas e aos gritos de dor. Sem pestanejar, indiferente à agonia do desgraçado, apontou para a palma da mão direita dele, atirou à queima roupa, deflagrando outro tiro a seguir na mão esquerda do sujeito, depois apressou-se na direção do outro cara e fez o mesmo nas mãos dele. Então gritou: " Nunca mais usarão suas mãos para cometer crimes contra os cidadãos de bem!" Voltou para o carro, ligou a ignição, passou a primeira e fugiu em desvairada velocidade, ante os olhares aturdidos da pequena multidão em derredor e dos gritos de agonia dos assaltantes. Ninguém anotou a placa de seu carro.