Era tu, Carmilla?
Confesso que tive enorme pressa em relatar o ocorrido. Queria anotar todos os detalhes possíveis, para não correr o risco de nada me escapar da memória. Posso adiantar que a narrativa a seguir não tem o intuito de causar desconforto, e muito menos apavorar quem a ler. Apenas tenho como objetivo narrar um pequeno acontecimento noturno, onde me encontro reflexivo mediante os fatos. Afinal, dependendo da ótica de cada um, e a forma como se encara possíveis incidentes sobrenaturais, é possível que minha pequena história não seja tão amedrontadora, ou até mesmo soe como uma mera banalidade.
Porém, confesso que, pensativo, me indaguei diversas vezes sobre o acontecimento em questão; e digo que essa foi a vez que mais questionei sobre a possibilidade de algo ser coincidência ou não. De forma obcecada, mergulhei nos pensamentos mais profundos que minha mente pôde gerar. Alcancei um ponto onde mais questionamentos foram gerados. Pensei seriamente sobre qual a linha que poderia dividir o fictício do real. Ou será que ambos estão misturados, não havendo distinção entre as duas coisas?
Aquela noite não indicava que haveria alguma anormalidade. Até o ocorrido por qual vos escrevo, era apenas uma noite qualquer. Mais uma onde se chega em casa exausto pela jornada diária e tudo que se pode desejar é um 'mergulho na cama'; e dormir para recuperar as energias se torna uma opção irresistível. Embora determinado a cumprir alguns afazeres domésticos, a fadiga havia me impossibilitado de concretizar o planejado; e após pouquíssimas coisas feitas, já estava para me deitar por volta de meia-noite. Contrariando a vontade da mente e satisfazendo o desejo do corpo fadigado, que parecia querer se fundir com a cama.
Como por hábito, a luz da cozinha ficava acesa durante toda a noite, pois, pelo menos um pouco de claridade adentrava o quarto, já que deixava a luz dele desligado. O cômodo ficava escuro, com apenas o facho de luz da cozinha adentrando-o. Ao contrário de considerável parcela da população, dormir nunca me foi um problema; logo, após alguns minutos, deitado, já me encontrava num sono tranquilo. Não era uma noite de temperaturas extremas, não estava quente, nem frio. Me permito acrescentar que era uma noite harmoniosa. Porém, por volta de três da madrugada, começaria o pequeno incidente que me instigou a escrever esse breve relato. Por ter facilidade em controlar o sono, acordar por escutar algum barulho me é normal, e embora minha pequena residência seja próxima à beira da rua, os pequenos ruídos que me fizeram despertar não foram oriundos de lá, e sim de dentro do próprio quarto. Aliás, com exatidão, me recordo que os barulhos eram próximos da minha cama.
Na parede oposta, e de forma paralela à minha cama, ficam minhas caixas com meus livros. Do lado delas, estavam algumas roupas e umas sacolas com objetos dentro. O barulho era muito sutil. Parecia que quem quer que fosse, ou o que fosse, não queria que eu escutasse. Totalmente coberto e com os olhos arregalados, tinha um receio interior, assim como uma grande curiosidade em saber o que estava tão perto de mim. Não queria demonstrar que estava acordado, mas precisava começar a agir de alguma maneira.
O silêncio da madrugada me era um inimigo, pois, poderia denunciar qualquer barulho que eu viesse fazer. De maneira lenta, resolvi aproximar meu rosto por debaixo do edredom. Afinal, que 'diachos' estava se movimentando tão perto de mim no meu quarto?
A luz que vinha da cozinha não era útil para me ajudar, pois, só clareava até a entrada do quarto. Necessitando de romper com a tensão, que era grande, resolvi tomar uma atitude, após nada conseguir enxergar por debaixo do edredom. Tomado de uma coragem momentânea, pensei em agir de maneira rápida e de modo que minha ação representasse hostilidade para o que fosse que estivesse presente em meus recintos. De maneira abrupta, me descubro por completo e salto da cama dizendo em voz alta:
- Saia daqui!
Após me recompor rapidamente, pude ver um pequeno ser sair em disparada do meu quarto, passar pela cozinha e sair pela janela que dava para a varanda, que dava para a rua. Todo o trajeto do pequeno ser foi acompanhado por minhas retinas atentamente, mesmo em meio ao êxtase da situação. Embora tudo isso tenha gerado grande tensão e suspense sobre mim, o ser em questão era um gato. Pois, é! Um gato; gato preto. Como sempre deixava a janela da cozinha aberta, o bichano deve ter achado uma boa ideia se aventurar por minha pequena casa naquela madrugada. Pela corrida que deu após meu salto da cama, era nítido que se assustou muito mais que eu com o incidente. Ele ainda derrubou alguns cactos que ficavam em cima da pia, na sua fuga após o susto gerado por minha reação.
Em pouco tempo, arrumei as coisas que o meu visitante noturno havia bagunçado em sua fuga desesperada e retornei para minha cama; onde fiquei alguns instantes pensando no ocorrido até dormir novamente.
Despertei um pouco depois das dez da manhã e antes de qualquer outro pensamento, o incidente de poucas horas antes tomou minha mente de forma dominadora. Não demorou quase nada para que meu raciocínio me conduzisse a pensamentos que fugiam de 'explicações terrenas'. Foi quando comecei a reflexão, que mencionei na primeira parte desse relato, sobre o fictício e o real; sobre coincidência ou não. De imediato, me recordei de alguns textos que já havia lido sobre séculos passados, onde pessoas da época teriam recebido visitas noturnas de supostos seres místicos que vinham sob a forma de animais; incluindo gato da cor preta, mas me sobreveio outra linha de raciocínio. Sobre minhas caixas de livros, que ficavam de forma paralela à minha cama, se encontravam mais dos mesmos. Incluindo um que tenho extrema predileção e que o seu conteúdo tem uma curiosa ligação com o que me aconteceu de madrugada. O livro a qual me refiro se chama 'Carmilla, a vampira de Karstein', de Joseph Thomas Sheridan Lefanu, de 1872. Esse livro apresenta a primeira vampira da literatura e serviu como um dos pilares para Bram Stoker escrever o popular 'Drácula', de 1897. Nele, a protagonista Laura, uma jovem estiriana recebe a visita noturna de Carmilla, a vampira que dá nome ao livro, que vem justamente na aparência de um gato preto lhe roubar sua energia vital, para se alimentar e se manter viva. O mesmo animal, com exatamente a mesma cor, que adentrou meu quarto e saiu em disparada quando pulei da cama. Mediante essas considerações e com todos esses aspectos, me pergunto:
- Era tu, Carmilla?