ASSIM SÃO OS CAMINHOS DA VIDA E DA MORTE - A carta reveladora.

O teor da carta encontrada na mão do homem sobre a cama, manuscrita aparentemente de uma forma serena, era mais que a confissão de alguém disposto a abrir seu coração, passava muito além de profundo desabafo. O policial desdobrou as folhas de papel, ignorando o odor nada agradável do ambiente, e leu:

" 05/10/2022

Amados familiares, queridos amigos e demais inúmeras pessoas que passaram em minha vida e, de alguma maneira, deixou marcas boas ou más em meu coração, esta missiva é destinada precisamente a vocês, tanto os que me conheciam e conviviam comigo num universo mais íntimo quanto os que apenas me sabiam no âmbito mais superficial. Verdade que todos vocês não tinham acesso ao amago do meu viver, daí desconhecer a amplitude dos meus conflitos, sonhos e desejos. Visto que estas poucas linhas somente serão lidas após minha ida para a eternidade, ciente de que morrerei sozinho porque há muito fui desprezado e deixado na mais completa solidão, abro meu íntimo para sair do armário e ser sincero nas escolhas que fiz mas jamais ousei expor de peito aberto.

Sim, escancaro o armário onde escondi meus anelos, meus gostos e opções. Nem sem explicar, acho até que essas coisas não têm mesmo palavras que possam explicar por que nasci diferente dos outros, embora imagino que muitos homens atravessam pântano de igual magnitude. Em mim mostrou-se ser algo natural, não fluído da maldade. Sim, saibam todos que saio do armário com a finalidade de expressar que, desde minha adolescência, sempre tive incontrolável tesão por mulheres casadas. Apesar de vários de meus casos terem sido com mulheres comprometidas e do conhecimento de todos, familiares e amigos, talvez imaginassem ser apenas coincidência.

Não, não era. Minha inclinação e encanto por essas mulheres vem do berço, provavelmente. E a respeito dessa tara esquisita nunca tive controle, brotava do meu íntimo esse impulso próximo do incontrolável. E como eu poderia vencer tamanho fervor interno? Aproveito para, nos últimos momentos de vida, pedir perdão a quantos prejudiquei por essa inclinação deveras inusual, sem dúvida inusitada. E justamente por ser algo anormal, fechei-me no armário sem dizer a ninguém. Quem aceitaria meus argumentos sobre assunto tão delicado? Agora, saio e permito que entendam a razão de ter saído com tantas mulheres com aliança no dedo anelar. Tive culpa? Sim, mas se é compreensível que escolher como queremos, por opção ou instinto, viver nossos dias, suplico que também entendam que eu gostar de mulheres às quais eu não teria direito estava muito acima de minha própria vontade.

Vivi a velhice sozinho, sem as mulheres que amei, pois umas morreram, outras foram ameaçadas pelos maridos e resolveram por fim ao nosso relacionamento ilícito, e umas tantas foram se afastando e se separando de mim por amontoados de razões, deixando-me, por fim, imerso num mundo doloroso de ser só e fadado a morrer sem o conforto de uma companhia. No fundo eu aceito esse fim de jornada tão melancólico, pois sei de minhas culpas e pecados, e de tudo que fiz de errado e em pecado me arrependo profundamente.

Meu temor de falecer de repente, dada a minha avançada idade, bem como a possibilidade de encontrarem meu cadáver somente quando se iniciasse sua decomposição, o que decerto vai acontecer, levou-me a redigir esta carta com os esclarecimentos já acima declinados. Perdoem-me também por ser tão humano quanto vocês, mera carne e sangue que vive e morre, e exalar fétido odor caso não me achem no mesmo dia de minha morte natural. Sim, quero partir no dia que Deus escolher, esperando esse dia com serenidade e entregando minha alma espírito nas mãos santas só meu santo Pai eterno. Assim, respirarei com tranquilidade até o último instante que me for possível. A morte que venha quando o momento lhe for propício, não irei à procura dela. Sinto muito por tudo que de ruim, errado, equivocado ou de mal fiz a tanta gente. Infelizmente somos movidos por nossas paixões, desejos e anseios, nem sempre logramos fugir desses sentimentos. E as vezes perdemos as rédeas das muitas ilusões e das repentinas emoções. Não creio que eu estar mergulhado nesse mar de conflitos emocionais seja diferente de qualquer outro semelhante enquanto caminhamos ao longo dos anos.

Meus cartões de crédito com senhas, saldo em conta bancária e em quais bancos tenho conta corrente, estão guardados no cofre da parede de meu quarto, cujo segredo será revelado somente ao meu neto mais querido, Roberto. Registrei no cartório de família um envelope fechado com todos esses e outros documentos para ser entregue tão-somente a ele quando descobrirem minha morte. Por último e como pedido final, rogo ao meu neto que compre cem folhetos de pregação do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, para ser distribuído aos possíveis comparecedores de meu sepultamento, e o que sobrar entregue aleatoriamente às pessoas da família, aos poucos amigos e também aos desconhecidos. Deus indicará quem Ele deseja que receba um desses folhetos. O número do telefone celular de Roberto está logo abaixo desta última folha. Perdão, em nome de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, peço perdão de todo coração, com a amplitude se meu ser. Deus abençoe vocês integralmente e sempre ricamente todos os dias de suas vidas. Amém 🙏"

O policial dobrou novamente as folhas da correspondência e entrou em contato com Roberto, o neto do falecido, cujo corpo foi descoberto pelo vizinho ao sentir o forte e desagradável mau cheiro que vinha do apartamento ao lado e comunicou o fato à polícia.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 26/10/2022
Reeditado em 27/10/2022
Código do texto: T7636521
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