A busca

Tivera a oportunidade, outra mais, de acordar - e, ironicamente, essa alegria lhe era dolorosa, por causa de sua moléstia. Ereto na cama, era noite, via a lua a meio caminho do céu, devia ser próximo da madrugada; se lembrou de quando dormiu, ali, naquele quarto de teto distante e cor de deserto, sabia que era manhã, despertado manhã afora; trazido de caminhada longa do porto, passado por vielas, imundícies, olhares, a nojeira citadina e aclamações, até dentro dos muros; lá foram dois homens lhe levando, devagar, com um medo de quem porta brinquedo de herdeiro, até o cômodo, protegido por escadarias; foi posto à cama e deixado só, seus olhos gravaram apenas o mesmo teto quadrado e vazio, extenso como areia. Já fazia um tempo que não sonhava; um sono era um adio ao sofrimento. Deparou-se com o escuro, a fumaça do nada; uma pouquinha luz dum candelabro acendido secretamente, lá fora, também, vinha uma resistência de luz: as tochas das colunas do pátio, mas só imaginava, só lembrava do adro de outrora, do templo, de quando era um broto no mundo, na fase de receber as primeiras luzes e os primeiros ventos, quando sozinho estava, num rompante crepúsculo, infinito, místico, dentro daquela caixa alva, refletora e derretida, de chão enorme e polido, de colunas ascensoras, de um céu marmóreo e sentencial; não era uma frase, era divindade; foi o primeiro rasgo no seu ser, que nunca veio cicatrizar-se, violento contato, cuja abertura não criara a chance de cultivo, pois nunca parou de sangrar, de latejar em si, remoía-se desse trauma, dessa perturbação, tentando preenchê-lo de todo tipo de improdutivo material, mas seu organismo expulsava todos, e passou a pensar que esse olhar não mais servia, quis abrir os olhos do corpo e seguir.

No corpo, surgiram estigmas, mas de tempos corridos, navegados, aventureiros, com gosto de brisa, da mais suave a mais agitada, de quando descobria o corpo ao mundo, com sua armadura leve, de indivíduo sensual, tomador de tudo - o que era ele naquele navio? Olhando o horizonte, apontando uma espada para o rumo desejado, ordenando, mesmo sem gritar uma única vez, pois ali não impostava a voz para mandar, a ordem vinha como uma vibração, e todos os seus subordinados abriam os poros para recebê-la. Foi de guerras, de batalhas, conhecido pela sua competência marítima, e também nunca dispensou a luta que fosse. Tantas vezes a morte esteve consigo, porém nunca esteve com ela, seus olhos, arregalados, atentos, fugiam desse espiritual plano - nos periclitantes momentos era que avançava mais, e sua bravura - loucura - rendeu mais tempo; esse mesmo que estava sujeito, no decúbito. O mítico guerreiro, de muitas canções e prestígios, emergiu desse oceano, como todo mar onde mergulhava não lhe durava. Na áurea idade, de monumental vigor, jovem ainda e senhor da própria beleza, saíra dessa vida, deixando centenas de órfãos. Adotou um branco tecido, fino, que rodeava seu pescoço e descia, lacrimejante, a seus pés, presos por sandálias de couro; o único ornamento dessa estátua era um bracelete dourado, no braço esquerdo, o único parcialmente exposto - o outro sumia no médio manto, de cor cintilante, o qual nascia do seu ombro direito e escorria, escondendo aquele membro; vestuário esse explicitador do novo afã: uma espécie de sacerdote, mago das coisas invisíveis, transformador do desimportante em deslumbrante, um resgatador do mundo, ou, mesmo, da humanidade. Diferente dos feitos de outrora, de grandiosidade sempre prestigiada, não sentia o comum prazer inicial, mas sim uma dor, um incômodo crescente em todo seu ser, o próprio corpo sofrendo, de espasmo em espasmo, como se fosse incompatível; não sabia se era penitência ou se resistia em si aquele eu fugitivo ou de renúncia, que agora voltava à estrada da vida e seguia o caminho mostrado por um imperativo misterioso.

Nesses dias buscou a reclusão, antes de jogar todos os seus inestimáveis bens numa praça, mandou que fizessem uma torre, da mais alta, no meio de um pequeno recanto cercado de colinas; lá ficou por dias, só com a mesma roupa, que perpetuava-se branca enigmaticamente, comendo frutas que as árvores ofereciam, num silêncio que nem mesmo o oceano consegue fazer, fechou-se inteiramente ao mundo lá fora, porque seu desejo era descobrir o seu mundo, o íntimo; absorto como ave materna, chegou ao ponto de sequer perceber quando, lhe buscando, soldados, príncipes e valorosos lhe chamaram - voltavam para as cidades falando na sua, praticamente, morte; anos se passaram, e, apesar de ter sentido verdade no que fez, ainda sentia fome, como todo aquele que não se nutre como deve, e isso causou-lhe desespero; já foi um grande herói, fez amizades das mais altas castas, o povo lhe amava, conhecia essa Terra até mais do que as aves viajantes - então, lançou-se nas entranhas do desconhecido pessoal, abandonando essas experiências, para chegar, enfim, àquele ponto de luz, primeiramente tão próximo, que viu há tempos, e agora parecia ser uma estrela solitária na noite. Seus braços e pernas doíam, seu corpo tremia ao se manter de pé, estava fraco, e sua, ainda, beleza, parecia da dos jovens levados por doenças; seu pé pisou na grama, depois de tanto tempo, um chão duro, enfim; seguiu para o vilarejo, onde foi acolhido e levado às pressas ao grande império - e agora acordava nele, esperando, talvez, o momento de fechar os olhos para a eternidade.

No meio do barulho de suas lembranças, a porta de bronze abriu-se com um barulho tão ríspido quanto a queda de um espelho; era aquele amigo, o imperador, cuja imagem também lhe rememorava: era um marinheirozinho, trabalhador de cais, embrenhou-se em exércitos perspicazmente e ganhou a honra de grandes generais; apesar de dono de um sem-fim de poder, prosseguia com o mesmo olhar de menino encantado ao ver um ex-herói, agora derrotado e doente; o cheiro de seu perfume tomou conta do lugar, e refletiam as joias suas à luzinha do quarto, tudo isso lhe enchia a cabeça de insuportável modo, mas o imperador não sabia, apenas sentia a dor de ver a grande imagem de sua juventude ali, deitado, com o semblante de agonia; ajoelhou-se ao lado de sua cama e aproximou mais o corpo, tentando vê-lo, era o que queria fazer, quando soube de sua chegada - queria o ver vivo; e aquele, pai e irmão, com muito esforço, o rosto virou novamente, para o lado direito, onde estava, atento e ansioso:

- Me diga - a voz saiu como o último vento da noite - o que é a luz?

Se podia ouvir seus batimentos, cuja frequência minguava, batia forte e anunciador; já tomava o olhar a visão longínqua, dos que adentram outros lugares; o imperador testemunhava a partida da mais alta referência - não só dele, da população -, e sentia uma tristeza que o fazia derreter; a visão, sendo tomada pelas trevas, daquele quase-menino, despertou em si o momento de sua infância, o estranho acontecimento, nunca decifrado, apesar de buscado sempre; todas as sementes que achou neste vasto jardim não germinaram em seu peito, nunca aquela fenda se fechou, porém, no derradeiro momento, viu a luz tomar toda sua consciência novamente, havia percebido que a luz não se prende a si mesma, mas se expande para todo canto existente - e que não adiantava fazer-se sol para cegar quem olhasse para si, nem prender-se na escuridão, longe de todos, fazer-se fonte estéril; percebeu: a verdadeira luz se manifesta para os outros - enfim, estava plenificado o seu ser, surgiu a tão esperada raiz, regada por aquelas lágrimas.

~

ñ.r.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 16/09/2022
Código do texto: T7607473
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