A RAINHA ELIZABETH E O SUCO DE PITANGA.

Recife. Início de janeiro de 2017. O vento balança as folhas das belas palmeiras da praça da República. O palácio ao fundo. Alguns casais fazem piquenique no gramado, ao redor do lago. O velho Robério, de setenta e três janeiros, passou devagar em frente a estátua da deusa Flora. O chinelo de couro, a camisa do Sport e um boné da casa de materiais de construção Nosso Lar, de seu sobrinho Aderaldo. Ele ajeitou os óculos. Ninguém ainda no velho banco, onde ele e seus amigos jogavam dominó, religiosamente aos sábados, às dez horas. -"Eita que Valdecir, Niquinho e Pardal estão atrasados." Ele colocou a garrafinha de água sobre a mesa. O dominó no embornal. Nem bem sentou-se, o celular tocou. -"Diga, pois. É eu." Olhou para os lados. -"Oras. Quem está falando? Diga seu nome, cabra. Não sou mãe Dinah pra adivinhar, carambolas. Sim, sou eu , Robério." Ele ergueu a voz. -"Ah, lembro. Ana, filha de Nininho. Ele não vem, foi visitar a irmã em Paulista?! Tá, certo. Obrigado por me avisar." Valdecir se aproximou. -"Robério, meu amigo. Pardal não vem. Está com uma tosse medonha do cão. E aí, como vai a vida?" Robério se preocupou. -"Como pode estar? De mau a pior, cabra. Tudo caro nesse país que já foi bom. Pardal não vem, Nininho não vem." Ele espalhou o dominó na mesa. A sombra das árvores sobre eles . -"Pior tá o nosso futebol, nenhum pernambucano bem. Náutico e Santinha tão com o pires na mão." Valdecir olhou as mensagens no celular. -"Meu neto quer que eu compre figurinhas pra ele. Dei o álbum da copa do Rússia pro garoto, criançada gosta disso." Uma senhora atravessou a praça, amparada por um jovem rapaz. Ela andava devagar. Os cabelos grisalhos. Tinha um chapéu estiloso e óculos escuros. Robério cutucou Valdecir. -"Lá vem a terceira idade. Não que sejamos jovens mas aquela alí tem mais de noventa." Cochichou Robério. A senhora e o jovem se aproximaram deles. -"Bom dia, senhores. Podemos nos abrigar do forte sol?" Robério quis rir do sotaque do rapaz mas se conteve. Valdecir não se opôs. -"Fiquem a vontade. O banco é grande." O rapaz colocou uma mochila no banco da praça. A senhora sentou-se ao lado do rapaz. Robério e Valdecir não pararam o jogo de dominó. -"Estar calor. Quente aqui." Robério e Valdecir se olharam. A mulher tinha um perfume bom, agradável. Ela olhava para os lados e sorria. O rapaz tirou uma garrafa de água com gás da mochila. Ele encheu um copo descartável. Os homens ficaram olhando aquele rapaz estender uma toalha. Cheio de cerimônia, ele pegou o copo e o ofereceu àquela senhora. -"Thanks, Robert. Very hot." Valdecir apontou a senhora. -"Ela não fala português? Vocês são turistas??" Robert sorriu. -"Somos da Escócia. Eu ser jornalista, sabem?! Vim para o Brasil a fim de fazer uma pesquisa para um jornal. Minha tia Lúcia veio comigo, não poderia deixá-la sozinha na Europa." Valdecir estava curioso. -"Escócia é na Gran Bretanha, não? A terra da rainha Elizabeth." O rapaz arregalou os olhos. -"Sim. Somos súditos da rainha, né tia? Sobre isso mesmo é o assunto de meu estudo, quero saber como foi a visita da rainha ao Brasil?? Será que alguém lembra?!" A senhora balançou a cabeça, negativamente. -"No, Robert. Very time, forteen years!" O rapaz concordou. -"Sim, minha tia. Já vão cinquenta e quatro anos que a nossa rainha Elizabeth visitou o Brasil. Foi em 1968." Robério passou a mão no bigode. Ele limpou os óculos. -"Moço, diga pra sua tia que eu me lembro perfeitamente da visita da rainha ao Brasil." Robert assustou. A mulher se ajeitou no banco. Ela abaixou um pouco os óculos. Robert pegou um gravador. -"Posso gravar o senhor?! Registrar suas lembranças?" Robério concordou. Valdecir deitou suas pedras de dominó, pressentindo que a espera seria longa. Robert fez sinal a Robério. -"Vou ligar o gravador, ao meu sinal pode falar." O velho recifense começou. -"O que falar da rainha Elizabeth? Eu estava as portas de meus vinte anos quando ela visitou o nosso solo tupiniquim, em 1968. Me lembro como se fosse hoje. Plantei uma pitangueira em casa e fizeram até matéria na tevê pois dei o nome da rainha a planta. Lilibeth era como a rainha era chamada quando criança. Ela e a comitiva real ficaram onze dias no Brasil. Vieram num avião VC-10, da Real Força Aérea, vindos do México, sede das olimpíadas. Passaram por vários lugares, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas. A rainha tinha quarenta e dois anos e só dezesseis de reinado, visto que foi coroada em 1953." Robert desligou o gravador e traduziu tudo para a tia. A mulher sorria, satisfeita. Robério continuou. -"Ela era muito bonita e educada. Aqui, ela conheceu Gilberto Freyre, dom Helder Câmara, o diplomata Marcos Azambuja. O almoço foi a luz de velas devido a apagão. Em plena ditadura militar, a rainha desfilando em meio ao povo feliz e encantado por ela. Em Salvador, conheceu Jorge Amado. Deram até berimbau pra rainha. A bordo do HMY Britânia, um grande navio, de duzentos tripulantes, ela deu festa e almoço as autoridades e celebridades da época. Ficou dois dias no navio. Em Brasília, ela presenteou o zoológico com cisnes. Como retribuição, ganhou um casal de onças, que depois voaram pra terra dela. O presidente era o general Costa e Silva. Em São Paulo, ela visitou o museu do Ypiranga, inaugurou o MASP e o edifício Itália. Visitou Campinas, o instituto de agronomia de lá. No Rio, fizeram até carnaval fora de época pra ela, com as escolas de samba desfilando na avenida. Visitou as obras iniciais da ponte Rio Niterói . Assistiu um jogo de futebol, entre as seleções paulista e carioca. Pelé a cumprimentou e ganhou honraria da rainha." Robert traduziu para a tia. -"Vou ali na lanchonete de Tuta. Fiquem aí conversando, de boa. Essa conversa toda me deu sede. Preciso de uma gelada." Disse Valdecir, se levantando. -"Eu adoraria uma beer, uma cerveja como dizem." A senhora cutucou Robert. -"Pitanga, pitanga." Robério riu do sotaque da mulher. -"Ah, interessante. Senhor Robério. O senhor sabe das comidas, se a rainha gostou de algum alimento brasileiro?!? Parece que ela se encantou por algumas coisas, não?" Robério puxou pela memória. -"Sim. Saiu até no jornal O Globo, na época. A rainha ditava moda e todas as mulheres queriam se vestir como ela. Em Salvador, a rainha Elizabeth comeu beiju com queijo ralado. Aqui em Recife, tinha experimentado e adorado suco de pitanga. Fez questão de tomar novamente em Salvador." Robert estava curioso. -"Eu imagino. A rainha deve ter saudades dessa visita. Saudades até do suco de pitanga." Ele deu uma gargalhada e deu um tapinha no ombro da tia. -"Desculpa, minha tia. A gente adoraria tomar esse suco. Se a gente encontrasse um lugar pra comprar, aqui em Recife." Robério riu. -"Sério mesmo?! Lá em casa tem dois pés carregados de pitanga, no quintal." Robert se aborreceu. -"Não queremos atrapalhar, meu amigo. Já estamos terminando a entrevista e já vamos voltar para o hotel." Robério insistiu. -"Venham comigo, é aqui pertinho. Minha esposa Dita faz o suco rapidinho pra vocês. Eu faço questão. São meus convidados." Robert ajudou sua tia a se levantar. Eles cruzaram a praça. -"Elizabeth ter um dos reinados mais longos da Inglaterra. Até pouco tempo , a rainha cavalgava ainda, em Windsor e Balmoral. Em 1990, ela sofreu com a separação de Charles e Diana." Disse Robert, preocupado em atravessar a rua. Eles entraram na casa de Robério. A esposa dele veio da cozinha. O avental molhado. -"Esse e Robert, da Escócia. Essa é a tia dele. Estão fazendo uma pesquisa, sobre a visita da rainha ao Brasil." A mulher encarou a tia de Robert. -"Ela parece aquela velha da Inglaterra, a rainha. O que mais tem na internet é meme mangando da velha, que dizem foi garçonete na santa ceia." Robério corrigiu a esposa Dita. -"Maldade. Ela não é tão velha assim. É bem conservada e tem privilégios, como também grandes responsabilidades. Não deve ser fácil ser rainha, tanta formalidade e compromisso, tanta vigilância e opulência. Acho que ela daria um pote de ouro pra ter um dia de liberdade, passear tranquila num shopping, ir na feira, fazer um piquenique, escolher sua própria roupa, comer um espetinho na esquina. A rainha viu as guerras, os presidentes Kennedy, Reagan até o Trump. Viu os vários papas, várias copas do mundo e olimpíadas. Viu Elvis, Beatles, Rolling Stones, Queen, a queda do muro de Berlim e tantas outras coisas. O nascimento da tevê colorida, internet, email. Isso deve ter sido massa." Robert traduziu e sua tia sorriu. -"Minha preta. Por favor, faça um suco de pitanga pra gente? Eles nunca tomaram suco de pitanga. A rainha tomou, quando esteve no Recife em 1968." Dita trouxe um prato de pastéis pras visitas. No sofá, Robério contou mais um pouco do que lembrava a Robert. -"No Rio, a rainha escutou músicas ao vivo, de Elza Soares, Simonal e Jair Rodrigues. Levou dezenas de discos na bagagem. Naquela época, em novembro, ainda havia o estado da Guanabara." Lembrou Robério. -"Ela parece a rainha!" Insistiu Dita. -"Muitas se parecem com a rainha, minha amiga. Toda vovó inglesa se parece com a rainha. Acha mesmo que a rainha sairia lá da Europa pra vir ao Brasil e ninguém percebesse?! Não viriam mais de 50 pessoas na sua comitiva? A imprensa estaria aqui, se esmurrando por uma foto!" Disse Robert, de olho na jarra de suco de pitanga. Ela serviu o suco. -"Red. Beautiful." Disse a tia de Robert, tomando o suco devagarinho. Ela pôs a mão no braço do sobrinho. -"Como diz, delícia." Robert sorriu. -"Que delícia, um deleite, senhor Robério. Agora sei porquê a rainha Elizabeth ficou maravilhada, esse suco é muito bom. Refrescante." Robério pediu licença e foi até a cozinha. Robert guardou o gravador. Robério levou-os até o quintal. -"Lá estão as pitangueiras. Uma se chama Lilibeth, apelido da rainha quando criança, na outra, pus o nome de Diana." Explicou Robério, emocionado. -"Quando voltam pra Europa?" Perguntou Robério. -"Na segunda feira. Vamos até São Paulo, onde temos parentes. " Respondeu o rapaz, servindo-se com mais suco. -"Aqui tem polpa de pitanga, meu amigo. Vão levar de presente geleias de pitanga e mudas de pitangueiras. Podem levar, se quiserem." Robert agradeceu. -"Muito obrigado, amigo. Minha tia está feliz, de verdade. Não vamos esquecer de sua hospitalidade. Que Deus o abençoe." Robert e a tia se despediram. Robério ligou para Valdecir. -"Me espere na lanchonete. Vou ganhar de você na sinuca." Dita abraçou o esposo. -"Robério, será que aquele espantalho não era a rainha da Inglaterra?" O homem deu uma gargalhada. -"Com aquele agasalho fuleira? Nada, é a tia pobre do jornalista, o tal Robert. Deixe de caraminholas! Levaram toda a polpa de pitanga, que estava aí no freezer. Foi até bom, ia acabar estragando." Robério entrou na lanchonete, onde o amigo o esperava. Uma limusine passou atrás dele. Na esquina, um segurança saiu. Robert e a tia entraram no carro. -"Acompanhamos tudo de longe, agente Robert. Escutamos tudo pelos aparelhos de espionagem." Robert colocou os óculos escuros. -"Positivo, agente 009. Missão cumprida, operação pitanga foi um sucesso." Os seis agentes na limusine estavam satisfeitos. O carro seguiu para o hotel. Pouco tempo depois, outro veículo seguiu para o aeroporto. Quatro agentes ao lado da tia de Robert, agora com um vestido florido, óculos coloridos e uma peruca ruiva. -"A senhora Dawsom voará no seu jato particular. Temos ordens para escoltar a cantora até a pista." Disse o agente Robert a oficial do aeroporto. A policial leu os documentos. -"Sigilo internacional. Força Aérea Inglesa?! Liberado, agente Robert." A mesma policial pilotou o carrinho que levou a senhora Dawsom até o jato. -"Certamente essa é a rainha Elizabeth disfarçada. É a única pessoa do mundo que dispensa passaporte pois ela é uma instituição." Pensou a policial. Estranhamente, nos dias seguintes, a rainha Elizabeth suspendeu seus compromissos. -"Mummy, quer dizer, a rainha quer descansar. Eu a substituirei por enquanto." Disse o príncipe Charles a imprensa, no palácio de Buckingham. -"Robert, que acha de enviar um presente aos nossos amigos no Brasil. Ah, eu estava com tanta saudades. Foi maravilhoso, em 68 e agora." O mordomo sorriu. -"Permita-me discordar, soberana. Se a imprensa descobrir vão tirar a paz daquela família. Deixemos como está. Que ninguém saiba dessa aventura, esse bate e volta maluco. " A rainha concordou. -"Foi arriscado mais foi bom demais. Não tenho mais idade pra isso. Aquele homem lembrou de tudo, do berimbau que ganhei, do navio. Foi mágico. Eles ficaram encantados por mim mas eu fiquei mais ainda pelo Brasil. Vamos plantar as mudas de pitangueiras no jardim do palácio de Buckingham. Não poderei colher pitangas mas meus netos certamente vão colher e se encantar, como eu." Setembro de 2022, Robério chegou da creche, onde tinha deixado a neta de sete anos. A esposa no sofá. -"Ela morreu." Robério sentou-se. -"Quem morreu, mulher?! Ela não respondeu. Robério viu a foto da rainha Elizabeth na tevê. A trajetória, as histórias, as viagens da monarca. -"Pra mim, foi ela que veio aqui. Você discorda mais eu acho. Era ela." Robério riu. -"De tanto você falar, vão achar que é verdade, minha preta." Robério tirou os óculos e o lenço, limpando os olhos marejados. -"A rainha se foi. A rainha Elizabeth que gostava do Brasil." Robério foi até o quintal. Os pés de pitanga, sem fruta nenhuma. Valdecir chegou e perguntou pelo amigo. -"Tá lá no quintal, Valdecir. Tá chorando as pitangas pela morte da rainha. " Valdecir encontrou Robério olhando o céu. -"Eu plantei essa pitangueira no ano que ela veio, Valdecir. Trouxe as mudas lá de Boa Viagem. Essa outra, plantei na semana da morte da princesa Diana." Eles se abraçaram. -"Era ela mesmo, Robério." Disse Valdecir. -"Certamente. Eu soube assim que a vi chegar na praça mas era questão de segurança que nada percebessem. Certamente souberam daquela matéria antiga da tevê. Com certeza nos monitaravam, antes de fazer contato. Tive que me segurar, todo esse tempo, pra não estragar tudo." FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 11/09/2022
Reeditado em 15/09/2022
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