Um Café e um Morto (Arte em Cena - Augusto dos Anjos)
O forte odor do cachimbo logo pela manhã acompanhava o pão com manteiga e o café entre dois amigos que há muito não se viam.
- Lembra do Padre de Serra? - Falou o mais grisalho.
- Lembro sim. Ele tá bem? - Respondeu curioso o mais barbudo.
- Desde aquele dia no cemitério que eu não tenho notícias dele, nem do povo que tava lá.
- Mas o povo se mudou da cidade. Só fiquei por aqui por morar longe ainda, aqui no sítio.
- Pois me conte o que se passou depois que fui embora.
- Naquele dia que o morto levantou no cemitério, a cidade toda se reuniu pra ver. Chamaram o Padre e todos os mais velhos e as rezadeiras também. O coveiro foi o primeiro a passar mal, mesmo acostumado. As crianças choraram todas as noites com pesadelos. Mas ainda lembro que uma pessoa estendeu a mão ao morto.
- Chico, filho de Betinha.
- Sim.
- Chico, era um cabra bom. Educado, ele viu que o defunto não tava morto. Estava, mas não estava. Ele não sabia explicar, nem eu sei ainda o que era. Mas estava de pé, e queria falar.
- Chico levou o morto pra casa. Eu passei lá uma vez, estavam sentado à mesa, os dois. Como se conversassem sobre a vida. Engraçado né?
- Até aí tudo bem, meu amigo. Quando fosse embora pra São Paulo, Chico ainda cuidava do morto. Procurava descobrir quem era e de onde veio. Só sabia de uma coisa; Ele foi enterrado aqui por engano e queria voltar. Mas não sabia pra onde.
- E como sabiam disso?
- O defunto escrevia. E escrevia bem. Usava palavras grandes e difíceis.
- Foi mesmo?
- Sim. Ainda tem um escrito dele lá na casa de Chico.
- Vamo lá, quero ver isso.
Enquanto se arrumavam no carro velho, a conversa continuava.
- O morto era educado, tinha maneiras boas. Mesmo com o Padre indo lá todo dia rezar pelo exorcismo dele. O defunto não perdia a paciência nem retrucava. Só ficava ouvindo e murmurando. Depois de um certo tempo as pessoas pararam de ir lá visitar. Acostumaram com ele vivendo morto por aí. Se abestalhava com as coisas modernas da cidade, a tevê grandona lá de Chico, ele olhava como criança. Se pudesse falar, certeza que ia ter um telefone desses novos. Mas ele gostava de escrever.
- Não botaram ele num computador não? Há há há
- Botaram. Ele não gostou do teclado, os dedos rangiam. Ele preferia usar caneta e caderno mesmo. Só assim se comunicava. Mas não falava nada com nada. Só falava mal de tudo. Era um ingrato. Você vai ver.
Já na antiga casa do velho Chico, os dois entram como se fossem convidados. A casa vazia e abandonada, ainda tinha os móveis antigos e o cheiro de novo.
- Tá aqui, nesse caderno velho onde ele escrevia, olha só:
Aqui, no futuro do inferno,
Onde o metal moldado dita a
vida cotidiana maldita,
numa tela de mundo moderno.
A morte da forma erudita,
escritas em tom de alento,
há quem teme o momento
e na ciência desacredita.
Sou eu, o corpo seco.
Morando num boteco,
vítima de um ritual.
Mesmo sob o sol da tarde
Eu sei que a carne arde,
e ainda fede igual.
- E quem era esse morto? Um cientista?
- Não sabemos. Só não era nenhum Anjo.
(Brincadeira para o concurso Arte em Cena, Augusto dos Anjos - ao qual não posso participar)