ENÍGMA ASSOMBROSO

ENIGMA ASSOMBROSO

BETO MACHADO

A escuridão daquela noite não se apresentava como algo compreendido ou aceito, de bom grado, pela população da Serra do Mendanha. Um povo laborioso com descendência e ascendência no DNA de imigrantes europeus, principalmente, no período final da segunda guerra mundial. É uma praxe, na região, a “contação” de estórias escabrosas, pelos mais velhos, para assombrar crianças e jovens, nas noites enluaradas ou não. Aboletados em banquetas espalhadas pelos quintais, ouvia-se coisas de arrepiar o cangote, até dos mais corajosos.

Elvira, grávida em estado adiantado, aguarda o marido chegar do trabalho para descer, com ele, até à casa dos seus pais. Seu bebê lhe havia sinalizado duas vezes, durante o dia, que queria ver a luz do nosso mundo.

Elvira, uma jovem religiosa, pedia a Deus que fizesse o bebê “segurar as pontas” até o dia seguinte. Que ele esperasse, pelo menos, até o alvorecer.

--- Deus, meu Deus, não permita que minha filha nasça sob essa escuridão. Sinto prenúncio de assombro no meu coração.

A vizinhança de Elvira mantinha, com certa reserva, interação com o jovem casal.

Paulo Henrique tinha ciúmes até das roupas que Elvira vestia. Mas como ambos eram de família de bem, os defeitos dele eram vistos de rabo de olho. Até as moças evitaram conversar com Elvira, na presença de Paulo Henrique. Nada disso serve de empecilho para a manutenção de uma amizade respeitosa que rege, até hoje, aquela gente de viver bucólico, num recanto mais parecido com um paraíso.

Maria Eulália dava mais sinais que tinha pressa de sair da bolsa d’água para interagir também. Elvira vai ao portão carregando um tamborete numa das mãos e, com a outra, massageia a barriga. Senta a observar a rua deserta. Olha para o céu abandonado pela lua e pelas estrelas. Paulo Henrique que não chega. Sente o desespero se aproximar. Súbito, surge um homem trajando roupas brancas, vindo do topo da serra. Não era conhecido. Elvira imagina que fosse freqüentador do Centro Espírita de Tia Bazinha, bem lá no alto. Também não era. O homem parou diante dela e foi logo direto ao assunto.

--- Boa noite, jovem senhora.

--- Boa noite, senhor.

--- Seu bebê não tarda a nascer. Mandaram-me aqui para te ajudar no parto.

--- Quem foi que te mandou?

--- Dona Maria Moraes.

--- Já to quase sem forças pra levantar daqui.

--- Eu te ajudo. Vamos lá.

O que Elvira imaginava que fosse fraqueza, na verdade era a intensidade das dores, a mitigar seus movimentos. Foi até à sala da sua casa amparada pelos braços do desconhecido. O homem de branco, enfim, se identificou:

--- Sou o enfermeiro Carlinhos. Por favor, senta aqui no sofá e me permita ir à tua cozinha para colocar água pra ferver e esterilizar meus instrumentos de trabalho.

--- Fica a vontade, Carlinhos. Deus haverá de te abençoar por tua bondade.

--- É minha obrigação. Devo sempre cumprir as ordens do meu Superior.

A essa altura, as pessoas que trabalham longe da serra começam subir em grupos tagarelas, cujo falatório ecoa entre a vegetação verde musgo que cobre o maciço do Mendanha, separador de duas regiões que abrigam a carência social de dois povos. O da Zona Oeste Carioca e o da Baixada Fluminense.

As contrações de Elvira aumentam. Carlinhos procura acalmá-la, enxugando o suor de seu rosto. Ouve-se um barulho de carro subindo. Carlinhos vai à janela e vê dois faróis se aproximando. Corre ao portão e intercepta o veículo. É uma senhora que está ao volante e outra no banco do carona. Ele explica a situação. Pede ajuda. O carro estaciona e as senhoras saem. Carlinhos se identifica e elas se apresentam.

--- Sou Maria das Mercês, às suas ordens.

--- Zilá, parteira... Tá bom pra você?

Dona Zilá demonstra logo seu bom humor, vai entrando, sem se anunciar, pois conhece os donos da casa. Ela fez a maioria dos partos ocorridos na serra. Inclusive o da mãe de Elvira. Dona Zilá foi a primeira pessoa a tomar Elvira nos braços.

As contorções de Elvira, provocadas pelas contrações, remeteram a memória de dona Zilá a muitos anos atrás.

Dona Maria das Mercês inicia uma oração. As dores de Elvira abrandam. Dona Zilá leva para a sala a água fervida, que estava sobre o fogão. A janela aberta mostra a escuridão da noite para mãe de Maria Eulália, que já está chegando. Esse nome foi dado pelo pai, logo após o resultado do exame que comprovava o gênero do bebê.

Elvira fixa seu olhar no vão da janela e a movimentação dos galhos das mangueiras, no quintal, iludem sua visão. Viu vários vultos voando por entre as folhas, inclusive Carlinhos levitando, abrindo e fechando suas asas douradas. Ela fechava os olhos e a cena continuava. Já estava registrada na mente. Por que as asas eram douradas, se perguntava? Sem resposta, ela desiste de decifrar aquele enigma, desviando o olhar para o outro lado. Mas o assombro persiste. Agora de uma maneira positiva. Como se fosse um bálsamo. As dores se foram como que por encanto. Um leve e involuntário sorriso brota no semblante de Elvira. Dona Zilá acha muito estranho, uma parturiente sorrindo com o seu bebê a ponto de ver a luz desse mundo doido.

Nem dona Zilá, nem dona Maria das Mercês notaram a ausência de Carlinhos. Ele havia lhes pedido ajuda e não substituição. Mas a força do hábito, de trabalhar sem a presença de homens, contribuiu para que elas se esquecessem dele.

Súbito, Paulo Henrique adentra ofegante pela porta da sala, com os olhos arregalados.

--- Dona Zilá, tudo bem com a Elvira?

--- Tudo. Mas a saudade que ela sente de você, quando você não está em casa é infinitamente menor, hoje, do que as dores das contrações para o nascimento da filhinha de vocês... Não entendeu nada, né? Pode dizer... Hoje é tudo perdoado... Vai lá. Faz um cafuné na sua amada. Isso faz muito bem pra ela.

--- Oi, amor. A enfermeira que esteve daqui, falou comigo lá no boteco do Bené e me alertou do seu estado... Vim voado.

--- Enfermeira? -- perguntaram as três mulheres em uníssono.

--- Sim. De uniforme branco e tudo.

Dona Zilá e dona Maria das Mercês se entreolharam, descrentes do que ouviram. Elvira, sem olhar para o marido, balbuciou:

--- Já pode parar de beber, heim, Paulo.

Dona Maria sente um arrepio no cangote e coloca o dedo indicador, na posição vertical, unindo os próprios lábios, na direção de Paulo Henrique. Dona Zilá vai à cozinha e vê, sobre o mármore da pia, as ferramentas de trabalho de Carlinhos. Seu cangote também se arrepia. O silêncio só não é total, devido os gemidos de Elvira, que retornaram. Agora com mais intensidade. Dona Zilá vai, de novo, à cozinha e traz uma ferramenta de trabalho do enfermeiro Carlinhos que esteve ali. Mostra pro Paulo Henrique que também se arrepia, ao ler o nome gravado no aço inoxidável: CARLINHOS. Elvira se lembra do nome de mulher que mandou Carlinhos lhe ajudar no parto.

--- Paulo, você conhece alguma Maria Moraes? Foi ela quem mandou o Enfermeiro Carlinhos vir aqui.

--- Maria Moraes era minha avó. Já falecida há mais de quinze anos.

--- Deus nos defenda de todos os males! – Dona Maria das Mercês põe as mãos para o céu e se ajoelha em orações.

--- Amém! – Dizem todos, convictos que estava diante de uma situação sobrenatural.

Dona Zilá sente que já é hora do trabalho solitário das parteiras. Pede a Paulo que se retire do recinto, por alguns minutos.

Paulo Henrique é um homem de sangue quente. Não leva desaforos pra casa nem de casa pro boteco. Tinha sido pára-quedista do Exército Brasileiro. Pediu baixa, por aconselhamento, devido à idéia fixa de querer eliminar um sargento do seu regimento, que “pegava no seu pé”, por não poder pegar na sua “estrovenga”, num dos vários exercícios que sua companhia praticava na Floresta do Camboatá e no Gericinó. O sargento perdeu aquela oportunidade, mas mantinha a esperança. Paulo Henrique preferiu abandonar a oportunidade de formar e seguir uma carreira militar.

Hoje ele receia ser chamado de homo fóbico por não tolerar assédio sexual que não venha do gênero oposto ao seu. Ele não se vê no time dos contra, mas, também, não se permite jogar no time a favor. Ele se sente enquadrado no rol do grupo “casca grossa”. Equilibra-se numa neutralidade perigosa e desnecessária. Sua estrutura corporal avantajada e o jeitão de troglodita não o impedem que ainda se assombre com as estórias escabrosas contadas pelos moradores mais antigos da serra e ainda são contadas pelos remanescentes. Entre essas estórias está a que fala de um personagem sobrenatural com o mesmo nome gravado no aço daquela ferramenta usada por enfermeiros.

Elvira, mesmo sofrendo as dores do parto, percebe uma mudança no semblante do marido. Ali, ele expunha uma imagem terna, diferente do gigante sisudo do dia a dia no trabalho, nos botecos e em casa. Começava, naquele dia, a transformação de uma pedra bruta numa pedra polida. Confirmando a tese que diz: “o melhor ourives é o tempo”.

Dona Zilá dá uma olhada no despertador, ao lado da TV, sobre a cômoda. Posiciona melhor as pernas de Elvira e inicia o parto propriamente dito.

Paulo Henrique sai pela porta da cozinha, rodeia o quintal, tentando concatenar as idéias, dá de mão numa banqueta e vai se sentar no portão, exatamente onde Elvira havia se sentado, antes de começarem suas dores. Paulo não demonstra nenhuma estranheza com a escuridão. Parece não ter percebido aquele fenômeno. Seu pensamento agora era decifrar como a tal mulher, vestida de enfermeira sabia seu nome e que sua mulher tava grávida. Repentinamente, aparece uma chance de ele desvendar aquele enigma. Carlinhos vem subindo a rua. Paulo Henrique se levanta. Coloca-se em posição de combate, pois nunca vira aquele cidadão. A medida que Carlinhos ia se aproximando Paulo tremia e se arrepiava. Aquela imagem não lhe parecia de um ser humano. Parecia uma sombra se movimentado. Ele já tinha visto uma enfermeira vestida de branco lá no boteco do Bené e agora vinha um cara na sua direção, também, de branco.

--- Boa noite, senhor.

--- Boa noite, Paulo.

--- De onde a gente se conhece?

--- De andar por aí.

--- Não me lembro de ter visto você outras vezes.

--- Não há necessidade. Daqui a alguns minutos vamos ouvir o primeiro choro do seu bebê.

--- Como sabe disso?

--- Sou Carlinhos... Sou enfermeiro. Tenho alguns instrumentos de trabalho lá na tua cozinha. Pode pegá-los pra mim?

--- Posso sim.

Paulo Henrique entrou no seu quintal, com alguma dificuldade de caminhar, devido a uma bambeza nas pernas e uma tremedeira no tronco. Jamais tivera essas sensações. Considerado um ser com saúde de ferro, agora parecia com um carro de quatro pneus arriados. Entrou pela porta da cozinha, pegou os instrumentos de trabalho do Carlinhos, ensacou-os e voltou ao portão de imediato. Suas pernas bambearam mais ainda quando deu de cara com a enfermeira que o avisou do estado de Elvira, lá no boteco do Bené. Um tanto confuso, Paulo Henrique a cumprimenta.

--- Boa noite. Onde está o Carlinhos?

--- Boa noite. Ele me pediu que eu pegasse pra ele, até que o bebê nascesse.

Paulo Henrique arregala os olhos, já embaçados, põe a sacola nas mãos da enfermeira e vira-se para olhar através da janela da sala. Já não vislumbra mais nada dentro da sala. Neste instante, ouve-se um choro de bebê. Paulo Henrique vira-se para se despedir da enfermeira e quem é que está no lugar dela? Carlinhos. Aquele brutamonte não desmaiou de sorte. Não deu nem mais uma palavra. Sentou na banqueta, fechou os olhos e dormiu. Foi despertado algumas horas antes que as duas senhoras se retirassem para suas casas, tendo deixado Elvira e a neném se conhecendo, sem deixarem de lhe fazer algumas recomendações, mais que necessárias.

--- Oi, Paulo. Levanta daí e vai conhecer tua filhinha. Ela é muito linda. É a tua cara. Até amanhã. Dá um jeito de avisar os pais da Elvira e os teus também.

Paulo, ainda sentindo os olhos embaçados, fazia força para se lembrar dos nomes e das fisionomias daquelas duas senhoras que o miravam com cara de piedade. E ele conseguia “ouvir” o pensamento delas:

--- Coitado! Um homem tão bonito, trabalhador, jovem e já entregue a esse vício terrível que é o alcoolismo.

As duas senhoras iam saindo na mesma velocidade que ia chegando o sono de Paulo. Um sono tão grande quanto seu corpo. E, desse empate de tamanhos, surge um assombroso pesadelo para complicar ainda mais a situação daquele pai de primeira viagem.

No sonho macabro Paulo é despertado por um rapaz que se apresenta como Carlinhos. Por mais que Paulo forçasse sua memória, no sonho, ele não reconhecia o jovem. Carlinhos, vendo a fragilidade de Paulo, tratou logo de executar seu plano. Auxiliou Paulo Henrique a se levantar da calçada, pois ele já havia dispensado o tamborete, assim que as duas senhoras se retiraram estrada acima.

Carlinhos não só o ajudou a levantar como o conduziu até a sala da própria casa. Paulo Henrique era um homem ciumento aos extremos mas, no sonho, permitiu que Carlinhos entrasse em seu quarto e tomasse nos braços sua filhinha. Paulo achou muito estranho que Elvira também entregasse a filha para os braços de Carlinhos, sem esboçar nenhuma objeção. E ele também se sentia sem condição de reprimir os gestos daquele estranho.

Tanto os sonhos quanto os pesadelos têm vida própria. E não obedecem a ninguém. Paulo, embebido pelo sonho, gostaria que tudo terminasse bem. E que fosse um sonho. Pois mesmo sem ele saber, aquilo era um sonho. Mais que isso. Era um pesadelo. Diante da passividade do papai soneca Carlinhos, ainda segurando o bebê nos braços, se despede de Paulo e de Elvira, sai porta a fora e some no quintal, antes de abrir o portão.

A mudança do tempo trouxe um forte vento e uma temperatura muito baixa para os padrões daquele verão quentíssimo.

Cai um jenipapo ao lado de Paulo que o desperta mais que assustado. Apavorado; não pelo barulho da fruta se esborrachando no chão, ao seu lado, mas assombrado pelo rapto de sua filha, ocorrido no pesadelo.

Ao levantar do chão, onde dormiu como dormem as pessoas em situação de rua, em quase todas as cidades do nosso Brasil, sua consciência começa a lhe cobrar.

--- Porque não dormir na sua cama, ao lado de sua mulher e de sua filha, no seu primeiro dia de vida?

Essa pergunta feita por sua consciência é tão cruel quanto aquela impotência que se apoderou de Paulo no pesadelo. A diferença gritante é que, agora, ele está acordado. E a despeito de ele estar curtindo uma ressaca cavalar, a alegria de ver um pedacinho seu, ao lado da mulher que ama e por ela é amado, na cama que não sentiu seu cheiro, justamente na primeira noite de Maria Eulália, põe alguns pensamentos desconectados da sua realidade naquele momento.

Paulo não sabe por quais cargas d’água lembrou-se de um dito popular muito repetido por sua mãe: --“Quem nasce na escuridão da noite, gosta das coisas sempre às claras”. Mas, no fundo, A preocupação maior de Paulo, a partir de agora, é com o futuro de um pequenino ser que ele e Elvira colocaram nesse mundo hostil e carregado de incertezas. Mas ele tem uma certeza: grande parte do dinheiro que ele despende nos bares e nos encontros dominicais com amigos, nos campos de futebol de peladas, deverá ser direcionada para as despesas com sua filhinha.

Elvira dorme o sono dos justos. Maria Eulália também. Parece sonhar com os anjos. O menor ponteiro do despertador sobre a cômoda se aproxima do número quatro. Num dia normal ele já estaria se preparando para descer a serra, rumo ao trabalho. Mas aquele dia era muito especial para Paulo Henrique e Elvira. Eles precisavam apresentar a Maria Eulália o clarão da luz do Sol. O Rei dos Astros. O alimentador de todo aquele verde que cobre a Serra do Mendanha, sustentáculo da produção natural de oxigênio e inibidora dos gases que provocam o efeito estufa, por toda aquela região.

Paulo encorajou-se e, meio desajeitado, deitou-se lentamente em sua cama, ao lado de Elvira. Súbito, lembrou-se do banho. Levantou-se e dirigiu-se ao banheiro. Fez sua higiene corporal e voltou para a cama, onde dormiu até às dez horas da manhã.

Essa estória é de conhecimento público naquela região do Complexo Mendanha. O personagem Carlinhos permanece no inconsciente coletivo daquele povo desde quando surgiu o boato de que o menino seqüestrado, de nome Carlinhos, teria sido morto e seu corpo jogado para os porcos, em um sítio no alto da serra do Mendanha.

Depois de muitos anos Paulo Henrique, Elvira e Maria Eulália vivem numa invejada felicidade no alto da serra que os viu nascer e crescer, respirando o ar puro de um paraíso verde e ouvindo estórias escabrosas, contadas por seus ascendentes, com o objetivo de amedrontá-los ou diverti-los.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 07/09/2022
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