O Ritual
Éramos jovens, entre vinte e vinte e dois anos, andávamos sempre juntos. Quatro garotas e quatro rapazes. Mas nunca houve namoro entre nós. Apenas amizade.
A gente se conhecia desde a infância, sempre fomos vizinhos. Naquela época, em meados da década de 1970, não era muito comum uma amizade tão próxima entre garotas e rapazes, mas a gente nem ligava. Numa cidade pequena, muitas pessoas achavam que havia mais que amizade entre nós. Muitas pessoas naquele lugar gostavam de ser fiscal da vida alheia, infelizmente inclusive nós.
Nós nos divertíamos pra valer, mas com responsabilidade. Sabíamos até onde podíamos ir nas nossas farras e tínhamos bom senso e limites. Todos nós estudávamos e levávamos a vida a sério.
Mas quando o assunto era contestar a gente não conhecia limites. Algumas vezes chegamos às raias do mau gosto e da falta de respeito. Mas na época a gente não enxergava isso. Quando não concordávamos com alguma coisa, a gente contestava e fazia duras críticas. Achávamos que tínhamos maturidade e autoridade pra julgar, condenar e aplicar a pena.
Naquela época acreditávamos que éramos os donos da verdade e que podíamos contestar e zombar de tudo aquilo que não cabia em nossa mente limitada e preconceituosa.
A gente era de família católica fervorosa e muito conservadora.
Não éramos ricos, pertencíamos à classe média e nossos pais trabalhavam muito para nos sustentar, dar uma educação de qualidade e almejavam nos ver formados em uma universidade.
Naquela sexta-feira, estávamos voltando de uma festa por volta de meia-noite. Ao passarmos perto do cemitério encontramos um grupo realizando um ritual. Começamos a zombar daquelas pessoas e do que estavam fazendo. Não era a primeira vez que víamos aquela cena e sempre estávamos tentando atrapalhar e mostrar que estavam errados. Eles diziam que aquele ritual era para o bem das pessoas. Mas nós não acreditávamos naquilo e o que queríamos era contestar, tripudiar e tumultuar.
A gente tinha bebido um pouco, mas estava na perfeita consciência e sabia o que estava fazendo. A gente ficou por ali observando. O plano era esperar que eles fossem embora e ir lá desfazer toda aquela oferenda que fizeram, quebrando o que pudesse, espalhando o resto e provar que aquilo tudo era uma bobagem e crendice.
E assim fizemos. Mas ao nos aproximarmos da oferenda um torpor, um estranho transe tomou conta de mim e depois os outros relataram que o mesmo ocorreu com eles. Eu não vi mais nada.
Horas depois fomos acordados por policiais.
Estávamos deitados em frente ao portão principal do cemitério completamente nus e formando com nossos corpos uma cruz e um semi círculo acima dela. Nossas roupas estavam dobradas ali perto. Uma cena grotesca, constrangedora e vexatória. Algumas testemunhas ali presentes riam, outras se escandalizavam. Não tínhamos a mínima idéia de como fomos parar ali, naquela situação. Estávamos totalmente atônitos e envergonhados.
Um dos policiais disse:
-Levantem logo e vistam suas roupas, vamos curar essa carraspana na delegacia.
Um de nós disse:
-Nós não estávamos bêbados. Não sabemos como isso aconteceu.
-Todos dizem o mesmo. Sempre é obra do acaso.
O fato é que acabamos indo parar na delegacia e não fomos parar na cadeia por não termos antecedentes criminais. Mas ouvimos um belo sermão do delegado que ainda riu e debochou da nossa história.
-Quer dizer que uma entidade espírita tirou as suas roupas e os deitou ali na porta do cemitério? Esta história fantasiosa vai ter que entrar para o meu livro de memórias. Já ouvi muita lorota em minha vida profissional, mas esta história é de uma criatividade que causaria inveja em muito malandro. Ou teria sido um delírio alcóolico?
-Nós não bebemos.
-Todos dizem isso. Já estou escolado.
-Nós estamos falando a verdade.
-Todos falam a verdade. O que vocês precisam é de um pouco de juízo. Parem de dar trabalho para a polícia e desgosto para seus pais.
Apesar de sermos maiores de dezoito anos, ele chamou nossos pais. Eles ficaram constrangidos e decepcionados com a gente.
Mais tarde toda a cidade já estava sabendo do acontecido. Como sempre acontece, a imaginação das pessoas não tem limites. Falavam em uma orgia macabra no cemitério, falavam em depravação e desrespeito de nossa parte. Estávamos morrendo de vergonha.
Ninguém acreditava em nós. Muitos diziam que estávamos sob efeito de drogas, de bebidas ou algum outro alucinógeno. Por algum tempo fomos o principal assunto na cidade. Perdemos amigos, sofremos os mais diversos tipos de preconceitos.
Pra falar a verdade nem nós mesmo sabemos o que ocorreu naquela noite.
Pesquisei muito e soube que a cruz e o meio círculo simbolizam muitas coisas conforme a crença. Cruz pode anunciar nova dimensão dinâmica e inicio de libertação. O que se encaixava perfeitamente ao nosso momento de intransigência. O meio círculo pode anunciar a busca incessante pela Luz Divina e representa a alma, o que também servia a nós. E o fato de estarmos nus talvez queira mostrar o quanto vulnerável somos e o quanto somos frágeis e limitados. Não somos perfeitos e não temos o direito de apontar o que julgamos errado no outro.
Demorou um bom tempo para que aquele fato caísse no esquecimento e pudéssemos ter uma vida normal.
Alguns de nós perderam a namorada, o namorado ou uma paquera que poderia ter sido um grande amor e companheiro na vida.
Aquele acontecimento mudou nossas vidas, mas nos ensinou que todos merecem respeito, que todas as crenças e opiniões diversas das nossas têm que ser respeitadas, que não somos donos da verdade e que não nos cabe impor nada a ninguém. Aprendemos que pra contestar não precisamos invadir o direito do outro.
Ainda hoje quando nos lembramos daquele acontecimento sentimos um arrepio percorrer nosso corpo. Talvez tenhamos brincado com coisa séria. Nunca entendemos aquele fenômeno sobrenatural que nos aconteceu e nunca ninguém acreditou em nossa história.
Nossa amizade permanece até hoje, temos nossas famílias e ninguém mais se lembra daquele episódio lamentável.
Pagamos um preço alto por nossa intransigência, intolerância e preconceito.
(Obra de ficção. Um fantasia com um toque de sobrenatural.)