Do início de tudo
Estava tomando um banho refrescante quando foi tomada de súbito e no susto por uma imagem que se projetava à sua frente por causa da meia luz que adentrava a janela próxima ao box. Era a sombra de um passarinho. Logo virou-se para conversar com ele, mas sua indelicadeza no gesto fê-lo alçar voo. Ela o seguiu com o olhar complacente e admirado até encontrar uma nova cena que pudesse chamar sua atenção. Nesse ponto já havia desligado o chuveiro.
Eni notou algo que quase lhe hipnotizara: um homem montado num cavalo desfilava tranquilamente pela rua asfaltada, em meio aos carros ali circulantes. Era uma cena deveras exótica e ela riu do ocorrido, embora quisesse mesmo era descer a escadaria do seu prédio e pedir àquele rapaz que não fustigasse mais o pobre animal encarcerado pela sela e açoitado pela vara. Decidiu não tomar atitude quanto ao acontecimento inusitado “Pobre cavalo, pobre homem!”, foi o último pensamento
acerca do fato. Já era a décima vez que Eni espiava por uma das três janelas de seu apartamento em busca de alguém.
Senhora B não passou uma vez sequer pela rua. O que poderia ter ocorrido? No noticiário digital Eni lia sobre a prisão de uma senhora de 54 anos que mantinha um canil ilegal, sujo, deprimente, com uma quantidade exorbitante de filhotes mal
tratados. Ficou surpresa ao ler que esta pessoa vivia bem perto da sua casa, pois o bairro Candeeiro fora anunciado como local da residência da acusada. Imediatamente Eni recordou-se de Senhora B. Onde ela estava? Será que era ela?
No dia anterior Eni avistou Senhora B arrancando uma flor, daquelas trombetas de anjo, bem amarela e muito solar, e levando-a até a boca. Seu sabor deveria ser peculiar e quem a visse naquele gesto de apetite acharia estranha sua curiosa ação. Talvez fome, talvez coragem, talvez vontade de experimentar algo novo. Mas quem a viu? Apenas Eni podia notá-la. As demais pessoas andavam muito concentradas em seus próprios caminhos.
Ela sempre andava com o mesmo vestido, todos os dias, em todos os momentos do dia, em cada passeio que realizava. A única mudança que havia era de cachorros. Em cada novo passeio lá estava Senhora B com um cachorro diferente preso pela coleira. Ela não fazia questão de disfarçar sua indignação com os cachorros teimosos e, por isso mesmo, andava sempre com algum graveto na mão, mas felizmente andava também com uma sacola.
Certa vez um cachorro atrevido parou na esquina e começou a se coçar e remexer o corpo como quem quer encontrar o melhor ângulo para se entregar à necessidade básica de expelir o que havia ingerido no dia anterior. Senhora B às vezes poderia ser paciente e neste dia ocorreu tal fenômeno. Ela esperava o cão evacuar e, por sorte, o monumento era consistente, o que facilitou quando ela abaixou-se com a sacola aberta, juntou toda a obra do cachorro com uma das mãos enquanto tentava impedir o pobre animal de continuar a viagem puxando-o fortemente pela coleira gasta. Conseguiu pegar todo o excremento, olhou para o lado e para o outro como quem procura por testemunhas e pareceu aliviada por não observar olhos curiosos gracejando-a ou julgando-a, quem sabe.
Eni olhava do alto da sua janela para aquela cena tão familiar e cotidiana. Senhora B sempre passeava com seus inúmeros cães e seu único vestido, embora Eni desconfiasse de que ela tivesse muitos vestidos da mesma estampa. Talvez fosse
questão de gosto! Ou talvez ela realmente não tivesse outra peça de roupa e usasse todo o seu dinheiro para alimentar as dezenas de cães com os quais passeava diariamente. Eni também cogitava que Senhora B fosse uma bruxa, alguém de uma realidade paralela ou qualquer possibilidade mais próxima da fantasia. Mas sempre descartava tudo pois não gostava muito desses assuntos extrafísicos.
Um dia imaginou investigá-la e desceu para ficar à porta do prédio atenta ao momento em que Senhora B surgisse. Não demorou muito até destacar aquela silhueta baixa e rechonchuda que mostrava-se cada vez mais próxima, embora do outro lado da rua. Ela parecia bastante concentrado com o canino grande e malhado que a arrastava pelo caminho.
Eni disfarçou sua curiosidade e virou o rosto para um árvore próxima, enquanto esforçava-se para observar de soslaio os passos da misteriosa mulher a quem denominara de Senhora B. Um susto terrível abateu-lhe os pensamentos, o coração
disparou e o sangue pareceu fugir das mãos e concentrar-se em seu rosto, que agora queimava como se se tivesse sido pega no pior momento da sua existência.
- Bom dia, mocinha! - falou uma voz firme e também suave do outro lado da rua.
Era a Senhora B cumprimentando-a. Eni estava com a sensação de que havia sido pega em flagrante, mas ainda conseguiu retribuir a gentileza “Bom dia, Senhora B.”. Neste instante notou que havia pronunciado o nome que morava apenas em seus devaneios e rezou para que a mulher dona de infinitos cães não tivesse ouvido sua fraca voz envergonhada.
- Então é assim que a mocinha me chama? - perguntou Senhora B com um sorriso gentil e matreiro. - Eu gosto deste nome. - continuou a fala compreendendo a situação espinhosa que Eni parecia ter se envolvido.
- Desculpa… Eu vejo a senhora todos os dias da minha janela. Moro lá em cima neste prédio. - Apontou com a cabeça para o prédio onde estava encostada.
- Venha comigo, vou mostrar algo para você! - sugeriu Senhora B, que além de não ter se incomodado com o nome fictício que Eni lhe dera, não falou o seu nome verdadeiro.
Eni sentiu as pernas tremerem enquanto a curiosidade a arrastava para perto da Senhora B.
- Seu nome é Eni, certo? - A voz dela adentrava com um tom sagaz e, em certa medida, assustador para Eni.
- Como a senhora sabe meu nome? - Conseguiu perguntar enquanto sentia seu corpo mais próximo da misteriosa mulher. O cachorro latiu para ela no mesmo instante em que seus pés congelaram no chão e Senhora B aplacou a desconfiança do cão com um puxão na coleira e um sussurro inaudível. Depois voltou-se para Eni e justificou:
- Este é o Sinistro, o cãozinho mais desconfiado que tenho. Mas por isso mesmo é o mais amado. - falava isto enquanto acariciava Sinistro, que parecia entender e gostar das palavras pronunciadas por sua dona.
- Eu acho que preciso voltar para casa. Minha mãe me espera lá em cima. - um sinal de alerta espumava cada vez mais nos pensamentos de Eni.
- Minha criança, venha. Eu sei que você quer conhecer onde moro.
- Mas… é longe daqui? - Eni perguntava enquanto fazia roteiros de fuga e ensaiava mentalmente formas de gritar por socorro caso fosse intimidada. Por um lado sentia-se ridícula ao pensar tão mal daquela senhora com aparência inofensiva, por outro lado não podia deixar de imaginar a quantidade de cães que ela guardava em sua casa. E se fosse convidada para entrar? Aceitaria ou recusaria? Recusaria, com certeza, ou poderia colocar um pé lá dentro e deixar o outro pronto para correr, caso fosse necessário.
- Você não vem, minha criança? - perguntava a Senhora B enquanto se afastava de Eni de maneira solene e despreocupada.
Eni finalmente saíra dos seus devaneios e pôs-se a seguir Senhora B, todavia ainda estava bastante ansiosa para compreender o motivo pelo qual a misteriosa mulher sabia seu nome.
Ela caminhava sempre um passo atrás da dona dos cachorros e esta continuava seu caminho como se estivesse em companhia apenas de Sinistro. Ainda dá tempo de fugir… Ela não vai nem notar… Pensava Eni, cautelosa. Imaginava manchetes terríveis no dia seguinte “Uma adolescente desaparecida… Uma adolescente encontrada em terreno baldio com ferimentos semelhantes a mordidas de cachorros”, soltou um grito frígido ante este último pensamento, mas Senhora B pareceu notar seu terror e virou-se para ela, enquanto apontava para uma portinhola velha que aparentava dar num corredor.
- Está com medo? - sondou a misteriosa enquanto dirigia-se à portinhola. - Chegamos, Eni. Vamos entrar?
Eni queria dizer que não, contudo parecia dominada pelo magnetismo emanado de Senhora B e pela insana curiosidade que cercava suas cismas há tanto tempo. Parecia finalmente perto de resolver o mistério que ocupava sua mente havia meses. Entraria. O que de tão grave poderia aquela mulher fazer contra ela? Nada, nada, nada… Justificava-se Eni. Uma árvore gigantesca em frente à casa impressionava por sua imponência e beleza. Convenceu-se enquanto pedia licença e postava seus pés depois do portão.
- Eu vou na frente para deixar Sinistro com os outros. Pode vir sem medo, pois os cachorros têm uma casa própria aqui e não vivem em minha sala.
Eni sentia o coração gelar enquanto cada pé seu tentava acompanhar os passos da senhora à sua frente. O vento passava ali mais avassalador e Eni tinha absoluta certeza de que não conseguiria chegar ao fim. Haveria um fim? Aposto que Senhora B está com um sorriso malicioso nos lábios… Talvez tenha encontrado um banquete para seu cães. Os pensamentos iam surgindo com tanta força e terror que Eni deu meia volta e disse para a senhora com voz sufocada “Foi um prazer conhecê-la. Preciso voltar para casa.”. Ensaiou correr, mas paralisou-se ao ouvir a mulher:
- Então você chegou até aqui e não tem coragem de saber o que há lá dentro, Eni? - questionou Senhora B, cada vez mais distante, pois não parou ante a cena de Eni.
- A senhora não vai me fazer mal? - despejou a moça sentindo segurança para admitir seu próprio medo.
- Apenas se você quiser…
A voz de Senhora B estava ainda mais distante, porém continuava firme e resoluta. Ela parecia uma anciã, uma espécie de feiticeira. Restava a Eni entender se seria boa ou má. Mais uma vez seu coração estardalhou-se, mas aquele sentimento de que estava tão perto de ver o que se passava ali dentro parecia gritar dentro de si. O que queria dizer a misteriosa com “Apenas se você quiser”? Isto soou tão fascinante para Eni que ela resolveu voltar e suas pernas a ajudaram numa pequena corrida até alcançarem Senhora B.
- Então você é uma criança curiosa… - sorria para Eni enquanto abria o segundo portãozinho, este de grade. Dessa vez sua voz e seu sorriso pareceram a Eni muito mais simpáticos e confiáveis.
- Eu não sou mais criança. - defendeu-se Eni. - Já tenho 13 anos!
- É por isso que estou aqui. - retrucou Senhora B.
- Sinto dificuldade em entender suas palavras. - admitiu Eni, entristecida.
- Um dia farão sentido, minha querida. Um dia farão sentido...
Falou isso já livre de Sinistro e com as duas mãos libertas. Foram até uma terceira porta e Eni começava a ver que o caminho de volta mostrava-se cada vez mais distante.
- Eu moro aqui. Quer saber o que tem aí dentro? - os olhos de Senhora B faiscavam com um quê de empolgação e suspense na voz.
Eni já havia desistido do medo meio corredor atrás e agora seu impulso era o de saber o que tanto aquela mulher queria mostrar-lhe.
- Quero. Com certeza. - respondeu Eni com a voz mais segura que pôde.
Ouviu o tilintar do molho de chaves movendo-se vagarosamente para a direita enquanto a chave da porta desenroscava a lingueta. Sua respiração parecia suspensa e teve que lembrar a si mesma de puxar o ar para dentro dos pulmões, suas mãos
gelaram e seus olhos ardiam sem conseguir piscar. Não queria perder um instante. Sentiu-se protagonizando um filme fantástico e, quando a porta finalmente escancarou-se, a decepção e o alívio caíram em sua voz.
- Legal. - foi o que conseguira pronunciar. Nada de mais. Uma casinha pequena, singela, muito bem cuidada, com pouquíssimos móveis e um conjunto de chá com um bule de louça branco e duas xícaras que o acompanhavam.
- Estava esperando por você, Eni. Sente-se ali. - falou Senhora B enquanto apontava a cadeira encostada à mesa e defronte para uma das xícaras.
Eni obedeceu desconfiada. Como ela poderia me esperar? Ela nunca me viu antes…Como ela sabe meu nome?
- Você gosta de conversar com seus pensamentos, não é mesmo?
- Às vezes… Hun… Quase sempre… Sempre.
E sorriram as duas. Eni começava a ver traços físicos naquela senhora que ela mesma possuía. Uma pinta significativa no interior da pálpebra direita. Apenas ali, tão perto da mulher misteriosa e sem receio, é que pôde notá-la. Instintivamente levou sua mão ao próprio olho e passou o dedo indicador sobre a pinta saliente, enquanto Senhora B, como um reflexo, fazia o mesmo em sua própria pálpebra.
- Por que a senhora está me imitando? - perguntou Eni em tom de indignação.
- Nós temos muita semelhança, não é criança?
- Eu não sou mais criança. - respondeu Eni com muito mais coragem.
- Você realmente está crescida. Pronta para iniciar sua jornada.
- E qual é a minha jornada? A senhora parece saber de tudo. - provocou Eni enquanto bebericava o chá que, embora parecesse de dias, ainda mantinha-se morno. Estranho!
- Seus pensamentos precisam ganhar forma. - replicou Senhora B, também experimentado o chá.
- O que isso significa?
- Significa o que você já sabe.
- Eu não compreendo tão bem suas palavras, já disse.
- Então… Pegue um papel e um lápis e escreva-as.
- Escrever as suas palavras? - redarguiu Eni, estalando mais um gole de chá em seus lábios.
- Escrever os seus pensamentos.
Eni e Senhora B ficaram alguns instantes observando-se mutuamente. A mulher quebrou o silêncio ao arrastar a cadeira, afastar-se da mesa e pedir a Eni com voz gentil.
- Pegue aquele caderno e aquele lápis ali – apontava para uma estante que Eni notara apenas naquele momento. Obedeceu depressa. Suas mãos formigaram quando tocou o caderno e seus braços pesaram feito um chumbo sendo puxados para baixo.
- Está na hora de você voltar para casa, minha menina. Anote as histórias dos viajores. Eles conduzirão sua estrada.
Foram as últimas palavras de Senhora B.
- Senhora B… Senhora B… - a voz de Eni ficava cada vez mais incompreensível.
O alarme soou esganiçante e Eni correu para desligá-lo. Seus braços ainda estavam pesados, sentia o corpo doer. Dormira de mal jeito outra vez. Correu até a janela e não via nada que pudesse interessar naquele momento. Senhora B não passou uma vez sequer pela rua. O que poderia ter ocorrido? No noticiário digital Eni lia sobre a prisão de uma senhora de 54 anos que mantinha um canil ilegal, sujo, deprimente, com uma quantidade exorbitante de filhotes mal tratados. Ficou surpresa ao ler que esta pessoa vivia bem perto da casa dela, pois o bairro Candeeiro fora anunciado como local da casa da acusada.
Eni saiu disparada escadas abaixo e só parou para tomar fôlego enquanto esperava um carro atravessar a rua. Correu até onde Senhora B a levara e ficou evidentemente confusa ao perceber que não havia portinhola, nem corredor, nem mesmo a árvore gigante que a impressionara em sua visita. O que está acontecendo aqui? Eu não posso estar tão maluca. Não posso! Ou posso?
Eni tocava as paredes das casas entre as quais estaria aquela porta velha como se buscasse evidência da sua realidade. Estava aqui, eu tenho certeza.
- Está dentro, Eni. - uma voz conhecida a acalmou. Mas ela não via ninguém por perto.
Naquele instante compreendeu o que estava acontecendo.
Foi assim que Eni inaugurara sua jornada.