Fim do mundo
Trecho extraído da obra "Os Manuscritos de Wankan - Livro I: Leydam" disponível para aquisição pelo link
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Quando acorda o Sol já está a pino. O calor o banha de suor. A mata fechada e úmida parece sufocá-lo. Ele toma o cantil e verte toda a sua água na boca. Que sede! Parece que as goiabas foram milagrosas, já se sente bem melhor. Suou toda a infecção durante a noite. Sem mais delongas ele volta a Rafaella para mais um trecho de pó.
Pilotou sem pensar em nada. Sua mente estava simplesmente calma e silenciosa. A estrada estava completamente abandonada. Vez por outra algum bichinho atravessava velozmente a pista bem à frente sem que ele pudesse identificá-lo. Finalmente após algumas horas monótonas encontrou um pequeno aglomerado de taperas ao lado da estrada. Não havia posto de combustível.
A gasolina ali era vendida clandestinamente e em precárias condições por um dos moradores, que movimentava o único comércio do lugar: uma ‘venda’. Ali não tinha praticamente nada, mas tinha de um tudo. Leydam fez uma vistoria preliminar nas prateleiras e encontrou utensílios, ferramentas, papelaria, brinquedos, remédios, cachaças e uma infinidade de enlatados e produtos industrializados.
Mais um rincão alcançado e dominado pela praticidade doente da vida moderna. ‘Pau d´arco’ era como a chamavam. Uma pequena vila já em território brasileiro.
– Daqui em diante você vai rodar um bom pedaço sem encontrar absolutamente nada, é bom estar preparado, abastecido e com mantimentos extras – recomendou o proprietário.
Chorar e reclamar nunca encheram a barriga de ninguém e a murmuração nunca foi boa conselheira, então vamos nos adaptar às intempéries da viagem. Se ela se mostra ainda mais desafiadora vamos nos abraçar com ela e mostrar o quanto estamos comprometidos com o projeto.
Em poucos minutos a venda estava tomada de pessoas de todas as idades, crianças, adolescentes, adultos e velhos, que saíram de todos os cantos para pôr as vistas no viajante misterioso. Provavelmente estavam ali todos os habitantes do vilarejo. A criançada se aglomerou em volta do veículo, cochichando e apontando seus instrumentos e acessórios.
O motoqueiro passou por uma bateria de perguntas, um verdadeiro interrogatório, todos curiosos para saberem onde ia aquele maluco, adentrando no meio da floresta com uma motocicleta.
– Você está perdido filho? – pergunta uma senhorinha de olhar gentil.
Antes que Leydam possa responder outro comenta: – Essa ‘mota aí é ingual tratô’, não tem nada que segure ela não.
Ele tenta inutilmente se esquivar dos curiosos que o seguem onde quer que ele vá.
– Daqui você tem que voltar, não tem mais nada para frente não – adverte um homem que descalço e sentado na calçada, toma um copo de pinga. Ao que parece não é o primeiro e não será o último. Todo prosa, a julgar por suas palavras sabe de absolutamente tudo, e é a pessoa mais importante, poderosa e instruída do universo.
Enquanto vai atendendo aos bisbilhoteiros Leydam vai passando a limpo todos os utensílios e ferramentas que trazia consigo: ferramentas para remendo de pneu a frio; alicate; chave de fenda; um pequeno rolo de arame; chaves de boca, allen, tork; bomba de ar; um pedaço de câmara de ar; lanterna; canivete; isqueiro; barbante; fita isolante. Era o que tinha consigo.
Enquanto ouvia as sugestões e dicas para sua viagem foi passando a limpo as prateleiras e pegando o que faltava: 1 frigideira pequena; 1 colher; 1 pacote de estopa; 20 cm de mangueira; 3 galões com capacidade para 5 litros; 10 latas de atum; 10 pacotes de macarrão instantâneo; 1 barra de sabão; 1 bucha; 1 pacote de café; 3 pacotes de biscoito, 1 penca de banana.
Por incrível que pareça não havia água para vender, só refrigerante. Não tem nada mais prejudicial do que xarope gaseificado, cheio de corantes, acidulantes, conservantes. Esse gás que dá sensação de refrescância à bebida nada mais é do que dióxido de carbono, o gás expelido pelo escapamento dos veículos a combustão, produto da queima do combustível. Só para você saber.
O café da manhã servido naquele local era chambaril com mandioca – carne bovina do músculo com o tutano do osso, cozidos com legumes em um caldo bem apimentado. Isso já é um almoço, e não passa das 09:30h da manhã.
Após armazenar tudo o que faltava para a viagem comeu o chambaril com um pouco de arroz branco. Não é bem a refeição recomendada para quem ainda ontem estava prestes a ter com Hades, mas pior seria a fome na estrada, e as próximas refeições não seriam propriamente refeições. Precisava fortalecer o organismo e nutri-lo o máximo possível antes de se lançar à sorte em um território desconhecido.
O certo é comer pouco para pegar a estrada, estômago pesado não ajuda muito. Na hora da digestão ele precisa de mais sangue. A circulação muda. Vai faltar sangue no cérebro, os reflexos ficarão lentos, e será perigoso cruzar meio sonolento tantas pontezinhas de madeira e braços de rio.
Algumas dessas ‘pontes’ são formadas por 2 toras de madeira, uma de cada lado, na distância exata para passar os pneus de um carro. De moto se tornam ainda mais perigosas.
Após o rango Leydam se senta do lado de fora do ‘restaurante’ com um cafezinho na mão. Café é muito bom para despertar. Mas o excesso nunca é saudável. Essa droga – sim, o café é uma droga estimulante – irrita o intestino e pode causar complicações. Isso é tudo de que ele não precisa. Seu intestino ainda não se recuperou daquele óleo vencido de ontem. O uso diária de café implica em prejuízo para a produção de dopamina e na diminuição da massa cinzenta do cérebro. Como disse, excessos.
Enquanto fazia o ‘quilo’ ia ouvindo todas as histórias que ali lhe eram contadas sobre os acontecimentos mais assombrosos da região, seus mitos e lendas. Alguns ‘causos’ eram mesmo cabeludos, dignos de qualquer grande produção de Hollywood. Leydam questiona e desconfia de tudo, mas ao mesmo tempo não duvida de absolutamente nada. Ele entende que não há impossíveis, que tudo está em um grande oceano de possibilidades.
Nós temos muitas limitações sensoriais e não podemos nos dar ao ‘luxo’ de afirmar que algo não exista, ou que algo não seja possível. Contudo, mesmo não descartando nada, Leydam é cauteloso, e analisa muito bem as situações para não ser novamente alvo de enganadores.
Você sabia que seus olhos só enxergam as cores dentro do espectro do vermelho ao violeta? 7 cores no total. Por isso nosso arco-íris só tem 7 cores. Na verdade ele tem uma infinidade de cores, nós é que não enxergamos. Assim quando dizemos ‘luz ultra-violeta’, aquela que causa câncer de pele e provém dos raios solares, ela não é vista pois sua cor está acima do violeta e não a enxergamos.
Da mesma forma a luz ‘infra-vermelha’ que as câmeras usam para imagens noturnas. O gato pode ver no escuro e nós não, pois não enxergamos cores abaixo do vermelho.
Pense comigo, se houvesse agora do seu lado um ser de cor infra-vermelho ou ultra-violeta você não conseguiria vê-lo, correto? Bem aí, do seu lado, assistindo você em silêncio, e você não saberia nunca.
Agora pense que seus olhos só conseguem ver uma média de 25 quadros por segundo. Essa é a velocidade de captação de imagens do nosso organismo. Para você ter uma ideia, a nossa lâmpada caseira pisca 60 vezes por segundo, e é por isso que você a vê acessa. Ela está piscando freneticamente mas você não vê. Todo ser que consiga se mover mais rápido que 25 quadros por segundo pode passar bem na sua frente que você não o verá.
Sabe aqueles momentos em que você sente que tem alguém perto de você, mas não vê nada? Bingo!
É hora de pedir licença para seguir viagem. Uma última conferência na tralha toda. Tudo certo e devidamente amarrado na magrela. Jaqueta, capacete, luvas, sempre nessa ordem. Partida, 2 ou 3 minutinhos para o óleo circular no motor. Coturno bate para baixo. Avante, que só a 1ª marcha é para baixo, e o resto é para cima.
Leydam sai cortando a estrada e levantando a poeira. Os caboclos vão ficando cada vez menores no retrovisor. A molecada ainda corre atrás da moto por alguns metros antes da multidão se dispersar. Olhos fixos à frente, rumo ao Sol que se derrama por entre a copa das árvores que formam o corredor. Atenção redobrada nessa ponte de madeira sem qualquer proteção lateral. Desequilibrar-se aqui significaria desastre certo.