O Chamado
Quando tudo for só lembranças ainda restará alma e espírito em perfeita sintonia.
Muitos dizem que a alma nos liga às pessoas e o espírito nos liga a Deus.
Acordei no meio da noite com uma algazarra na rua. Não estava acreditando naquilo. Levantei e fui até a janela e vi crianças jogando futebol na rua. Fiquei pensando como podia acontecer uma coisa dessa. Como os pais daquelas crianças permitiam seus filhos brincando em plena madrugada. Pensei que provavelmente estavam em alguma festa e resolveram fazer aquele jogo, incomodando a vizinhança.
Estava morando naquele lugar há menos de uma semana.
No dia seguinte comentei com alguns vizinhos sobre o fato do futebol da madrugada.
Pra meu espanto eles disseram que não viram nada. Pensei que podia ter sonhado, mas eu estava bem acordada quando cheguei na janela.
Alguns dias depois a mesma cena se repetiu. Acordei no meio da noite com aquelas crianças jogando futebol no meio da noite e no meio da rua. Pensei em descer lá e ver o que estava acontecendo, mas desisti. Acabei adormecendo.
Comentei com outros vizinhos e eles disseram que não ouviram nenhum barulho. Fiquei espantada e pensando que estava tendo delírios ou visões.
Essa situação continuou. Dias depois lá estavam aqueles pestinhas na rua jogando o futebol, rindo e gritando. E outras vezes. Ninguém dava noticia daquela farra das crianças.
Uma noite eu desci e tentei conversar com eles, mas eles me ignoraram. Não respondiam. Era como se não me vissem ou ouvissem.
Comecei a desconfiar de minha sanidade e também a pensar em algum fenômeno sobrenatural ou espírita. Como eu nunca tive problemas com minha sanidade mental, preferi pensar em algum fenômeno sobrenatural.
Eu trabalhava com um colega que era espírita. Contei pra ele o que estava acontecendo. Conversamos bastante e ele me disse pra fazer a abordagem de outra forma, perguntando se eles estavam precisando de mim.
Eu estava curiosa e ao mesmo tempo incrédula sobre essa situação inusitada.
A cada noite ficava ansiosa e esperando os meninos aparecerem. Mas eles sumiram. Por mais de um mês eu ficava esperando todas as noites. Até que desisti e resolvi esquecer aquele episódio.
Dois meses depois eu acordei na madrugada com a farra dos meninos na rua.
Apreensiva eu desci para falar com eles. No caminho lembrava do que meu colega disse: fique calma, não demonstre medo, insegurança ou ceticismo.
Cheguei na rua e perguntei:
-Vocês estão precisando de mim?
Eles logo ficaram em silêncio me olhando.
-Estou aqui para ajudar vocês. O que vocês querem de mim?
Um deles respondeu:
-Precisamos de ajuda.
-Vocês precisam de orações?
-Mais que isso.
-O que posso fazer por vocês?
-Da próxima vez traga papel e lápis.
Eles voltaram para o futebol.
Eu voltei pra dentro com as pernas trêmulas, mas diante deles consegui manter uma postura firme. Quando voltei a olhar pela janela a rua estava deserta e calma.
Depois de algum tempo eu acordei com o barulho dos meninos. Já estava com papel e lápis separados e desci logo
-Estou aqui. O que precisam que eu faça por vocês.
As quatro crianças se aproximaram de mim. Sentamos na calçada. Eu estava me sentindo como se estivesse em transe.
Um deles que parecia ser o líder começou a falar:
-Escreve tudo aí pra não esquecer.
Há vinte e seis anos nesta rua quase não havia casas ou prédios. Aqui mesmo, onde tem o prédio agora, era um lote em que tinha um campinho onde a gente jogava futebol. Nós e nossos amigos. No fundo do lote tinha um grande quintal de uma casa muito bonita. No quintal tinha muitas árvores frutíferas. Muitos meninos costumavam pular o muro para pegar frutas. O dono, que era muito rico e avarento, não gostava que pegassem as frutas. Preferia que caíssem e apodrecessem no chão a dar pra quem quisesse comer.
Muitas vezes a nossa bola caía lá e a gente pulava o muro e pegava, mas não pegávamos as frutas.
E um dia a bola caiu lá no quintal dele. Era a nossa vez de pegar a bola. Nós quatro pulamos o muro, pois tínhamos muito medo dele. Pegamos a bola e jogamos pra fora. Mas ele nos viu. Veio vociferando impropérios. Jogou um jato de água fria em nós. Nós já estávamos acostumados a escalar o muro e pular do outro lado. Quando estávamos em cima do muro para pular ele ligou o fio eletrificado que ficava em cima do muro e que ele ligava durante a noite para que ninguém tentasse invadir sua propriedade.
Como estávamos muito molhados, descalços e éramos crianças, a descarga elétrica foi fatal. Quando ele viu o que fez, desligou a eletricidade. Mas já era tarde. Na época tínhamos entre dez e doze anos. Foi uma consternação na cidade que era muito pequena.
Toda a população ficou sabendo dos meninos que tentaram invadir a propriedade do homem mais rico da cidade e sofreram uma descarga elétrica.
Como ele mandava e desmandava na cidade, o caso foi tratado como um acidente e nós fomos tratados como pequenos ladrões.
Sabemos que no fundo ele se sentia muito culpado e foi definhando, amargurado pela culpa de carregar a morte de quatro crianças nas costas. Mas ele nunca foi condenado pelos assassinatos que cometeu e nós ficamos conhecidos como os meninos que morreram quando tentaram invadir uma propriedade para roubar.
Os outros meninos, que estavam jogando futebol com a gente, fugiram apavorados. Não havia testemunhas do que aconteceu.
Nossas famílias tentaram nos defender, tentaram provar a culpa dele. Foram perseguidas e acabaram desistindo e viveram com a dor e a tristeza da perda e com a mágoa de não conseguirem fazer justiça.
Até hoje, as pessoas que viviam aqui naquele tempo, lembram do caso e a mentira continua depois de tanto tempo. Somos conhecidos como os meninos que tentaram invadir a propriedade do milionário e morreram por acidente.
Não temos paz aqui onde estamos pois fomos assassinados, e não sofremos um acidente.
O assassino já morreu. Sabemos que ele sofria com a culpa. Mas nunca admitiu que era ele e não nós os culpados. Que só queríamos pegar nossa bola. Queremos que todos saibam que não foi acidente e que nunca fomos ladrões, que nunca pegamos uma fruta sequer no quintal dele. Que só entrávamos lá quando nossa bola caía porque se pedíssemos ele se recusava devolver.
Ele nos tratou como marginais e acabou nos matando. Faça isso por nós. Precisamos seguir nosso caminho.
-Mas por que escolheram a mim? Eu nem os conheço. Não sou da cidade.
-Por que você teve a capacidade de nos enxergar. Por que você tem a capacidade de nos ver e ouvir. Por que você tem a capacidade de conversar com a gente. E por que você é uma mulher espiritualizada.
-Por que depois de tanto tempo vocês procuram ajuda?
-Aqui o tempo não é como aí. Não há essa contagem de tempo que vocês fazem.
-Mas eu não sendo da cidade, ninguém vai acreditar em mim. Vão dizer que sou louca. Posso até me prejudicar. Tenho um bom emprego e não quero correr risco de perdê-lo.
-Você precisa nos ajudar. Precisamos de paz pra seguir nosso caminho. Você vai encontrar um modo de nos ajudar.
Depois disso, parece que acordei de um transe. Estava sentada na calçada e um homem que vinha chegando perguntou se eu estava passando mal ou se precisava de alguma coisa.
Olhei o papel em minha mão, o lápis na outra. Lembrei de tudo que se passou. Disse que não precisava de nada. Levantei e entrei ainda um pouco trêmula.
No dia seguinte mostrei aquele papel todo escrito de maneira estranha ao meu colega. Ele me disse que eu fiz uma psicografia. Custava-me acreditar naquilo.
Junto com meu colega fiz chegar às mãos dos familiares daqueles meninos a mensagem que me passaram.
Juntos nós também fomos atrás da história daqueles meninos. E tudo que disseram era verdade. Inclusive, o assassinato que eles alegavam e que nunca foi provado.
Creio que aquele homem não tinha intenção de matar aqueles meninos. Queria apenas assustá-los. Não previu que por serem crianças e por estarem molhados e descalços a descarga elétrica seria suficiente para matá-los. E ele pagou um preço muito alto purgando sua culpa pelo resto da vida. Mas não teve coragem de inocentar os meninos.
A mensagem que eles me passaram se tornou pública. Muitos acreditaram e muitos não acreditaram. O fato é que a verdadeira história foi contada a toda a cidade. Mesmo depois de tanto tempo.
Algum tempo depois eu acordei com alguém me chamando pelo nome.
Cheguei na janela e lá estavam os meninos. Eles sorriram e me agradeceram. E seguiram seu caminho, estavam livres…
Eu nunca acreditei ou tive medo de assombração ou fenômenos afins e nem que espíritos de mortos pudessem se comunicar com os vivos. Sempre tive a plena convicção de que a pessoa que morre quer mais é seguir seu rumo em outra dimensão e não voltar aqui pra assombrar ninguém.
Aquele acontecimento me fez mudar meus conceitos e crenças. Tantos anos já se passaram e ainda permanece na minha memória como se tivesse acontecido ontem.
Hoje sigo a doutrina espírita e não me nego a receber mensagens de espíritos aflitos por se comunicar pra que possam se libertar e seguir em paz seus caminhos.