Tinta Preta

A escuridão da noite escorria por todo o horizonte. O azul claro do dia ia enegrecendo. Algo de estranho se formava entre seus poucos seios, soltos numa blusinha de lã. Na sua sala de pinturas, pôs uma tela vazia no suporte. Abriu várias latas de tinta com a pressa e a respiração de alguém que foge de um assaltante. Estavam lhe assaltando a paz. O silêncio começa a escancarar portas e gritava-lhe aos ouvidos. Era um som agudo que atrevessava todo o cérebro diagonalmente.

O silêncio era quase palpável, podia sentir seu cheiro, mas não o gosto. O desespero por não ter o silêncio por completo lhe fez dar um grunhido, como um choro prestes a iniciar. Começou a correr, olhando pinturas que havia vomitado em outras épocas. Todas inúteis. Não, não, não. Um grilo quer calar o silêncio. É engolido por ele.

Na tentativa de alcançar o silêncio e o fugor, de alcançar qualquer coisa que não ela mesma, exterior a si, ela pega, então, uma lata de tinta preta, joga todo seu conteúdo na tela. O pretume espalha-se por todos os lados, cresce em má circunferência. O cheiro é parecido com o cheiro do próprio silêncio, do vazio. É isso! Ela está em frente ao portal do abismo. Ela abriu um portal para alcançar o vácuo. Vácuo, vácuo, como esteve sempre tão perto de mim! O desespero se insinua ainda mais, queima toda a sua roupa. Ela começa a tirar as roupas de baixo, a blusa começa a queimar mais rapidamente, então rasga o tecido de lã com as mãos. Morde a blusa em uma das mangas, um de seus dentes sai e um pote de tinta jorra de sua boca. Está livre, finalmente. A pele queima, em todos os poros a lava se expurga. Ela se lança na tela preta, em seu portal para o vazio, ela sente o silêncio nesse momento, e o desespero se transforma em excitação, seu coração dispara, seus mamilos desenham na tela, com todos os seus movimentos para se tornar uma com o vácuo. Ela quer mais, a lua ilumina através de sua janela. Ela precisa sentir o gosto. Sua língua atravessa toda a tela, e a tinta se impregna na língua. Ela arrasta tinta de um lugar ao outro. Engole um momento. O cheiro e gosto de tinta se espalham pela sua face interna. Já não aguentaria mais ficar sem contato. Abre outra lata de tinta, derrama tudo sobre sua face, toma a tinta em goles grandes. Tinta preta.