Sangue Talhado
Se alguém pudesse definir Irênia Amis certamente diriam que ela era uma atriz inata. Ninguém poderia sequer sonhar que por de trás daquele sorriso caloroso, da doçura e gentileza crescia silenciosamente uma espécie de tumor invisível, inaudível e insensível.
A verdade é que ela sempre foi mais dos outros do que de si mesma, desejava mais do que tudo cumprir um conjunto de verbos passivos: servir, agradar, obedecer e não questionar. No fundo, de seu ser essa subserviência toda era uma metamorfose do medo de ficar sozinha, pois sabia que quando ficava a sós consigo mesma, o tumor costumava crescer e comprimir-lhe a vida. E para evitar uma morte desnecessária deixou de viver na equação tempo espaço para esperançar entre tinta, papel e signos.
A última vez em que Irênia foi vista estava prestes a interpretar o papel de sua vida, a da moça independente e empoderada que encontra tão raro amor que não a queria febrilmente por baixo de si, estava tão feliz e enredada nas tramas do próprio folhetim que já não sabia distinguir o real do literário.
Não era ela a dama do onírico cavalheiro e jamais ele o seria dela, visto que ele não ergueria sequer seu sabre para defendê-la já sendo ela armada. Desfeita a compilação teatral e seu palco, passou a ficar "sozinha" por decidir bastar-se por si.
Na primeira noite sentiu a massa gelatinosa expandir dentro de seus vazios.
Na segunda começou a escapar por seus orifícios.
Pela manhã do terceiro dia foram encontradas três coisas em seu quarto.
Um corpo pálido sem sangue, um cateter em sua artéria ulnar e uma poça de sangue talhado.