O Inevitável

O vô Abbe morreu hoje de manhã. Depois de muito tempo, voltamos a pequena cidade onde ele residia, em uma casa afastada de tudo e todos. Mas como aquele velho gostava de nossas visitas... Disso tenho certeza. Ah, e só para deixar claro: ele não é meu vô de verdade, e nem tem parentesco nenhum com ninguém de nós. É apenas um velho amigo do meu avô de sangue, que já havia se ido a muitos anos. Vô Abbe, desde então, tratou meu pai e meu tio como filhos, e por isso sempre tivemos tanta estima por ele. Era um homem muito inteligente, contador de histórias... E, devo admitir... Bastante estranho. Veja bem, desde que me conheço por gente ele foi cego. Seus olhos, brancos e opacos não conseguiam ver nada, mas de certa forma, enxergavam tudo.

Porque estou te falando isso? Bom, porque havia muito sobre ele que nós não sabíamos... Exceto pelo meu pai e tio, e parece que a morte do velho os levou a não conseguir mais segurar essas coisas. Foi a tanto tempo, afinal, e tão triste, mas hoje pudemos entender...

Ainda era uma criança no dia em questão, e junto de meu pai, mãe e irmã mais nova, fomos passar o fim de semana na casa do vô Abbe. Meu tio, tia e meu primo Alex, que tinha minha idade também iriam.

Como de costume, o pai e o tio Tom já haviam ido alguns dias antes, para poder passar um tempo a sós com seu “pai” e organizar as coisas para nossa chegada. Pareciam muitos felizes na noite anterior a nossa partida, tanto que nos ligaram pedindo que fossemos de uma vez. Lembro-me muito bem da alegria na voz do meu pai.

E juntos de minha tia e primo, partimos no dia seguinte. Saímos tarde de casa e a viagem era longa, e por isso chegamos só a noite.

Ao estacionarmos, a mãe começou a buzinar, e logo meu pai e meu tio vieram ao nosso encontro. Nos abraçamos e eles começaram a ajudar a descarregar as coisas. Um atrás do outro e todos carregados, fomos até a casa, onde soltamos tudo na sala e fomos nos sentar junto a lareira. O vô, que estava em seu quarto, só apareceu depois, e foi ai que as coisas começaram a ficar estranhas.

No momento em que ele pisou na sala, imediatamente parou. Tinha uma expressão de choque no rosto, e seus olhos, brancos e opacos pareciam estar encarando algo que ninguém mais enxergava.

Ficamos assustados e pedimos o que havia acontecido, mas ele não respondia. Sentou-se em sua cadeira, e levando as mãos até os olhos começou a chorar. Lembro-me de meu pai e meu tio falando algo como: “Não pai... Por favor, diga que não...” também se emocionando, enquanto o resto da família olhava aquilo sem saber o que fazer.

Levaram então o vô Abbe para seu quarto e o deitaram, e ao retornaram à sala, estavam os dois com muita tristeza no olhar. Tentamos de todas formas pedir o que era, ao que eles se recusavam a dizer. E graças a essa situação assustadora, acabou que ninguém conseguiu comer nada, e todos fomos dormir cedo.

Já na manhã seguinte, quando levantei fui a cozinha e vi a mesa pronta. Tínhamos programado um passeio no bosque para esse dia, e todos pareciam estar se arrumando. Meu pai e tio, porém, apesar de prontos, pareciam estar no automático, fazendo as coisas com uma expressão vazia no rosto.

Nós, no entanto, já tínhamos superado as estranhices dos três, e estávamos alegres em ir para a mata. Minha mãe e minha tinha haviam preparado uma cesta de pic-nic e íamos comer na floresta, sobre um paredão rochoso que tinha uma incrível vista sobre a região.

Quando partimos, o vô tinha decidido ficar em casa, e percebi meu pai e meu tio bastante protetores com a sua família. Não estavam nos deixando correr, nem brincar e queriam ter os seus sob seus olhos o tempo todo.

Mas certas coisas não podem ser controladas.

Ainda subindo até o paredão, eu, minha irmã e meu primo avistamos um coelho. Sendo as crianças da cidade que éramos, saímos em disparada atrás do animalzinho, curiosos para vê-lo melhor. Quando nossos pais se deram conta, saíram correndo atrás de nós, mas já havíamos entrado no mato.

Bom, o pai logo achou a mim e minha irmã, mas o tio... Até hoje lembro de seus gritos de desespero quando ele não conseguiu achar o Alex. Minha tia, sem entender, falava para ele se acalmar. O menino só deveria ter se afastado um pouco e logo voltaria... Mas meu tio parecia saber melhor...

E de fato, passamos o resto do dia procurando por ele, com meu pai segurando eu e minha irmã com força, e ao voltarmos para casa, minha tia desesperada para chamar pela polícia, demos de cara com o vô Abbe esperando a porta. Meu tio o abraçou e chorou, ao que ele apenas retribuiu, tentando conforta-lo com suas mãos.

Agora, voltando a hoje... Não, o Alex nunca mais apareceu, e por muito tempo essa história ficou enterrada. Mas por fim o pai resolveu me falar o que houve.

O vô Abbe não via como nós, mas enxergava muito. E naquele dia, ele viu que havia alguém de diferente em meio a sua família. Alguém havia trazido algo, e ela sabia que não tinha nada que pudesse fazer. Alguém ia ser levado e não mais voltaria. Aquele dia foi o Alex, mas hoje eu não sei. Antes do vô morrer, nós, sua família fomos dar um último Adeus, e ele, em seus últimos suspiros, revelou a seus filhos que aquilo havia aparecido novamente.