O presente da Mãe d’água
Adriana Ribeiro
Com a mistura acabando em pleno meado da semana Seu Pedro Ramos não teve outra alternativa a não ser apanhar a velha vara de anzol, cavar algumas minhocas e tentar a sorte à beira do rio Tuim naquele fim de tarde de sexta-feira treze. Não era homem dado à crendice, se fosse nunca teria arriscado uma pescaria noturna numa data tão singular e cercada de superstições. Mas esse definitivamente não era o caso do pescador.
Quando alguém lhe perguntava se não era perigoso pescar à noite ele sempre respondia que era igual a pescar de dia só que mais fresco e mais calmo. Dizia ainda que medo mesmo só tinha de gente muito viva e bicho que dorme no sereno, o resto não temia.
Homem de idade avançada, já se acostumara à vida solitária, pois, não era de muitos amigos. Gostava de caçar e pescar sozinho e sempre ao entardecer ou nas madrugadas para não atrapalhar o serviço.
Naquele fim de tarde não foi diferente. Saiu sozinho e disse a Dona Jovina, sua esposa, que não tinha hora para voltar, pois, precisava pescar a mistura do dia seguinte e enquanto o cansaço não exigisse iria esperar pela boa vontade da mãe d’água.
Dona Jovina sabia que era só modo de falar porque Seu Pedro era católico fervoroso. Pertencente inclusive à Irmandade dos homens, cujo compromisso com o terço semanal na igrejinha local às quartas-feiras era sagrado. Mesmo assim desejou boa sorte ao marido dizendo:
__ Que Nossa Senhora das águas lhe abençoe!
Em seguida voltou aos afazeres domésticos na sua cozinha e seu Pedro seguiu viagem.
O lugar que costumava escolher para pescar há algum tempo já não rendia mais uma boa pescaria e por isso decidiu ir até uma parte do rio que não conhecia bem. Assim, foi andando mata ciliar adentro até encontrar um espaço onde a vara do anzol pudesse ser usada sem risco de enganchar em raízes e pedras submersas ou galhos acima da sua cabeça.
A noite chegava e embaixo das árvores a lua já não iluminava tão bem como na pastagem. Mas Seu Pedro continuou andando. Quando chegou próximo a uma curva do rio, encontrou um remanso embaixo de uma ingazeira antiga que crescera ali na margem esquerda. O pescador reparou numa raiz saliente onde poderia se sentar com certo apoio para lançar o anzol num ângulo perfeito para fisgar os peixes, que se Deus quisesse conseguiria pegar àquela noite.
A muriçoca começou a zunir nos seus ouvidos e a incomodá-lo com picadas nas mãos e rosto logo na primeira hora de espera, mas sua persistência e necessidade o fazia continuar tentando noite à dentro.
De hora em hora um peixinho pequeno mordia a isca, mas Seu Pedro sabia que ali tinha peixes maiores e ficava esperando...
Já passava das vinte e três horas e nenhum peixe de tamanho bom dera o ar da graça em seu anzol, apesar de beliscar a isca de vez em quando. Um bom pescador sabe que deve mudar de lugar em casos assim, mas Seu Pedro não estava muito a fim de caminhar e muito menos de pescar em pé em outro trecho do rio. Por isso continuou ali por mais um tempo.
Próximo de meia noite e já com alguns pequenos peixes na capanga, Seu Pedro sentiu o tempo começar a esfriar e um calafrio descer-lhe pelo espinhaço como se a avisá-lo de alguma coisa. Olhou em direção à curva do rio e viu que uma claridade estranha começava a se formar.
No início era uma claridade discreta, mas aos poucos ela foi aumentando e se aproximando de onde ele estava, enquanto um barulho esquisito começava a se fazer ouvir assustando um pouco o pescador. Era um barulho estranho vindo da água como se fossem muitos peixes batendo as barbatanas.
De repente uma voz começou a se sobressair sobre o barulho e Seu Pedro começou a prestar atenção no que ela dizia. Era uma voz aguda, feminina e sonora que repetia:
_ Chega! Pega! Segura aqui que tá pesado!
_ Chega! Pega! Segura aqui que tá pesado!
_ Chega! Pega! Segura aqui que tá pesado!
Aquela voz, apesar de desconhecida e inexplicável, era muito gentil. Porém, tinha uma autoridade tão contundente que o pescador, sem que percebesse, se movimentou em direção à claridade na curva do rio e ao comando da voz vinda de lá.
Ao chegar à beira da água meio ofuscado, viu um balaio de taquara cheio de peixes de vários tamanhos como se estivesse boiando ali no remanso. A claridade era tão intensa que não dava para ver quem estava segurando aquele cesto estranho, apenas as mãos femininas de cada lado ficaram expostas.
Sem raciocinar direito, o pescador segurou nas bordas do balaio com mãos firmes e disse:
__ Pronto Dona! Peguei! Pode soltar!
Ao terminar de dizer estas palavras, sentiu o balaio de peixes pesar nas suas mãos e se não fosse rápido teria se desequilibrado e caído no rio. O susto foi tão grande que demorou a se dar conta que o barulho de barbatanas batendo ia se afastando de volta à curva do rio e junto com ele a claridade também ia sumindo até que desapareceu por completo e tudo ficou escuro.
Seu Pedro arriou o balaio de peixes no chão e começou a tremer de medo. Não lembrava de ter tido um medo tão grande quanto estava sentido naquela hora. Era um nervoso e uma tremedeira no corpo tão grande que ainda que quisesse não conseguiria correr dali.
Mas como não era de correr de nada, ficou. E ainda tentando compreender o que havia acontecido, sentou-se alí mesmo no barranco e passou as duas mãos no rosto para se acalmar e pensar no que faria.
Virou-se para olhar de novo aquele cesto querendo se certificar de que aquilo tinha mesmo acontecido e por um momento pensou que ele não estaria lá. Que estivera apenas sonhando acordado devido ao cansaço, mas seus olhos incrédulos continuavam vendo o balaio de peixes ali no chão exatamente onde o deixara.
Depois de um certo tempo tentando entender o que estava acontecendo e não conseguir, voltou até onde estava antes, tirou o anzol da vara colocou na capanga e em seguida arrancou alguns galhos da ingazeira para fezer uma rodilha e pôr embaixo do chapéu. Precisava amaciar o local para suportar melhor o peso sobre a cabeça.
Voltou para pegar o balaio de peixes. Sentiu que estava realmente muito pesado e quando conseguiu colocá-lo sobre a cabeça pensou que não conseguiria ir muito longe com tal carga. Mesmo assim fez um esforço e saiu caminhando até chegar na cerca que separava o pasto da mata ciliar onde precisou arriar o balão no chão.
Cansado demais, começou a pensar se não seria melhor esconder um pouco daquele peixe em algum lugar e voltar para pegar depois. Mas lembrou-se que tinha serviço acertado. Não poderia voltar para pegar antes do anoitecer e então os peixes já teriam se estragado. Não tinha outro jeito senão tentar levar o balaio do jeito que estava.
Agora, no descampado, dava para ver o céu apresentando faixas da claridade do sol. E deduziu que já eram por volta das 4 horas da madrugada. Não se dera conta de quanto entrara na mata à procura de um lugar bom para pescar até que tivera que pegar o caminho de volta.
De onde estava até sua casa não era perto. Descarregado já levaria mais de meia hora pra chegar e carregando todo aquele peso demoraria mais ainda.
Pensando nisso, tentou pôr de novo o balaio na cabeça mas dessa vez não conseguiu. Estava literalmente sem forças. Abaixou a cabeça e ficou matutando como faria para chegar com todo aquele peixe em casa.
Quando seu Pedro tornou a levantar a vista viu uma mulher de meia idade se aproximar e perguntar-lhe se estava precisando de ajuda:
__ Olá Senhor! A carga tá muito pesada? Posso ajudá-lo?
Seu Pedro não a conhecia e nem imaginava o que aquela mulher estaria fazendo ali àquela hora do dia, mas como estava oferecendo ajuda, resolveu aceitar.
___ Oh se tá Dona! Nem sei como faço para levá-lo para casa, mas não posso jogar os peixes fora.
A mulher se aproximou do cesto e disse:
___ Claro que não Senhor, seria uma grande desfeita!
E abaixou-se para pegar o cesto dizendo:
___ Pronto Senhor! Peguei! Tá seguro! Pode soltar!
Seu Pedro achou aquilo muito estranho pois a mulher sem fazer esforço algum botou o cesto na cabeça sem rodilha sem nada e seguiu andando por entre os capins até chegar na estradinha do gado que ficava numa parte mais alta. Por ali seguiu viagem...
O pescador não teve outro jeito senão tentar acompanhar os passos firmes daquela mulher forte e seguir tentando se lembrar se já a tinha visto antes. Suas feições não eram estranhas...
Com o dia claro chegaram nos primeiros casebres daquela entrada da cidade e uma senhora conhecida que estava varrendo o terreiro com uma vassoura rústica de pindoba o cumprimentou:
__ Bom dia Seu Pedro Ramos! A pescaria foi boa hoje?
Seu Pedro então respondeu:
__ Bom dia Dona Jacira! Foi sim graças a Deus!
E dizendo isso, aproximou-se do cesto que a mulher arriara no chão para descansar um pouco, catou um punhado de peixes e entregou àquela senhora simpática apesar de tão necessitada.
Quando esta recebeu o quinhão de peixes ficou emocionada e exclamou com alegria:
__ Oh! Muito agradecida! Que Nossa Senhora das águas sempre lhe abençoe!
Seu Pedro respondeu amém, mas sem muita convicção pois nunca ouvira falar em tal Santa. Olhou rapidamente para o rosto da mulher que o ajudava e viu que esta sorria para aquela senhora com carinho. Em seguida ergueu o balaio, virou-se para Seu Pedro e disse:
__ Pega! Segura que já não está mais tão pesado!
Seu Pedro sentiu novamente o um arrepio estranho cruzando–lhe o corpo, mas pegou o balaio de suas mãos e achou-o muito mais leve, embora não parecesse que havia retirado os peixes.
E enquanto o colocava sobre a cabeça viu que a mulher que o ajudara havia retomado o caminho de volta sem se despedir.
Olhou então para dona Jacira e perguntou:
__ A Senhora conhece aquela mulher?
A velha Senhora olhou na direção que seu Pedro indicava e respondeu:
__ Qual mulher? Não estou vendo ninguém.
Seu Pedro seguiu para casa intrigado. Ou aquela Senhora tinha problema de vista ou ele ainda estava vendo coisas...
Quase cinco horas da manhã virou a esquina que dava para a rua onde morava e encontrou a Dona Carlota, velha doceira da comunidade, conhecida de todos, pois, depois que se aposentara costumava acordar cedo e ficar na esquina jogado conversa fora com quem passava por ela.
Ao avistá-lo Dona Carlota se levantou da cadeira que colocara recostada no muro e olhou o balaio de peixes admirada exclamando:
__ Bom dia Seu Pedro! A pescaria foi boa hoje?
Seu Pedro respondeu ao cumprimento e como fizera da primeira vez, arriou o cesto, retirou alguns peixes e entregou à velha Senhora.
Esta novamente repetiu a estranha frase:
__ Oh! Muito agradecida Seu Pedro! Que Nossa Senhora das águas sempre lhe abençoe!
O velho pescador ficou intrigado. Era a segunda pessoa, fora a esposa, que lhe dizia aquilo.
E enquanto colocava o cesto de volta na cabeça já dona Carlota desaparecia de vista.
Continuou seu caminho para casa. O cesto continuava cheio de peixes porém agora parecia ainda mais leve.
Quase chegando em casa, uma moça ia que ia passando na rua o cumprimentou e vendo o velho carregado perguntou:
__ Tá pesado aí seu Pedro? Quer ajuda?
O velho pescador não lembrava de já tê-la visto mas aceitou a gentileza e quando puseram juntos o balaio no chão ela estava admirada e exclamou:
__ Pescaria boa Seu Pedro?
__ Pois é minha filha! Hoje a sorte me sorriu.
Dizendo isso abaixou-se com o intuito de pegar alguns peixes para entregar àquela moça.
Mas no mesmo instante a ouviu responder com uma voz estranhamente familiar:
__ Sorte nada Seu Pedro! Nossa Senhora das águas lhe ajudou!
O velho pescador ficou pensativo. O cesto continuava cheio de peixes mesmo depois dele ter doado boa parte da carga a três pessoas. Mas o que mais lhe provocava espanto era o nome daquela Santa ter sido citado tantas vezes.
Entrou em casa pela porta dos fundos e encontrou Dona Jovina à beira do fogão. Quando esta o viu carregado se aproximou para ajudar e de repente o velho pescador voltou a sentir todo o peso do balaio cheio de peixes.
A esposa assombrada com o que via perguntou:
__ Como você pescou tudo isso?
Seu Pedro já ia abrir a boca para contar-lhe o ocorrido, mas sentiu o arrepio novamente e apenas respondeu:
__ Nossa Senhora das águas me abençoou!
Dona Jovina fez ar de riso e balançou a cabeça em anuência. E lá foram os dois limpar os peixes recebidos de presente...