A GATA DO 601
Podem acreditar, ela descia as escadas do quarto andar quando a vi e fiquei perto dela pela primeira certa vez. Eu vinha do quinto, como costumo fazer todas as tardes indo para minha caminhada vespertina. Ela nem me olhou, indiferente aos meus olhos pousados surpresos no seu lento, caprichado e premeditado rebolado. Olhando para a frente a gata vinha vinha e assim continuou degrau por degrau, sem fazer nenhum ruído, o rabo empinado, soberba e insensível. Refleti ser melhor não mexer com ela, guardar meus pensamentos e seguir a descida até o térreo. Ainda assim, cá comigo, me perguntei para onde ela estava seguindo, principalmente por ser muito bonita, saudável, certamente provocando cuidados e preocupação a quantos gostavam dela. Claro, não era da minha conta, bem sei, quem dela tratasse, dela cuidasse. Para o meu camiaozininho, entendi, ela era carga pesada demais, muita areia, além do quê, confesso, não teria condições emocionais de mante-la, ela há de requerer muita atenção, afagos especiais, ida ao médico, suplementos alimentares, sabe lá o que mais. Tô fora!
Passei por ela e apressei o passo, lembrando já tê-la avistado pelo gramado do condomínio algumas vezes, languidamente deitada sob o coqueiro e quase sempre só. Mas, outro dia, penso ter sido num sábado à tarde, vi-a brincando com várias crianças, que corriam ao seu redor, abraçavam-na e se divertiam na sua companhia. O jeito dela? O de sempre, o de quem se sabe amada, tem consciência absoluta disso e se gaba disso com a maneira entediada de ser. Por que será que aquela gata se apresentava tão cheia de si, por demais egocêntrica, jogando desprezo para os quatro cantos em derredor? Provavelmente deve ter sido e continua sendo muito mimada e paparicada, imagino. Se ela fosse minha, com certeza eu não faria isso, ah não!, mostraria a ela o seu devido lugar, seu próprio quadrado e pronto, nada mais. Bom, não a deixaria andar por aí sozinha, teria medo de perde-la, e com a beleza e a petulância que faz questão de exibir e exalar, não duvido nada que ali mesmo no nosso condomínio tenha muita gente de olho gordo nela. Menos eu, sou exceção, asseguro novamente que ela é espaçosa demais para minha personalidade.
Ela é inquilina do 601, tem o hábito de ficar na janela que dá para o pátio por onde passo quando me dirijo ao meu apartamento, testemunhei sua presença oblíqua por lá dias atrás. Sentada no parapeito, lambendo as patas e olhando com desprezo para quantos ousam alçar os olhos a sua existência. Assim mesmo. E olhem que ela é apenas uma gatinha, pensem se fosse um ser humano!