A cobaia

Não há muito, fui colocado numa situação desconfortável e incomum. Minha vida era

enfadonha, os dias passavam monótonos e repetitivos, as nuvens carregavam a sua indiferença

e, quando não, despejavam suas lágrimas, às vezes acompanhadas de cicatrizes eletrificantes.

No entanto, desenvolvi fascínio pela literatura desde cedo, de modo que os livros

proporcionaram um amparo satisfatório à realidade. Logo tornei-me, por conseguinte, distante

da sociedade. Às vezes passava semanas em meio aos livros e, ao longo dos anos, acabei por

construir um acervo admirável.

Recluso, pálido e inquieto, frequentava um restaurante pouco conhecido, onde habituei a pôr

minhas reflexões em harmonia. Ali, certa vez, um sujeito chamou minha atenção. Era um

homem excessivamente magro, que via o mundo através de olhos alegres, acomodados em

órbitas fundas, encovadas e negras. A noite em que pude conhecê-lo, grotesca e

condenavelmente, registra-se nos próximos parágrafos.

Depois de atendido, organizava meus pensamentos quando notei uma figura macilenta em uma

mesa próxima da minha. O crânio sobressaía-se sob uma camada de pele que, em espessura,

era quase inferior à de uma folha de papel. Mantinha um ar distante e alheio e de quando em

quando seus dedos frágeis tamborilavam sobre a mesa.

À medida que minha atenção se detinha naquela figura, a dela detinha-se em mim. Logo, o

raquítico homem encarava-me com a mesma curiosidade que eu o fazia. Entretanto, o seu

interesse, aos poucos, pareceu morrer. Não muito tempo depois, levantou-se debilmente; a

passos leves e suaves, encaminhou-se à saída. Inconscientemente, fiz o mesmo e, sem ter o

intuito, comecei a segui-lo.

Todas as circunstâncias daquela noite foram incomuns; portanto, as descreverei

detalhadamente. Algo me atingira, um desejo por saber quem aquele homem era, tal qual O

homem da multidão, de Poe. O que difere é que não persegui um velho, as ruas estavam vazias

e o sujeito seguia o caminho de sua casa, não o rastro de uma massa errante e compacta de

pessoas.

Deparava-me, enfim, depois de muito segui-lo, com a fronte de sua casa. Um tanto assustadora,

na ocasião. A uma segura distância, observei-o arrancar uma chave dos bolsos, destrancar a

porta e entrar, cerrando-a com selvageria. Duas janelas redondas se iluminaram como que se

dentro de uma caveira uma vela fosse acesa. Finalmente, dirigi-me à porta, que logo constatei

ser muito alta e descomunal. Uma aldrava pendia ali.

Hesitante, cedi às dúvidas.

Que fazia ali? Que horas eram? Que inoportunas e preocupantes, até mesmo doentias,

pretensões eu tinha naquela noite? Jamais soube ao certo. Finalmente, mas sem firmeza, tomei

a aldrava e bati uma, duas, três vezes.

Por um tempo que parecera indeterminadamente longo, nada aconteceu, mas, afinal, o sujeito

abriu a monstruosa porta. Carregando um semblante preocupado e indeciso, avaliou-me, como

se fosse algum tipo de mercadoria, e então perguntou alguma coisa de que não consigo trazer

à memória. Subitamente, toda minha curiosidade se dissipou e me arrependi com a percepção

de quão desarrazoado fui. Despendi algumas desculpas. No entanto, com os olhos brilhando

intensamente, ele abriu um largo sorriso sem motivo aparente e, a despeito de minhas recusas,

instou-me que entrasse por um momento.

Vi a mim mesmo num corredor com duas portas paralelas, onde, no fim, uma escada de madeira

descia a um porão. Um pouco atordoado, fui conduzido a uma das portas; súbito, sem saber muito

bem como, encontrei-me estirado numa poltrona verde e desconfortável, segurando uma xícara

de chá com as duas mãos. Muitos livros estavam espalhados por aquele cômodo. Alguns

organizados, outros empilhados, muitos abertos. Eu estava familiarizado com grande parte

daqueles títulos. Eram, sobretudo, ensaios.

Em meio a tudo isso, um rato de pelagem branca fitava-me do assoalho, erguido nas patas

traseiras e tomado por um fascínio perscrutador.

Aos poucos, como um eco distante, ouvi algumas palavras, que seguiam um raciocínio mortiço

à perspectiva de minha mente enevoada. Não dava com a figura do interlocutor naquele

aposento; falava de algum outro lugar. Levantei, deixei a xícara numa pilha de livros, que se

erguia um tanto inclinada, atravessei a porta que comunicava ao corredor e encaminhei-me à

de entrada. Quando empunhei a maçaneta, distingui algumas palavras; um tanto intrigado,

parei no mesmo instante.

“Não, não, ele não lê livros, acaso esteja se perguntando”, dizia a ecoante voz, “O rato, não, ele

não lê. Mas é um roedor de anormal inteligência, admito. É um excelente ouvinte,

compreensível e tolerante. Aqueles pequeninos olhos vermelhos parecem guardar uma

sabedoria inconcebível, sim. Contudo, não guarda, é um rato sofômano – e uma cobaia”. A voz

cessou, ouvi passos e me virei. Assomando das escadas do porão, o frágil homem parou,

encarou-me alegremente e prosseguiu:

“Vejo que não se incomoda, ou não notou. De qualquer modo: não há de se preocupar, a

mancha de sangue onde você pisa está aí há mais tempo do que eu”. Saltei no mesmo instante

que aquelas palavras foram ditas. “Não há de se preocupar”, repetiu ele, “É precisamente por

essa mancha que o preço original da casa baixou consideravelmente, e então a comprei. Um

homicídio. O marido matou a esposa, ou a esposa ao marido, não lembro ao certo. Enfim, a casa

é confortável, tem um amplo porão e cômodos o bastante. Notável, não? ”

Mais uma vez cessou suas palavras, limitando-se a manter os olhos fixos em mim. Examinei o

assoalho. A nódoa de sangue era visivelmente antiga, seca, desbotada, disforme. Ergui

ligeiramente meu olhar, e vi que aquele sujeito sorria tão abertamente quanto podia. Eram

dentes irregulares, mas muito bem cuidados. Ao retornar minha atenção à mancha, o chão

parecia ter se tornado aquoso e carmesim. A realidade falhou, as paredes do corredor se

retesaram e a figura sorridente sumiu.

Outra vez dei por mim na mesma poltrona, a xícara nas mãos, o conteúdo praticamente vazio.

Narcóticos e obscuros, assim eram meus pensamentos. O ambiente parecia leve, suave e

distorcido. As cores ao redor pulsavam em matizes claros e viçosos. Indistintamente, ouvi:

“Está sob efeito de uma dose moderada de um alcaloide. Pretendo avaliar os efeitos. Huxley já

se submetera à mesma condição, a fim de uma melhor amplitude da percepção humana, algo

de dentro para fora. Entretanto, não uso da mescalina; e meu objetivo, no momento, não é a

sujeição própria. Quero estar em posse total de minha consciência para tomar as anotações

adequadas. É provável que esteja sentindo um violento abatimento, como que se uma mão

gigantesca o pressionasse contra o chão e, quanto à sua visão, é possível que delire e tenha

variadas alucinações. O que pretendo avaliar, nesse processo, é a percepção do tempo. Há muito

que venho aplicando baixíssimas doses em roedores, avaliando as reações, que são um pouco

insatisfatórias à minha pesquisa. Note: os ratos, sob efeito da droga, geralmente morrem. Aliás, tive apenas um triunfo experimental nessas circunstâncias. O roedor de pelagem branca e olhos

rubros, que você viu, foi o que resistiu. No início, seu corpo foi apenas paralisado pelo alcaloide.

Ansioso depois de tantos fracassos, fiz logo a série de testes, que consistiram em um único

estímulo: espetei um alfinete em diversas partes da cobaia. Várias horas se passaram até que os

processos nervosos recebessem, realmente, as alfinetadas e o corpo, até então inerte, se

contraísse, acompanhado dos guinchos de dor. Assim havia conseguido, efetivamente, retardar

as respostas nervosas, mas não as eliminar. Quanto às horas de inércia, depois de diversas

hipóteses, teorizei, ainda vagamente, que não existiram totalmente para a cobaia, e ela pensa

que sentiu as picadas quase no mesmo segundo que foram aplicadas. Ou seja, o intervalo de

tempo foi fragmentado pela mente do roedor e ele só pôde perceber pequenas partes desse

intervalo. Algo semelhante pode estar ocorrendo com você agora. Talvez pense que entrou

nessa casa há alguns minutos, mas está aqui, na verdade, há trinta e dois dias”

O discurso ainda se estendia, mas as palavras começaram a se despedaçar nos meus ouvidos.

Lembro-me de que quando retomei minha consciência, numa viela qualquer, tinha o corpo tão

magro e esquelético quanto o daquele homem, e sentia-me repulsivamente sujo.