Ação protelatória

Acontecia uma ou duas vezes por semana, por volta das 8 da manhã: quando o ônibus da linha 27 entrava na avenida da Constituição, um pouco antes da parada em frente à loja de roupas La Hache, sua velocidade ia decrescendo até parar por completo - houvesse ou não passageiros para recolher ou desembarcar no ponto. Após alguns instantes de paralisação, o motor voltava a funcionar normalmente - justamente quando uma garota de cabelo roxo embarcava. Aquilo não podia ser coincidência, pensei; finalmente, resolvi que iria desvendar o mistério e quando o incidente tornou a ocorrer, levantei-me do meu lugar e fui até o banco onde a garota havia se sentado.

- Oi, posso me sentar aqui?

- Está vago - redarguiu ela, me olhando de cima a baixo.

Sentei-me.

- Desculpe, mas não pude deixar de notar... - comecei a falar, em voz baixa. - Não pode ser coincidência que o ônibus pife toda vez que você precisa seguir nele.

Ela baixou a cabeça e riu baixinho.

- Ah, você percebeu? Não, não é coincidência... vai me denunciar à polícia por isso?

Agora estava me encarando com ar desafiador.

- Não... embora com certeza este seu pequeno truque deva estar enquadrado como um delito de algum tipo.

Ela deu de ombros.

- Eu trabalho em dois lugares, chego em casa tarde, e às vezes não consigo levantar no horário; então, faço o universo conspirar ao meu favor. Esse ônibus passa de hora em hora; se perder o das 8 h, meu atraso vai ser descontado quando chegar no trabalho. E eu preciso de cada centavo que ganho, pode ter certeza.

- Não seria mais simples fazer um encantamento que te fizesse pular da cama na hora certa? - Inquiri.

Ela riu, agora sem baixar a cabeça.

- Pode ter certeza de que já tentei isso... mais fácil enfeitiçar o ônibus.

Subitamente, uma ideia me ocorreu.

- Esse seu truque pode ser utilizado em pessoas, em vez de coisas? - Questionei.

- O que quer dizer? - Ela franziu a testa.

- Você conseguiria fazer com que uma pessoa se atrasasse para um compromisso?

Ela continuou me encarando de testa franzida.

- Pago 200 pratas se conseguir fazer um cidadão perder um voo - especifiquei.

- Isso não é ilegal? - Indagou.

- Tanto quanto atrasar um ônibus cheio de passageiros - retruquei.

E na semana seguinte, durante a audiência de conciliação, o reclamante, que já estava bastante nervoso, teve que informar ao juiz que seu advogado não chegaria a tempo.

- Creio que ele não tem interesse em resolver o seu caso - comentei. - Que tal fazermos um acordo?

O reclamante acabou aceitando, e isso economizou ao meu cliente uma soma considerável. Certamente, muitíssimo mais do que o dinheiro que eu havia pago à bruxinha do ônibus.

- Se vier trabalhar pra mim, acho que não vai mais precisar do seu emprego noturno - disse à ela quando nos encontramos novamente.

Os demais passageiros, certamente devem ter ficado aliviados quando ela não foi mais vista entre eles.

- [07-12-2021]