A BRUXA (REPUBLICADO)

A bruxa está amarrada a um poste de madeira. Sob seus pés um amontoado de lenha. Em volta, os homens mais fortes do lugarejo se mantêm de costas para ela, fazendo um círculo. Não podem sequer virar um pouco para olhar se ela está bem amarrada ou não; nem precisa, pois tudo isso já fora verificado antes, durante a noite, sob a luz embaçada da lua. Durante o dia ninguém pode olhar para ela, principalmente aqueles que foram encarregados de fazer a execução.

Ela é jovem e bonita, aparentemente. Seus olhos são de um azul profundo, os mais azuis que poderiam existir; todas as pessoas que a olham ficam fascinadas. Quem chega ao local com sede de sangue, logo começa a pedir que ela não seja queimada, daí o motivo de tanto cuidado.

O círculo formado pelos homens é justamente para impedir que as pessoas tentem soltá-la. Ela se mantém impassível, olhando diretamente para o horizonte, mesmo que este se limite a uma longa rua de terra batida, margeada por pequenas casas primitivas.

Muitas pessoas já começam a se amontoar em redor do local. Algumas chegaram gritando, pedindo morte à bruxa, mas já não têm certeza se é isso que querem, já foram enfeitiçadas e nem sequer se deram conta.

Os olhos dela continuam parados, olhando para frente, sem piscar. Azuis, muito azuis. O céu reflete neles com uma intensidade estranha. Coisas de bruxa, ninguém entende.

A tensão aumenta quando vai chegando a hora marcada: meio-dia. Os espectadores tentam ultrapassar o círculo de proteção, querem libertá-la. Os homens se mantêm firmes, empurram, dão os braços e fazem um cordão. É uma batalha que precisa ser vencida.

A bruxa não sorri, nem mostra qualquer emoção. Seus olhos bastam para fazer com que todos a sua volta sintam piedade dela. Se fosse possível fazer com que esses homens a olhassem pelo menos uma vez, ela estaria salva. Mas eles conhecem as histórias sobre ela, foram alertados, não olharão.

Ela continua calada, estática em seu orgulho, com seu longo vestido. Cabelos a lhe caírem pelos ombros. Cabelos negros, olhos azuis, o céu se espelha neles com profundidade.

As pessoas gritam por liberdade e tentam de toda forma romper o círculo humano que a cerca. O sol já se aproxima do seu pino, é chegada a hora. O carrasco, homem do povo, escolhido por ser comum e sem pecados, não pode olhar para ela, se não desiste.

Anda de cabeça baixa, olhando para o chão. Pega a tocha e se aproxima. Chega muito perto, vê os pés da bruxa, sente um desejo profundo de olhar para cima. Quem já a viu alguma vez, diz que nunca houve mulher mais bonita. Ele sabe que pode olhar e sair imune aos seus encantos, ele tem certeza que poderá resistir. Ele odeia aquela bruxa, não só aquela, todas. Elas, há muito tempo, levaram sua filha. Sua esposa morreu de desgosto e ele prometeu para ela e para si mesmo que a encontraria e que mataria qualquer bruxa que lhe cruzasse o caminho. Começaria, enfim, por aquela que estava ali amarrada.

O povo grita, pede clemência. Ela permanece olhando para a frente, sente o sol queimar sua pele, uma sensação tão antiga quanto o tempo. São muitos anos de vida, mais do que todas aquelas pessoas. Ninguém ali vivera tanto quanto ela.

O carrasco ouve os gritos, está confuso, não entende como as pessoas podem ter mudado de ideia. Lembra que todos estavam de acordo. Agora pedem clemência, estão enfeitiçados. Mas ele sabe que pode olhar para ela e continuar incólume, não tem como alguém enfeitiçá-lo, ele sabe disso.

Está muito perto agora, com a tocha pronta, a sentença já havia sido proferida, não falta mais nada para cumprir com seu dever.

Ele quer olhar para a bruxa, sabe que não será enfeitiçado. Ele vê os pés dela, são pequenos e brancos e limpos, como se nunca tivessem pisado o chão. A bruxa não olha para ele, mas sabe de suas dúvidas, sabe que ele está fazendo um esforço imenso para não erguer os olhos para o seu rosto. Ela sabe que ele olha para seus pés, que os admira, que os ama, porque todos que veem qualquer parte do seu corpo passa a amá-la, mas sabe também que apenas seus olhos podem enfeitiçar completamente qualquer um. Ele precisa olhar nos seus olhos, para que ela seja salva.

Meio-dia, chegou a hora. A população grita, empurra a barreira humana que está em volta da bruxa, quer salvá-la. Os homens, os mais fortes do lugar, ficam firmes e não deixam que ninguém ultrapasse o círculo. Há gritos e choro, o feitiço da bruxa se prolifera pelo ambiente. O carrasco é o homem encarregado de queimá-la, de extinguir o mal definitivamente. Mas ele ouve o clamor do povo e sente quase que uma necessidade de olhar para ela, leva consigo a certeza de que não poderia ser enfeitiçado.

Não há mais tempo, ele precisa decidir. Chega a tocha perto das madeiras e ateia fogo. Seus olhos seguem as chamas enquanto elas sobem pela lenha em direção aos pés da bruxa. E vão subindo, subindo, até que enfim chegam aos olhos dela. É ela, a sua menina, a filha perdida há tanto tempo. Ele se perde no meio do fogo, tentando inutilmente desatar as cordas. O carrasco nem sente a dor ou percebe o que acontecera, ele não era imune. Ninguém é.

Quando as chamas se extinguiram, apenas os restos de uma pessoa foram encontrados.

João Barros
Enviado por João Barros em 17/11/2021
Reeditado em 17/11/2021
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