Sobre Vida e Viver: Uma Fantasia
Depois de tantos anos eu subia novamente aquela pequena rampa que levava àquela pequena mas aconchegante varanda.
A fachada da casa era a mesma, o jardim era o mesmo, a porta de entrada ainda era a mesma.
Aquela casa onde vivi parte da minha infância tinha uma certa magia. Sentia que havia deixado ali algo que precisava resgatar.
Abri a porta e, de mãos dadas com a menina, entrei. A sala era a mesma e eu via ali os mesmos móveis. Revi o sofá, a mesa onde ficava a televisão, uma pequena mesa de centro. A sala estava clara e iluminada como sempre fora. A janela era a mesma e estava aberta deixando o sol entrar. Era como se nada tivesse mudado. Olhei pro lado e vi o quarto. Estava em penumbra como eu sempre me lembro dele. Entrei e consegui ver as duas camas, um guarda-roupas, uma penteadeira e a velha máquina de costura.
Uma angústia me invadiu.
Saí. Fui andando em direção à sala de jantar. Estava sombria, como eu sempre a via, mesmo estando com a velha janela aberta. Olhei e vi os mesmos móveis. A velha mesa de jantar em madeira escura. Sempre me pareceu muito austera. As cadeiras pesadas e antigas. Na cristaleira os copos de cristal sempre muito organizados e limpos. As louças, cada uma em seu lugar. Um pequeno aparador. Olhei para a porta do quarto. Era um quarto grande. Estava claro. Entrei e vi a velha cama de casal, um guarda-roupas, um velho berço, uma penteadeira, uma cômoda. O quarto estava claro e ensolarado. Fiquei por ali um tempo olhando para a menina e para o ambiente.
Saí. Fui até o terceiro quarto. Estava mais sombrio que de costume. Era menor que os outros e mal cabia as duas camas e o pequeno guarda-roupas. Senti um frio percorrer o meu corpo. A menina apertou forte a minha mão como que para me dar coragem.
Em frente a este quarto estava a porta do velho banheiro. Escuro e sombrio como se nunca tivesse vida. Não gostava daquele cômodo. Traduzia toda a amargura, vazio e tristeza daquela família. Hesitei em entrar ali. A menina me puxou. Estremeci ao entrar. A menina logo me puxou para fora. Ela também nunca se sentiu bem naquele ambiente.
Caminhei em direção à cozinha. Continua escura e fria. Sem vida.
Logo depois da cozinha tinha a varanda onde comumente a família fazia as refeições. Estava como antes. Rústica, mas ensolarada e clara. Agradável.
Do lado de fora da casa estava uma pequena construção com um velho forno e fogão a lenha e um quarto mais a frente.
O quintal era grande e muito limpo. A horta sempre bem cuidada.
Olhando para tudo, voltei ao passado. Buscava o que eu precisava resgatar.
Minha luz? Meu brilho talvez? Minha alegria ou minha essência que me foi roubada?Quem sabe? Onde estaria aquela menina que nasceu pra brilhar, pra ser feliz? Onde estaria aquela criança inocente que só queria um lugar ao sol? Eu olhava para menina e ela olhava pra mim. Não conseguíamos nos reconhecer, mas sabíamos que éramos a mesma pessoa.
Voltamos para a sala de jantar. Sentamos então no chão e choramos como naquele longínquo dia. Sozinha e no escuro. Abandonada e desamparada apesar da família estar logo ali do outro lado.
Foi ali naquela casa que meu coração adoeceu de tristeza, de solidão, de abandono.
Foi ali naquela casa que arrancaram de mim a minha videira e me impediram de colher os frutos da vida.
Foi ali naquela casa que eu descobri que não podia demonstrar meus sentimentos.
Foi ali naquela casa que eu aprendi a ser obediente, a não querer, a não pedir, a me anular pra sobreviver.
Foi ali naquela casa que eu descobri que nem todas as pessoas são boas, que nem todas vão lhe entender e aceitar, que nem todas são confiáveis, mesmo que sejam de sua família.
Foi ali naquela casa que eu descobri que a alegria e brilho incomodam as pessoas tristes e amargas.
Foi ali naquela casa que senti a dor de ter minha luz e meu brilho embaçados, apagados e de ter minha alegria e sorriso calados.
Foi ali naquela casa que eu descobri que nasci numa família sombria, triste, apagada, fria, mal amada.
E eu era brilho, luz, alegria, cura, criatividade, intuição.
E minha luz e sorriso incomodavam e então trataram de me tornar sombria como eles.
Chorando a menina e eu nos abraçamos e nos fortalecemos.
Depois ainda abraçada à menina saí a procura do brilho, da luz, da alegria, da criatividade, da intuição, da vida, da felicidade e da paz que me pertenciam e que foram arrancados.
Plantei minha videira e ví como que por encanto ela crescer e frutificar.
Liguei então o velho rádio e dancei de mãos dadas com a menina.
Dançando ao som da música, eu ria e rodopiava livre, solta. Em minha volta tudo se iluminou, um brilho de vida tomou conta de tudo. E eu dançava. E eu cantava. Agora eu estava livre. Agora minha essência estava resgatada.
E eu dançava e dizia em voz alta, quase gritando:
Minha alma é rebelde, meu espírito é livre;
Minha alma é corajosa, meu espirito é autêntico;
Minha alma é alegre, meu espirito é feliz;
Minha alma é luz, meu espirito é nobre;
Minha alma é questionadora, meu espirito é curioso;
Minha alma é batalhadora, meu espirito é guerreiro.
A vida me pertence, eu posso tomar minha vida em minhas mãos, eu posso ser feliz.
Meu coração pode bater sem medo, meu coração pode ir onde quiser.
E então eu peguei minha videira e saí dali, ainda de mãos dadas com a menina, sem olhar para trás.
Caminhava com leveza e tranquilidade, com paz e alegria genuína.
E as pessoas me olhavam e se espantavam quando percebiam o brilho que emanava de mim. Porque poucas pessoas entendem uma pessoa livre de suas amarras e revestida de sua essência.