O Perfume
Ao cantar do galo, eu já estava de pé. Era preciso chegar cedo à cidade para que meu pai pudesse cumprir a agenda de negócios. Contudo, dada a minha pouca idade, esse fato não era tão importante para mim. Aquele sábado, dois de dezembro de 1974, era o dia do meu aniversário de 10 anos e eu estava na casa da fazenda, onde passava as férias. Durante o período letivo, eu morava com meus avós na cidade e eles costumavam fazer a festa do meu aniversário, com bolos e muitas brincadeiras, por isso acordei ansiosa. Queria reencontrar minhas amigas, que sempre estavam presentes e se divertiam muito. Uma brincadeira, em especial, era muito aguardada por mim: a de fazer teatrinho a partir da leitura dos folhetos de cordéis, os quais tinham no acervo do meu avô.
Naquele tempo minha família ainda não tinha carro próprio. Fazíamos nossos deslocamentos da fazenda para a cidade, e vice-versa, como era feito o transporte da maioria das pessoas da região: em um “pau-de-arara” (caminhão com os bancos de madeira na carroceria e cobertura de lona), que transportava, de forma coletiva e com pouca segurança, mais de 20 passageiros por vez. Esse transporte ‘fazia horário’ somente duas vezes por semana. E não era aos sábados. Assim, tínhamos de buscar alternativas se quiséssemos ir à cidade.
Meu pai, um homem apaixonado pela família, também era um visionário: um empreendedor que, além das diversas atividades típicas da fazenda, também arrendava uma pedreira (mina de extração de pedras rústicas) para um empresário local, o qual extraía e fazia o beneficiamento das pedras, como a britagem, que era usada principalmente em construção de casas. A extração era feita durante a semana e o transportamento aos sábados. Enxerguei aí a possibilidade de poder ir para a cidade, aproveitando-me daquela carona.
Não foi fácil convencer meu pai daquela ideia, mas, sabendo que o caminhão que levava as pedras da empreitada sempre tinha vaga na cabine, usei desse pretexto, bem como do motivo da minha festinha de aniversário, para persuadi-lo e deixar-me ir.
Com as despedidas feitas, seguimos. O percurso deveria ser de uma hora por uma estrada vicinal de chão batido e, após, mais uma hora em BR. O caminhão era novo, isso estava à vista. O motorista era moço e bem recomendado pela boa experiência na atividade, assim como também nunca foi presenciado nada que desabonasse a conduta do mesmo - esse detalhe fez toda diferença quando meu pai aceitou o meu pedido.
Durante o trajeto, a conversa rolava solta entre meu pai e ele. Falavam de coisas diversas, entre elas, a qualidade das pedras e da diversidade de produtos que poderiam ser feitos a partir delas. A estrada que dava até a BR era bem deserta. Não eram vistas casas ou pessoas transitando por ali e, assim, o silêncio e a monotonia reinavam quase absolutos, sendo quebrado pelas vozes deles mesmos naquela cabine de caminhão ou pelos pássaros cantantes daquela mata ainda quase virgem. Eu, absorvida pelos meus pensamentos, ignorava a conversa, pois estava mais ligada na minha boneca nova, que apesar de pequenininha, enchia o bolso da minha jardineira de calça comprida e remetia-me para uma visão fantasiosa de como seria minha festinha e as brincadeiras que faríamos.
A viagem seguia tranquila e já estávamos quase atingindo o topo da grande ladeira quando fomos tomados por um grande susto e pelo medo do perigo. A citada ladeira ficava no meio do trajeto. Eu costumava chamá-la de “precipício”, porque era muito alta, extensa e tinha uma curva acentuada no meio da mesma, que a tornava mais desafiante para os motoristas com pouca experiência. Nunca entendi porque a ladeira se chamava “Benefício” e não ‘precipício’.
Em um determinado momento, o carro perdeu a força dando sinal que iria descer. O motorista não era “marinheiro de primeira viagem”, contudo, tentou várias investidas de manobras com o volante e não teve êxito. Alardeou-nos que estava sem freio. Apelou para o que podia, mas o carro não respondia. Naquela ladeira enorme, se o carro descesse da altura de onde estávamos, fatalmente não sobraria, sequer, uma “alma viva” para contar a história.
De repente, ouvimos um grande barulho, que foi identificado como de pedras que caíam da carroceria. E, inexplicavelmente o carro foi descendo bem devagarinho, a ponto de o motorista tomar uma decisão. Ele olhou para o meu pai, e com muita segurança na fala, ordenou que ele fosse rápido e preciso para sair daquela boleia do caminhão e, antes disso, que ele me auxiliasse para eu sair dali também, pois certamente não seria possível manter o carro por muito tempo naquela situação, o que indicava um problema maior.
Diante desse apelo por uma tomada de atitude ágil, meu pai não teve dúvida: Levantou as mãos para o céu, implorou por graças e pediu que eu fechasse os olhos e pulasse rapidamente, procurando cair com os pés no chão e de pernas meio dobradas. Pulei. E vi que o meu pai fez o mesmo, inclusive quase caiu por cima de mim.
Já no chão e, ali abraçadinhos perguntei ao meu pai se ele tinha quebrado algum perfume com ele, ou algo parecido perto de nós, pois um cheiro muito forte de perfume parecia nos embriagar. Meu pai concordou comigo, mas achou que fosse coisa do calor da emoção ou da minha fértil imaginação. Não sei calcular por quanto tempo ficamos agachados ali, até sermos interrompidos por um grito, que mais parecia um eco. Era do motorista que perguntava, de longe, se estávamos bem.
Certos que só tínhamos apenas alguns arranhões, enchemo-nos de coragem, levantamo-nos e ficamos conversando sobre o episódio. O motorista aproximou-se e disse, completamente impactado, o que tinha acontecido após nossa descida. Com voz trêmula, descreveu que as pedras foram se afastando lentamente, caindo do carro e, como em um efeito dominó, agrupavam-se na estrada e davam passagem ao carro. Relatou ainda que um estado de letargia dominou seu corpo por alguns minutos enquanto ele sentia o caminhão descer lentamente, sem nenhuma interferência dele. Explicou que sentiu uma “força superior” manobrando aquele carro, de tal forma, que seria impossível para um profissional realizar tal façanha. Meu pai, um homem temente a Deus, pediu que fizéssemos uma oração de agradecimento pelo livramento sucedido.
Logo após, decidimos que o carro e a carga ficariam ali, ao pé da ladeira, até poder serem pegos depois.
O sol já ardia nas nossas costas e, por isso, não podíamos ficar ali parados. Resolvemos, então, andar a pé, os três, por aquela estrada afora, até chegarmos a BR.
E fomos indo a passos lentos, pois sentíamos nossos corpos doloridos e os incômodos de alguns arranhões, além da enorme sede e do cansaço físico que nos abatia. Meu pai, por vezes, quis me colocar nos braços, mas meu orgulho não deixou. Eu era muito compenetrada e achava que, se eu o fizesse, na próxima oportunidade ele não me deixaria participar de outra aventura.
Seguíamos fazendo sinal para os carros que passavam por nós até sermos atendidos. Um automóvel parou e nos ofereceu uma nova carona até a cidade.
Aquele veículo era conduzido por um homem, aparentemente, de trinta e poucos anos, bonito, de barba grande e bem-feita. Mostrava-se muito gentil nos gestos, falava pouco, mas de forma atenciosa. Apesar de não se engajar na conversa, partiu dele uma única pergunta e, essa foi para mim. Queria saber se eu, quando crescesse, seria poeta ou escritora. Na ocasião aquele questionamento não fez sentido nenhum para mim e, sem querer encompridar a fala, afirmei que sim.
Ao chegarmos à cidade, ele fez questão de nos deixar na porta de casa. Rapidamente tratamos de descer do carro, lembrando das entregas do meu pai, que a essa hora já estavam bem atrasadas. Devida a fadiga, o que mais queríamos era adentrar a casa do meu avô. Meu pai apressadamente tocou a campainha. Nesse instante, gritei porque me lembrei da boneca que eu esquecera no banco do carro. Meu pai virou-se para os agradecimentos ao nosso carona, mas em vão, ele não estava mais lá. Em questão de segundos, aquele carro desaparecera, feito fumaça no ar.
Incrédulos, olhamo-nos e tudo era muito surreal. Sem testemunha ocular e sem ninguém mais para ouvir o ronco do motor, nem ao menos o mesmo se afastando. Ficou ali, daquele transporte, somente um forte e inesquecível cheiro de lavanda no ar. Aquele mesmo cheiro que sentimos no inexplicável acidente na ladeira. E, sem saber o que dizer ou fazer, ficamos a pensar.
Anjo da guarda existe? Ou será que foi o mentor dele? Ou será, ainda, que quem nos deu a carona foi o mesmo que ajudou no inusitado acidente da ladeira? Isso ninguém jamais saberá. Mas acreditar na força do bem, que nos protege de muitas coisas ruins, alegra a nossa caminhada pela estrada da vida.
A comemoração do meu meu aniversário aconteceria na hora certa, afinal de contas, a natureza nunca se atrasa, ela segue seu compasso. Devemos, pois, seguir com fé os sinais. Inexoravelmente a vida segue.