A EDÍCULA

“Se essa rua, se essa rua fosse minha...” cantarolava enquanto passava pelo morro de pedra cujo nome não lembro. Contava as casas de cor amarela e dava nome as de cor vermelha. Uma delas, me chamou a atenção pelo abandono, não tinha portas, nem janelas e estava tão degradada que apresentava um toque de charme nela. Pichações e grafites nas paredes e trepadeiras pra tudo que é lado. Umas não aguentaram, provavelmente, a falta de água ou sol e acabaram secando. Se emaranhavam umas nas outras, era quase impossível indicar onde exatamente começava ou terminava. Uma boa parte dos tijolos estava amostra, a tintura que mais parecia cor de gelo, já estava totalmente desgastada e quase não se fazia presente. Passei alguns minutos olhando e analisando os detalhes e me assustei ao notar que estava quase no meio de uma calçada, atrapalhando outros pedestres de transitar. Apesar de me chamar tamanha atenção, resolvi deixar de lado o meu desejo de explorar...

Quase uma semana havia se passado, chocara com várias outras casas, não tão iguais e não tão diferentes da citada antes, mas, nenhuma me prendeu a ponto de voltar. Parei em frente à entrada, que seria como um portão, se tivesse um, e janelas redondas de vidro, com vários buraquinhos, provavelmente das pedras que foram atiradas de proposito para estilhaçar, o que não foi tão bem sucedido, ainda estava firme apesar do estado em que se encontrava. O teto também não estava inteiro, faltava telhas e, as que sobraram eram pedaços. Dava para ver o céu brilhando. Imaginei como seria passar uma noite em um local como aquele. Olhei para os lados, para me certificar de não estar sendo seguida ou algo parecido e entrei.

Encantada com os detalhes, olhava de cima a baixo e analisava tudo como se fosse uma obra de Van Gogh. As manifestações artísticas que ali continham, não deixavam a desejar. Arte de rua, arte bruta e pura e pareciam calculadas para preencher exatamente cada vazio, de cada cômodo e espaço. Ao entrar, contei o que seria uma sala principal bem grande e espaçosa, três cômodos que chutei serem os quartos, ficavam na lateral esquerda da sala. Um murinho pouco mais alto que a minha cintura que cogitei ser uma bancada que ligava a cozinha. Um jardim de inverno repleto de erva daninha e uma pequena arvorezinha que preenchiam o local, com um frescor e delicioso cheiro de verde.

Ao sair por uma porta de vai e vem dei de cara com um quintal gigantesco, com muito entulho e também uma floresta espessa. Segui para o local desviando dos galhos secos que invadiam todo o espaço e caminhei até chegar ao final e já sem grandes expectativas, avistei uma pequena casinha, provavelmente mais um quarto ou talvez uma edícula. Uma janela gigantesca, cor de ferrugem, e uma porta discreta na cor verde abacate. Por incrível que pareça, devidamente preservadas. O tempo não parecia ter afetado em nada. Tentei olhar entre os vidros e, uma cortina ou persiana atrapalhavam o meu feito...

− Droga!

Dei leves batidas, na tentativa de expressar minha frustração e segui em direção a porta. Também não tive sorte. Trancada a sete chaves, presumi. Tentei forçar um pouco mais, na tentativa de que só estivesse emperrada, nada. Virei para o matagal atrás de mim, frustrada pelo não sucesso na exploração e olhei mais uma vez em direção a edícula e deixei o local, balbuciando para mim mesma, para vir mais preparada na próxima vez.

Chegando em casa, joguei minha bolsa na mesinha de entrada e corri para um banho demorado. A água caia no meu corpo enquanto eu viajava em pensamentos, mais precisamente, a edícula. Como se mantivera intacta diante o abandono do local eu não fazia a menor ideia, mas queria descobrir de qualquer maneira. Depois do banho e do lanche improvisado, me joguei na cama com o notebook em mãos, resolvendo navegar em pesquisas até não aguentar mais, o foco se mantinha na casa. Nada fazia muito sentido, o local parecia nunca ter existido, como se tudo fosse apenas um terreno vazio. Pesquisei e pesquisei, na tentativa de encontrar no mínimo um registro, nada, não tinha exatamente nada. A casa era um fantasma.

Acordei desesperada com o som ensurdecedor do alarme, já havia tocado todos os que foram ativados por mim. Completamente atrasada, vesti minha roupa para ir ao trabalho, já era quase nove horas da manhã, e eu devia ter chegado as sete.

O dia se passara lentamente, matava o tempo extra com qualquer coisa aleatória. Olhava pela pequena janela perto da minha mesa de trabalho quando o relógio apontou as cinco horas, era o fim do meu expediente. Levantei com um pouco de entusiasmo, passando pelo corredor quase voando em direção ao local que vocês já conhecem...

Ofegante e um tanto suada foi como cheguei ao meu destino, entrei já me sentindo em casa, desejando boa tarde para a trepadeira que intitulei de amiga e, até levei um pouco de água para a mesma. Fui em direção a edícula, dessa vez com algumas ferramentas, chaves de fenda e até um alicate, já não me importava se era proibido invadir. Joguei minha mochila no chão, retirando tudo que eu precisava de dentro dela para arrombar a bendita porta cor de abacate, que parecia zombar de mim de tanto que a encarava. O trinco parecia soldado para não se mexer de nenhuma maneira, parecia coisa de outro mundo, não fazia um sequer arranhão, nem mesmo com todas as minhas tentativas falhas e frustradas de abrir.

Enquanto tentava repetidamente, escutei um barulho vindo da casa principal. Guardei as minhas coisas e me mantive alerta para correr quando fosse necessário. Avistei um cabelo vermelho, provavelmente pelo sol, que se fez presente antes de eu chegar, passava entre o mato e em direção ao mesmo lugar em que eu me encontrava. Desesperada, andei de um lado para o outro sem saber se me escondia ou se corria, ou mesmo se gritava. A porta abriu. Não pensei duas vezes ao olhar para aquela que eu tentei tantas vezes abrir, escancarada e quase me convidando para entrar. Corri e tranquei a porta atrás de mim, descansando minhas mãos nos joelhos, ofegante. Barulhos se faziam audível lá fora, quem quer que fosse aquela pessoa, estava tentando entrar. Andei pelo ambiente escuro, na tentativa de encontrar um lugar para me esconder, não conseguia enxergar nada a minha volta, meu celular descarregado, a lanterna que eu trouxera na mochila tinha caído em algum lugar, tudo dificultava. Andava com os braços estendidos para não esbarrar em nada, tateava coisas que pareciam garrafas e livros em uma estante que presumi cheia de poeira, me segurei para não soltar um espirro. A coisa, estava tendo um pouco de dificuldade lá fora, praguejava coisas que não conseguia entender. Dei mais alguns passos quando de repente...

− Ai.

Caí escada abaixo, completamente desajeitada. Havia um corredor de pedra a minha frente com dois sinalizadores, um em cada lado da parede, peguei um deles e segui em direção ao fim do corredor olhando de vez em quando para atrás de mim, checando se nada me seguia. Uma luz se fazia presente, uma pequena porta abaixo dos meus ombros se destacava ao final do corredor, corri em direção ao local apressando os passos com o intuito de encontrar um cantinho para me esconder. Cheguei mais perto da porta reluzente, entrei, completamente cega pelo clarão foi como eu fiquei. Aos poucos, meus olhos foram se acostumando com a luz. O ambiente em que me encontrava era, uma grande sala com paredes de vidro, até o teto, tinha uma mesa gigantesca no meio, com materiais que não me importei em identificar. Fui em direção a uma outra mesa e me aconcheguei embaixo dela, era o único local escuro daquele ambiente. Uma mulher muito alta, adentrou no local, andando a passos largos, parecia ter pressa, procurava algo na grande mesa, revirando e jogando tudo para o alto, bagunçando-a ainda mais. Falava coisas que eu não conseguia entender, várias línguas se misturavam, até mesmo um português errado se eu não estivesse enganada.

− Falta só isso, só isso... onde está essa chave maldita!

A sua fala parecia se adaptar facilmente a qualquer língua, até as que eu não conhecia. Deixou cair alguns papeis no chão sem se importar em recolher, andou em direção a saída novamente sem olhar para trás. Me ajeitei de uma maneira que dava para alcançar minha visão nos papéis, havia muitos rabiscos e textos que não conseguia identificar ou achar semelhança com línguas que eu conhecia. Estava quase saindo de baixo da mesa para tentar ler mais alguma coisa quando ela entra novamente, dessa vez, de um jeito nada humano. Minhas mãos foram parar na minha boca institivamente, tapando um quase grito. Me arrastei até encostar no fundo da mesinha.

− Habeo nullum tempus... (Não tenho tempo)

Praguejou a mesma frase várias e várias vezes seguida, enquanto continuava a procurar o objeto perdido. Ela ou o que quer que fosse, deixava rastros de uma gosma fluorescente por onde passava, estava derretendo. Em minha direção seguiu, abrindo uma gaveta e jogando tudo o que continha dentro no chão, algumas das coisas caiam de baixo da mesa rolando, era tudo estranhamente arredondado. Peguei uma delas, parecia uma ampulheta, havia algo que se assemelhava a pequenas estrelas, no lugar da areia habitual, brilhavam como pontinhos de luz, fiquei hipnotizada com o objeto em minhas mãos, tanto que deixei minhas pernas se estenderem para fora do lugar seguro. O ser voltou ao corpo que eu vira antes em um clique e arrastou-me pelas pernas enquanto gritava...

− Como entrou aqui? Não era para entrar aqui!!

Exasperada, sacolejava os meus ombros. Eu não conseguia abrir a boca para nada, estava completamente extasiada com a mulher a minha frente, era de uma perfeição sem tamanha, seus olhos negros e arregalados brilhavam em minha direção, os cabelos cor de fogo, um nariz perfeitamente alinhado, era quase um desenho ambulante. Minha boca entreaberta se fechou em um espanto ao me deparar com a mudança repentina de forma, como em um passe de mágica se transformou na criatura gosmenta novamente, a cor roxa se fazia presente, seu rosto parecia derreter, caiu sentada, como se estivesse cansada, ficava mudando de cor e de forma com uma facilidade que eu não conseguiria descrever.

− Preciso encontrar a... a chave...

− Deixe-me procurar para você, como ela é?

Sugeri na tentativa de ajudar. Ela me encarava, desconfiada, mas acenou com a cabeça em seguida. Levantei em um salto, procurando em todos os cantos daquela sala.

− É verde... a chave é verde.

Assenti em concordância não deixando de procurar. Ela gritava, parecia sentir muita dor. Olhei entre os livros e papéis sobre a mesa até encontrar um ponto de luz esverdeado, peguei o objeto entre meus dedos e estendendo para a mulher derretida.

− Achei, achei...

− Traga para mim, rápido!

Corri e entreguei para a mesma, ajudando-a a se levantar já na sua forma humana novamente. Ela caminhou em direção a um armário branco que até então não o tinha notado ali, abriu as duas portas e encaixou a chave em uma espécie de painel, com muitos botões espalhados, de cores e tamanhos diferentes.

− Você precisa sair daqui, agora mesmo...

− O quê? Porque? Para onde você vai? Eu tenho tantas perguntas, o que é você, o que é esse

lugar? O que...

Me interrompeu enquanto me puxava pelo braço em direção ao corredor. Eu repetia as perguntas e acrescentava outras no meio, falava tudo rapidamente enquanto fitava a mulher que não parecia querer conversa.

− Você não vai lembrar de nada do que aconteceu aqui.

− O quê? Não! Você não pode fazer isso, por favor. Essa é a coisa mais incrível que me

aconteceu, em toda a minha existência, me leva com você, eu ajudei a encontrar a chave!

Ela bufou em tom de reprovação, já estávamos de volta no quintal, ela pegou alguma coisa no seu bolso e colocou em minhas mãos. Era a ampulheta.

− É feito de estrelas, fragmentos pra falar a verdade. Fique com ela. Quando todas as

estrelas de um lado passarem para o outro, retornarei para este mesmo lugar e, enquanto

as estrelas brilharem, estarei viva.

Entrou de volta na edícula, com a porta se fechando em seguida. Tentei abrir novamente a mesma e como em um piscar de olhos a casa sumiu, eu estava em um terreno vazio, meu braço ficou estendido no ar, não esbocei uma gota de surpresa. Completamente indiferente com o que agora a pouco acontecera, fiquei a admirar a ampulheta que brilhava ainda mais que antes.

📣 Esse conto compõe a Antologia ⤵️

"A Verdade Está Lá Fora?" Sob a organização da editora PSIU!

Mikaela Alves
Enviado por Mikaela Alves em 16/08/2021
Reeditado em 27/10/2021
Código do texto: T7321842
Classificação de conteúdo: seguro
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