A Noiva da Rua Direita
Era o início do século XX numa cidade do interior.
Um médico chegou numa pequena cidade para trabalhar. Por questões pessoais teve que sair da capital, onde morava, e se instalar em outra cidade. E escolheu exatamente aquela cidade. Lá só tinha um velho médico e ele viu a oportunidade de refazer sua carreira ali. Era quarentão e solteirão. Sozinho no mundo, ele não se apegava a nada nem a ninguém. Um tanto cético, ele não alimentava muitas crenças. Não frequentava Igreja e dizia que acreditava em Deus a seu modo. No entanto era caridoso e desapegado. Jamais deixava de atender ou ajudar alguém que precisasse dele, mesmo que soubesse que não podiam lhe pagar. Era um tanto metódico e sério. Não tinha vícios. Dizia que seu vício era a leitura e os conhecimentos.
Chegando na cidade, alugou uma casa por um preço bem módico na Rua Direita. Era comum que ruas de cidades pequenas não tivesse nome. Eram conhecidas por Rua Direita, Rua do Canto, Rua Torta e por aí vai.
Achou que tivera um golpe de sorte pois a casa tinha cômodos independentes onde poderia instalar também seu consultório. Pela aparência, a casa estava há bastante tempo desabitada.
Instalou-se numa pequena pensão da cidade enquanto fazia as reformas que a casa precisava.
O primeiro profissional que foi trabalhar na reforma se mostrava assustado:
-O senhor tem certeza que quer morar nesta casa?
-E por que não? Esta casa caiu do céu pra mim. Vou poder morar e montar meu consultório aqui. Além de ter uma boa localização e o aluguel ser bastante razoável.
-Mas o senhor não tem medo?
-Medo de quê?
-Bem, o senhor é quem sabe. Eu só trabalho aqui até às cinco horas da tarde. Neste lugar aqui eu não passo depois que anoitecer.
-Mas o lugar é perigoso? Esta cidade parece tão pacata. Não me parece violenta. Além do mais eu estou acostumado na capital.
-Não é bem isto.
-O que é então?
-É que dizem que nesta parte da rua costuma acontecer umas coisas estranhas.
-Que tipo de coisas estranhas?
-Dizem que é mal assombrada.
Ele deu uma gargalhada. Era comum nesta época casos e relatos de assombrações, fantasmas e afins. As pessoas juravam que várias casas eram mal assombradas e que assombrações e fantasmas apareciam na calada da noite. Quando havia algum relato deste tipo as pessoas ficavam apavoradas e evitavam o local ou a rua onde alguma pessoa dizia ter visto um ser do outro mundo.
-Isto não me assusta. Quem dera que todo o mal do mundo fosse assombração e fantasmas.
-Bem, o senhor é quem sabe.
Terminada a reforma ele se mudou para a casa e instalou seu consultório. Tipo ermitão, ele se virava sozinho no consultório e em casa. Fazia sua própria comida e mantinha a casa e o consultório em ordem e limpos.
Como era um excelente médico, logo fez seu nome e seu consultório ficava cheio. Como era metódico, gostava de atender em seu consultório até mais tarde e tirar a manhã para organizar sua casa, cozinhar, cuidar do jardim e de sua horta.
Logo, no entanto, percebeu que a maioria das pessoas não gostava de marcar consulta depois das sete da noite. Mas pensou que era questão de costume da cidade.
Muitas vezes depois que terminava o trabalho, ficava lendo na varanda e percebeu que a rua ficava completamente deserta à noite.
Um dia ele foi chamado para uma consulta em domicílio. Foi atender uma senhora que estava passando muito mal. Terminou suas consultas e se encaminhou para o atendimento. Realizou a consulta e ficou por lá um tempo conversando e esperando para ver se a senhora precisaria de mais algum procedimento. Quando saiu já passava das dez horas da noite. O dono da casa disse um pouco assustado:
-O senhor vai embora sozinho?
-Sim. Não é tão tarde assim e esta cidade me parece pacata.
-Mas o senhor não tem medo?
-Medo de quê, exatamente?
-É que dizem que lá na Rua Direita, perto de onde o senhor mora costuma acontecer umas coisas estranhas.
-Coisas estranhas? Que tipo de coisas?
-Dizem que lá muitas vezes aparece assombração.
Ele riu:
-Assombração? E isto existe?
-Dizem que sempre aparece por lá uma mulher vestida de noiva. Dizem também que esta mulher foi abandonada pelo noivo. Daí ficou louca e acabou desaparecendo. Ninguém sabe se morreu ou se só virou um fantasma. E muitas vezes ela aparece por lá pois sua família morava por ali.
Ele riu:
-Bem, já moro lá há alguns meses e nunca vi nada. Isto não passa de crendice. Além do mais, diz o ditado que assombração sabe para quem aparece, não é? Boa noite (saiu rindo).
A noite estava agradável e ele foi caminhando vagarosamente. Parou na pracinha da cidade e ficou por ali um tempo. Depois rumou para casa.
Como ficou pensando naquela história, foi caminhando até o fim da rua. Quando já estava no final viu um vulto na sacada superior de um sobrado. Quando seus olhos se acostumaram com a escuridão e ele olhou novamente viu uma mulher vestida de noiva. Ele estremeceu. Nunca acreditara nestas coisas mas ali na sua frente estava uma mulher vestida de noiva, exatamente como o senhor tinha lhe dito. Ele não costumava sentir medo. Ficou observando a mulher. Ela estava distraída como se estivesse sonhando ou vivendo a cerimônia do casamento. Ele assobiou pra chamar a atenção dela. Foi como se ela não tivesse escutado. Ficou imóvel, olhando para o nada. Ele foi se aproximando mais. Tinha absoluta certeza que fantasmas não existem e que aquela era uma mulher de carne e osso. Já estava quase debaixo do sobrado e assobiou novamente. Ela não se mexeu. Então ele disse:
-Ei, moça.
Ela ficou imóvel. De repente ele ouviu um barulho atrás de si. Virou-se pra ver o que era. Não viu nada. Quando olhou novamente para o sobrado a mulher havia desaparecido.
Calmamente ele foi para casa. Estava intrigado. Não acreditava em fantasmas, sabia que não existiam. Portanto teria que haver uma explicação para aquilo que assustava as pessoas e tornava aquele lugar evitado por todos durante a noite.
Nos próximos dias ele procurou informações sobre o sobrado e sobre quem morava lá. E todas as noites ia até lá procurando ver a mulher. Mas ela não voltou a aparecer.
Procurou um professor mais velho que, segundo informações, sabia de toda a história da cidade:
-Bom dia, professor Macedo! Eu sou Thales, médico. Tenho um consultório na Rua Direita.
-Bom dia, Dr. Thales! É um prazer conhecê-lo. Como vê, tenho uma boa saúde. Ainda não fui lhe consultar.
-Que bom. O prazer é meu. Disseram que o senhor conhece toda a história da cidade. Eu estou precisando de algumas informações do senhor.
-Se eu puder ajudá-lo.
-Tem um sobrado no final da Rua Direita, parece abandonado. O senhor sabe de quem ele é?
-Os donos de lá já faleceram e ele está abandonado há bastante tempo. Eles tinham uma filha e depois criaram um menino que hoje já se casou e mora em uma casa numa rua bem próxima de lá. Posso saber qual o interesse pelo sobrado?
-Eles tinham uma filha? Ela morreu?
-Ninguém sabe. Ela ia se casar e foi abandonada pelo noivo já na Igreja. Ele não apareceu. Desde este dia ela se trancou em casa e ninguém mais soube dela. Os pais nunca quiseram falar no assunto. Alguns dizem que ela enlouqueceu, outros dizem que ela estava grávida e morreu no parto, outros dizem que ela suicidou-se. Mas ninguém sabe. O fato é que depois destes acontecimentos eles passaram a criar um menino que não se sabe se era neto deles ou um filho adotivo.
-Há quanto tempo este fato ocorreu?
-Há mais de trinta anos.
-E por que dizem que aquela região é mal assombrada?
-Muitas pessoas dizem que já viram uma mulher vestida de noiva pela rua ou no sobrado. Daí começou a lenda que é o fantasma desta moça.
-O senhor já viu esta mulher?
-Não, eu nunca vi e também não acredito nestas bobagens.
-Pois eu já vi a mulher vestida de noiva. Na sacada superior do sobrado.
-O senhor está brincando, não é?
-Não. Eu vi mesmo.
-Não imaginava que o senhor, um médico, acreditasse em assombração.
-E não acredito. Acho que é uma mulher de carne e osso. E como eu sou muito cético, quero investigar e provar que ela não é uma assombração. Já que o sobrado está abandonado, será que teria como eu entrar lá?
-Lá é uma propriedade particular. Entrar sem autorização é pouco recomendável.
-E com quem posso conseguir uma autorização?
-O dono de lá, que é o rapaz que eles criaram, é bastante arredio. De poucas palavras e não se dá com quase ninguém.
-Entendo. O senhor não poderia me ajudar?
-Taí. Se tem uma coisa que me agradaria é provar que não existe assombração naquele lugar.
-O senhor me ajudaria a entrar naquele sobrado?
-Podemos tentar.
Com algum custo eles conseguiram entrar no sobrado e para surpresa deles encontraram lá um vestido de noiva e um véu.
Deste dia em diante eles ficaram tentando ver a noiva assombração e desmascará-la.
Viram-na algumas vezes andando pela rua ou no sobrado mas não conseguiram se aproximar. Ela sempre desaparecia na escuridão.
Certo dia, ele estava lendo na sua varanda. Já passava de onze horas da noite. De repente ele viu um vulto se esgueirando pela grade de sua casa. Ficou observando e percebeu o vestido branco. O vestido de noiva. Ele ficou observando discretamente. De repente ela virou-se e ficou olhando para ele. Ele sentiu seu sangue gelar nas veias. Ela nunca ousara chegar até a casa dele.
Ele então levantou-se rapidamente chegou até a grade e segurou o braço dela.
-Quem é você? Por que fica tentando assustar as pessoas?
-Eu não tento assustar ninguém. E você? Por que invadiu minha casa e mexeu nas minhas coisas?
-Então você é uma mulher de carne e osso, não é?
-Nunca disse que não era.
-Você não sabe das histórias que contam por ai? Que neste lugar aparece uma assombração vestida de noiva?
-Eu nunca disse que era uma assombração.
-Quem é você então?
-O que interessa quem eu sou?
-Você brinca com as pessoas.
-Não quero brincar com ninguém. E não quero mais você invadindo minha casa.
-Você não quer me contar porque fica andando por aí vestida de noiva?
-Não. Eu nem lhe conheço.
-Sou Thales, sou médico. Moro e tenho meu consultório aqui. Se quiser conversar, vou guardar sigilo como se fosse uma consulta médica. Você pode confiar em mim.
-Não quero conversar.
-Se quiser, todas as noites eu estou aqui. Gosto de ler aqui na varanda.
Ele larga o braço dela e rapidamente ela some na escuridão.
Ele esperou por ela por várias noites mas ela não apareceu. Passados alguns meses, numa noite, ele tinha terminado suas consultas e estava organizando as coisas para fechar tudo. Distraído, ele não percebeu a chegada dela. Ela se postou atrás dele em silêncio absoluto. Quando ele se virou, estremeceu de susto. Como se visse um fantasma.
-Como você invade minha sala assim em silêncio? Que me matar de susto?
-Continua achando que sou um fantasma?
-O que faz vestida com este vestido e este véu?
-Você disse que se eu quisesse poderia vir conversar.
-E você quer?
-Como numa consulta? Ou como num confessionário?
-Tenho o código de ética dos médicos. Estou obrigado ao sigilo. Quer se consultar?
-Quero. Não aguento mais ficar em silêncio.
-Vou fechar o portão para ninguém entrar.
-Não.
-Não vou fazer nada com você. Pode confiar.
Ele fecha o portão, volta senta-se e diz pra ela se sentar.
-Você não é daqui, né?
-Não, não sou.
-É casado?
-Não sou solteiro e sozinho.
-Eu posso mesmo confiar em você?
-Claro que sim. Como seu médico.
-Meus pais me proibiram de falar, me prenderam, me fizeram acreditar que eu estava ficando louca, que precisava ficar presa em casa. Então eu comecei a sair a noite para ver a rua. Sempre saí escondido quando eles estavam dormindo.
-Por que eles fizeram isto. São vivos ainda?
-Não, já morreram.
-E por que continua se comportando assim?
-Por que meu fi…, meu irmão também não gosta que eu saia, me proíbe. Não quer que saibam que estou viva.
-Por que fazem isto com você? Há quanto tempo você vive assim? Como é o seu nome?
-Há trinta anos. Muitas vezes me fiz de louca pra que me deixassem em paz. Meu nome é Maria Marta. Você foi o único que não sentiu medo de mim. Soube então que você é diferente dos outros.
-Conta por que fizeram isto com você. Quero lhe ajudar.
-Não preciso de sua ajuda, só que me ouça.
-Fale.
-Eu tinha dezessete anos quando conheci um homem que veio trabalhar aqui. Era da capital. Eu me apaixonei por ele e ele dizia que estava apaixonado também. Meus pais o acolheram e aceitaram o namoro. Ele prometeu se casar comigo e me pediu a tal “prova de amor”. Eu era ingênua, tola, apaixonada e me entreguei a ele. Eu fiquei grávida. Ele, para não causar problemas, aceitou marcar o casamento. Eu estava feliz, realizada. Quando fiquei pronta, estava realmente uma noiva linda. Fui para a Igreja para encontrar e me casar com meu amado. A Igreja estava cheia e ele não chegava. Mais tarde chegou um amigo nosso, muito sem graça e disse: “O Maurício não vem, deixou este bilhete. Foi embora. Não volta mais.” Eu fiquei arrasada, envergonhada, me senti traída e ultrajada. Li o bilhete dele: “Não posso me casar com uma caipira como você, não quero passar minha vida ao lado de uma pessoa que não é adequada à minha vida. Não quero ter um filho. Nunca quis isto. Não é esta a vida que quero pra mim. Adeus.” Eu chorei, me desesperei. Eu não merecia a covardia dele de me deixar um bilhete frio como se eu fosse totalmente insignificante, como se eu não tivesse sentimentos. Ele se comportou como um canalha.
Ela engasgou e se calou. Ele segurou as mãos dela como que pra lhe dar força para continuar. Ela continuou:
-Como eu estava grávida, meus pais me esconderam. Dizia para as pessoas que eu tinha adoecido com a decepção e depois que eu estava com sinais de loucura e que não queria sair. Quando meu filho nasceu, eles inventaram que tinham adotado um menino que estava desamparado. Eles me tratavam como uma criada, como uma babá do meu próprio filho. Eles me torturavam emocionalmente como que tentando me levar à loucura.
Numa noite em que estava desesperada eu me vesti de noiva e saí para a rua. Precisava sair daquele ambiente e não sei porque resolvi colocar meu vestido de noiva e meu véu. Caminhava lentamente aqui pela rua, não via nada nem ninguém. Só queria respirar um ar puro, longe daquele inferno que se tornou minha casa. Mas aí algumas pessoas me encontraram e pensaram que era uma assombração. Fugiram de mim horrorizadas. Surgiu então esta lenda da noiva da Rua Direita, a assombração. E eu podia andar tranquilamente pois todos se afastavam e tinham medo de mim. E assim esta lenda se arrastou pelos últimos trinta anos. Eu era só uma menina, uma jovem sonhadora.
-Você nunca mais teve noticias deste canalha?
-Não. Ele nunca procurou saber de seu filho.
-Você mora com seu filho?
-Sim. Ele me trata como uma criada da casa ou como um traste louco.
-Por que você não mora no sobrado?
-Ele não deixa. Diz que eu não tenho condições de viver sozinha, que sou só uma louca.
-Você não pensa em reagir?
-Muitas vezes eu penso em reagir, mas outras vezes eu penso que é este o meu destino.
-Ele sabe que é seu filho?
-Não. Nunca me deixaram contar. E não quero que ele saiba. Ele me despreza como se eu fosse só um traste jogado pela casa.
-Mas você não tem culpa. Seus pais não deixaram você ser mãe.
-Não estou disposta a mudar as coisas agora.
-Pois acho que você deve mudar. Vai passar a vida toda como um fantasma, sem ter vida própria?
-Aquele homem acabou com minha vida.
-Ele está vivendo a vida dele. Você tem direito de viver a sua vida.
-Não consigo.
-Consegue sim. Deixe de ser fantasma e se torne uma mulher. Refaça sua vida. Seus pais já estão mortos. Não deixe que eles continuem comandando a sua vida. E quanto ao seu filho, você é a mãe. Você que deve ter autoridade sobre ele, não ele sobre você.
Ela começou a chorar. Ele a consolou e tentou fortalecê-la.
Nos próximos meses ela sempre ia até a casa dele para conversar.
Aos poucos ela foi se sentindo encorajada a tomar a vida em suas mãos. Parou de se vestir de noiva, começou sair de casa durante o dia. Resolveu voltar a morar no sobrado e contou para seu filho toda a verdade. O Dr. Thales a ajudou a enfrentar seus demônios e fantasmas. As pessoas souberam que a Rua Direita não era mal assombrada, souberam que a noiva abandonada agora era uma mulher e era uma mulher forte e determinada.
Ela e o Dr. Thales se tornaram grandes amigos e sempre ajudavam um ao outro.
E ele se sentia satisfeito por ter provado que assombração não existe…