LUA E ESTRELA

Eu a matei, eu confesso. Estou escrevendo às pressas essa carta pois tenho que fugir. Estão atrás de mim. Não é uma admissão de culpa por escrito, pois eu juro, jamais me pegarão vivo. Isso é certo. Tão certo quanto a visão daqueles olhos horripilantes dela me encarando antes que eu a acertasse com a pá, no golpe derradeiro.

Amélia, 33 anos. A conheço desde que eu tinha 10 anos. Hoje, com 29, eu choro ao lembrar de tudo o que vivemos até aqui. Tentando entender como as coisas se precipitaram dessa forma descontrolada e irremediável.

–Este é o seu e a lua é minha. Enquanto tivermos os nossos pingentes, não nos esqueceremos um do outro, não importa onde tivermos ou o que estivermos fazendo.

–Onde acha que vamos estar daqui a vinte anos? Quer dizer. Você, tão sonhadora. Com o seu bom humor que contagia todo mundo. Suas histórias de como queria que o mundo fosse e as pessoas. E a diferença que quer ser no mundo, na vida delas. Com certeza seu futuro será grandioso. Mas e eu?

–Você? Esse é o motivo de eu ter dado a estrela pra você e não a lua. Você tem luz própria. É engraçado. Bom de coração. Faz de tudo pelos seus amigos e uma pessoa assim, não tem como não ter um futuro grandioso. Talvez você não perceba. Mas eu enxergo bem o que está aqui. –Disse Amélia, encostando suavemente a mão no meu peito, do lado do coração. Nos aproximamos e nos beijamos. Lembro que o coração palpitou e a garganta secou e eu suava frio. E que nem na minha tenra infância, quando dei meu primeiro beijo, eu me senti assim.

Eu ainda tenho junto ao peito o pingente de estrela. Mas a enterrei com o seu pingente de lua crescente. O dela tinha a lua e ao lado uma armação de estrela, na qual o meu pingente se encaixava. Assim como o meu continha a armação da lua crescente que servia de encaixe para o pingente dela. A cidade ficou para trás. Assim como tudo. Tudo. A felicidade e a tristeza, os choros e os risos. Tudo o que vivi ali. O que foi a minha vida toda. Nunca saí daquele lugar.

Parei na estrada para urinar. No cerrado à noite faz muito frio e eu estava de manga de camisa. Aliviei-me numa moita e me chamou a atenção os ânimos exautados no bar alguns metros à frente, do outro lado da estrada. Falavam do assassinato. Tava passando no telejornal da tv. Apressei-me pra que ninguém notasse minha presença ali, visto que desde o início eu fui apontado como o principal suspeito. Entrei no carro, dei a partida e liguei o rádio. As notícias davam conta de que uma repórter de tal emissora, teve, com exclusividade, informações confidenciais da investigação, que levavam o suspeito, eu, no caso, até a casa de um meio-irmão, que morava em BH. Bom, fiquei preocupado. Era mesmo para lá que eu estava indo. Mas também é bem provavel que pode ter sido dedução óbvia. Investigaram meus parentes e fizeram um mapa traçando os endereços de cada um e o que levantaria menos suspeitas.

Encostei o carro num posto de combustível desativado e abandonado. Debaixo de uma árvore, para que quando acordasse, de manhã, permanecesse oculto nas sombras. Apesar da noite nublada, a lua que brilhava no céu era a crescente, por azar ou escárnio divino. Punição talvez. Pra me lembrar. Não era difícil lembrar dela. Muitas coisas me faziam reviver na memória lembranças tão vívidas que chegava a me arrepiar com as sensações estranhas que traziam de deslocamento. Como se fosse possível que as próprias leis do tempo e espaço se alterassem naquelas horas.

De manhã eu continuei cortando a estrada, mas pelo caminho oposto, claro. Retornaria pelo Paraná, de onde tentaria deixar o país pelo país vizinho, o Paraguai. Entrei numa loja de conveniência. Usava um casaco com capuz e óculos escuros. O atendente fez piada com uma senhora gorda que recolhia de uma gôndola o maior número de chocolates e salgadinhos que conseguia segurar. Eu gravei bem as palavras. Ele disse: "Hum, tem cada louco, hein?" Eu não retruquei. Paguei a conta e saí. Quando voltei para o carro eu tive uma surpresa um pouco assustadora. Aliás, muito assustadora. Pendurado no espelho retrovisor do parabrisas, sujo de barro, balançava o pingente de lua que eu dei para Amélia. E com o qual a enterrei três dias atrás. Eu saí do carro e dei a volta por trás dele. Pulei para ver se enxergava alguém por cima do muro baixo que dividia o pátio do estacionamento do outro terreno. Corri, gritei: "Quem está aí? Que brincadeira é essa?" E por fim, quando percebi que chamara a atenção de umas três pessoas que por alí passavam, eu entrei no carro e fiquei encarando aquele souvenir tenebroso dos infernos.

Mas eu a matei, naquela noite. Eu sei. Suas mãos e sua testa estavam frias. E aquela rigidez pétrea que fere cada ser vivo, como se nada fora antes se não a coisa mais abjeta e sem valor, possuiu ela, toda a extensão do seu corpinho. Se está morta, devo acreditar que seu espírito voltou para ter a sua vingança e se for isso ela não encontrará resistência. Eu mesmo tiraria a minha vida, tomado de remorso como estou, se não fosse tão covarde para isso. Embora eu diga que sim e até já tenha tentado.

O sol tá quente. Eu suo em bicas e o vapor do asfalto está confundindo a minha visão. Terei que parar. Já percorri 200km, é uma boa distância, embora eu saiba que não deva parar até atravessar a ponte. As pessoas não entendem porque eu a matei. Quem entenderia? Foi um assassinato brutal. Não tem justificativa para o que eu fiz. Nenhuma. Amélia. A minha Amelinha. Doce, com aqueles olhinhos amendoados e sonhadores. O sorriso mais espontâneo que de uma criança feliz brincando. Vocês acreditam que uma criatura assim fosse capaz de trair? E pior, de me trair com o meu melhor amigo? Mancomunar com ele a minha morte e depois, de posse do meu dinheiro e dos meus bens, fugirem do país para serem "felizes" juntos? Como pode alguém que você ama e cuida, como uma flor, que precisa ser regada e da luz do sol, propiciando tudo o que a faça feliz, seja capaz de não retribuir? Seja ingrata e não te ame igual? Tudo é passado agora e eu preciso fugir. Correr e me esconder é só o que posso fazer. Nunca mais terei paz na vida.

Encontrei um barraco precário numa localidade rural. Na verdade eram paus porcamente fincados no solo, sobre os quais uma lona se mantinha, torta e quase caindo. Estudei cuidadosamente o local procurando sinais de que alguém habitasse ali, mas não encontrei ninguém. Abri o portão baixo de ferro, bastante enferrujado e coloquei o carro lá dentro, para escondê-lo. Atravessei a rua e pulei a cerca que protegia a propriedade. Era um campo para criação de gado. Mas só vi um boi magro deitado sob a sombra de uma árvore. Subi a alongada e cansativa elevação do terreno e ouvi os sons das águas calmas de um riacho lá embaixo.

Àquela altura e perante os acontecimentos, parecia loucura o que eu estava fazendo. Correndo o risco de ter um fazendeiro bronco com uma espingarda apontando pra minha cara e chamando a polícia, me denunciando por invasão. Mas eu mesmo, na hora, não parecia ciente de coisa alguma. Sei que parece estranho, mas era assim que eu agia naquele momento. O rio parecia uma extensão dos meus braços ou das minhas pernas. Quanto mais eu me aproximava dele, mais energia eu sentia percorrendo o meu corpo. Energia viva, orgânica, como aquelas águas soluçantes. Eu cresci em um lugar como aquele. Era o fluxo dos acontecimentos me levando para o passado mais uma vez. A gente correndo pela grama. Subindo nas árvores, andando de bicicleta. O rio trouxe tudo e as suas águas cristalinas e hipnotizantes eram como uma máquina do tempo.

–Tá de passagem, moço? Ou veio atrás de pobrema. Aqui é popriedade paticulá, sabia, não?

Eu olhava para o outro lado, na direção do rio. Fui pego de calças curtas como diziam lá em Botuverá. O sujeito era franzino, torto. Colocava o peso do corpo em uma das pernas, quando cansava, trocava de perna. Me olhava de baixo, como alguém da estatura dele olharia e mascava fumo.

–Sim, de passagem. De passagem! Eu só queria ver o rio. Desculpa invadir. Eu não pretendia. Não quero problemas. Estou indo embora.

–Péra, moço. Não tã dipressa. Entende de motô?

–Motor? Sim, eu entendo sim. Eu já trabalhaei em oficina.

–Entã vai me ajudá com uma coisa e nós vai ficá quites.

Fiquei aliviado de o sujeito não ter uma arma ou ter me colocado pra correr dalí. Dei uma olhada no trator velho que ele tinha no rancho. Disse que precisaria de umas peças. Ele me mostrou uma pequena oficina enjambrada, onde tinha algumas peças, mas nada que eu pudesse usar. Consegui o que procurava com um vizinho, que tinha um motor velho e consertei o veículo. Depois do serviço feito, o homem me ofereceu um café. Não vi mais ninguém na casa. Mas ele me disse que morava com a esposa, mas que ela tinha ido até a cidade para vender o mel que eles produziam na propriedade. O homem falava excessivamente e quando eu ia falar, ele interrompia e desferia mais uma fiada de blah, blah, blahs.

Saí tarde dalí. Tive medo do dono do barracão voltar e ver o meu carro. Eu teria mais problemas. Mas ninguém apareceu. O lugar devia ser mesmo abandonado. Eu não queria viajar à noite. Além do mais, iria parar em breve, para descansar. O entardecer vinha gelado e os vidros do carro estavam totalmente embaçados. Ao erguer a cabeça, depois de dar a partida. Por que não percebi logo que entrei, li uma inscrição no vidro do parabrisas.

"Meu amor. Como você me mandou pra cá primeiro, vim te buscar para ficar comigo"

Agora o medo era real. Tão verdadeiro quanto uma fera no cangote soltando lufadas de ar quente na respiração. Percebi que poderia estar enlouquecendo. Quem sabe eu pudesse ficar ali mesmo ao invés de pegar a estrada. Doente como eu estava.

Peguei a lanterna no porta luvas e saí para investigar o local. Tinha uma casinha, que eu não notei antes, nos fundos. De madeira, mal feita, cheia de buracos e frestas. Entrei. Tinha um fogãozinho, um armário, um sofá e um cobertor velho. Eu ia ficar. Decidi.

No meio da noite eu acordei no pulo. Eu sufocava. Alguém apertava a minha garganta por trás. Eu não conseguia enxergar nada. Não tinha luz ali. Lutei com quem quer que fosse com todas as forças que eu tinha até conseguir me livrar do meu agressor. Ele pegou alguma coisa. Eu desviei, não sei como. O golpe fracassado transformou-se em arremesso e o vaso, copo ou o que fosse o objeto, espatifou-se na parede. Eu me joguei, por sobre o sofá, sem orientação, só a coragem. Lutávamos. Eu sobre ele. Lembrei que eu podia usar a chave do carro para ferí-lo. Enfiava o instrumento em partes do seu corpo. Braço, barriga, perna, eu deduzia. Tentei correr, mas o meu inimigo oculto puxou minha perna. Eu o chutei com a outra e corri para o carro. Mas a chave não estava comigo. Deixei cravada no corpo dele. Não arriscaria voltar. Corri pra estrada. Um carro passava. Acenei, gritei, pulei na frente. Mas quase fui atropelado. Não pararam pra me socorrer.

O gladiador que tão ardentemente lutou comigo lá dentro, agora me encarava. Era o Garcia, meu melhor amigo. Tomava fôlego. A luz fraca do poste era suficiente para revelar suas feridas, seu rosto cansado.

–Ela nunca te quis, a Amélia. Foi sempre eu. Sempre. Mesmo quando ela me esnobava, ela me queria. Você nunca entendeu, Fortunato. Éramos nós três. Porque não poderia ser? Você a queria toda só pra você. Sempre o certinho, o caipira.

–Do que você tá falando? A Amélia odiava você. Ridicularizava você sempre que tinha chance. Você era a nossa piada. Um coitado. Fracassado.

–Mas foi com o fracassado que ela decidiu fugir no final das contas. Não foi?

–Você, você a violou. A desenterrou. Fez isso tudo para me atingir, me assustar. Você é doente.

–Do que você está falando?

–Eu tô falando disso, –Gritei e mostrei o pingente para ele. Depois disso a luz do poste se apagou e…

CEIFADOR
Enviado por CEIFADOR em 29/07/2021
Reeditado em 21/11/2021
Código do texto: T7310178
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