Benzedeira
“Há uma ferrugem pior do que todas: chama-se ignorância”.
Textos Budistas
Lilian não sabia o motivo de crescer com culpa, sentindo-se deslocada e sozinha. Suas mãos em determinados momentos, esquentavam muito. Algumas pessoas sentiam formigamento, toda vez que por ela, eram tocadas. Era difícil compreender o escárnio vivido na infância, sendo chamada de esquisita e até mesmo, bruxa.
O problema teve início, quando ela resolveu devolver a vida para uma planta; recuperando a cor e a beleza, anteriormente perdidas. Todos os alunos ficaram maravilhados e com medo, vibrando em uníssono espanto. Toda vez que fazia algo do tipo, sentia-se um pouco fraca.
Houve outro episódio no qual Jacó — um amigo de classe — estava passando muito mal, por ter comido um lanche estragado. Bastou que Lilian lhe tocasse a barriga à altura do estômago, para que a sensação angustiante fosse completamente desfeita. Jacó viu a menina desmaiar e no mesmo instante a ajudou também.
Tornaram-se grandes amigos, depois disso. Inclusive, dizem que Jacó é completamente apaixonado por ela até hoje; que vivia a chamando de ‘anjo de cura’, por todos os cantos da escola.
Acontece que Juliana, que estudava na mesma instituição, sempre foi apaixonada por Jacó — O homem mais lindo da terra —, ela diz; e que só pode ser dela — gostava de acrescentar.
Jamais aceitou ver seu ‘amado’ se apaixonar por uma impostora que faz ‘truques de mágica’, de acordo com seu julgamento.
— Ainda há de chegar o dia em que vou desmascarar esta charlatã. — era o pensamento de Juliana, tomada pelo ódio que a consumia.
Por outro lado, Jacó não gostava nada dela; “mulher fútil e sem fé”, ele sempre pensou. Não gostava das investidas, tão pouco, das atitudes direcionadas àquela que havia o tratado com tanto amor e carinho na época do colegial.
— Lave tua boca com sabão, antes de falar de Lilian! Não sabes nada a respeito dela! Cala-te e evite pronunciar tais calúnias! — Jacó proferia as palavras com enorme sentimento de nojo e raiva contra Juliana, que tomada pela paixão desmedida, poderia ser capaz de cometer alguma atrocidade.
— Crescemos estudando juntos — ele prosseguiu —, e até hoje tu não aceitas o fato de que eu não te amo. Para, por favor, de forçar algo que não vai acontecer.
Quanto mais as palavras de Jacó passeavam pela mente de Juliana, mais o ódio crescia!
— Vais me pagar, Jacó! Tua ingratidão ainda será o teu maior arrependimento. Irás te arrepender de ter jogado fora o meu amor.
— Amor que desejas empurrar-me goela abaixo? Estás delirando! Esquece de mim, por favor. É a última vez que vou te dizer isso: Esquece de mim!
Tais palavras foram como uma sentença de morte para Juliana. O ódio de Jacó vinha exatamente do fato, de sua amada não ter feito mal nenhum a ela. Na verdade, Lilian, nem mesmo era apaixonada por ele.
Juliana, então, começou a criar planos para acabar, de alguma forma, com Lilian; no entanto, mal sabia ela que o preço seria muito alto. Os sentimentos que nutria, bem como os pensamentos, foram sugando sua energia e saúde, pouco a pouco, e sem que percebesse, estava a cada dia, mais e mais debilitada.
Tomada pela raiva, emagrecia cada vez mais, e as pessoas de seu convívio passaram a notar isso. Ela havia planejado, até mesmo, atentar contra a vida de Lilian. A loucura e o desespero estavam consumindo o pouco de razão que possuía.
— Nem ele e nem você, sua maldita! Os dois vão ser destruídos! — gritava Juliana, em seus momentos de maior histeria.
O tempo passou e enquanto Juliana respirava morte, Lilian era o canal do mistério da vida. Prosseguia fazendo seus pequenos milagres e cada vez mais reclusa, por medo de rejeição, buscava viver de forma simples e leve.
Ela sabia que tinha um dom, porém não o tinha desenvolvido de maneira a usar da melhor forma. Uma senhora, entendida dos assuntos de reza e rituais de cura, apresentou-lhe algumas formas de transformar a sua pedra bruta, em jóia lapidada da mais pura beleza.
Assim que aprimorou seus dons e os resultados passaram a mostrar algum efeito no povoado onde morava, em Terra Boa no Paraná, uma pessoa que andava tomada pelo ódio, ficou sabendo. Inclusive do nome pelo qual estavam a chamando: benzedeira. Ora, ora, se isso ficaria assim. Não havia momento de paz para ela, e isso era missão de sua maior rival na vida e no amor.
O bem que praticava, levava acalento e amor para aqueles corações feridos e maltratados; no entanto, um coração precisava mais do que todos, porém este não seria possível curar. Este coração sangrava por ter sido deixado de lado, justamente, pela pessoa que deveria amá-lo; ao menos, era assim que a dona dele desejava que fosse. Contudo, estava completamente enganada e afundava cada vez mais em desespero e ódio.
O rancor consumia o seu estado mental e emocional, de forma que, pavorosamente, se tornava cada dia mais perceptível a fraqueza e feiúra, externadas.
Um dos momentos mais dolorosos para Lilian foi quando Juliana se aproveitou de um episódio da morte de uma criança, a qual Lilian tentara ajudar, acusando-a de má fé. Dissera que o menino teve seu tratamento interrompido, por conta das promessas fajutas de tratamento espiritual.
Todos os ataques e acusações eram meios que Juliana utilizava, para tentar desmoralizar e destruir sua ‘inimiga’ de escola no amor. Por mais que estivesse pagando caro por isso, seu objetivo era se sentir superior, ainda que a loucura e a solidão fossem seus destinos óbvios, ela estava cega e sem controle.
Acontece que o tempo foi passando e o preço ficou cada vez mais caro. Ela passou a enfrentar uma doença que médico nenhum conseguia diagnosticar. O corpo de Juliana passou a emagrecer de forma espantosa. O ódio a consumia em pensamentos e pesadelos, porém nada ela fazia para mudar a situação.
Um ano e meio se passou e o resultado, previsível, por fim ocorreu. Foi internada, passando os últimos seis meses em um leito, respirando com o auxílio de aparelhos e cada vez mais debilitada. Já era possível notar, até mesmo, os ossos mais profundos, que apenas são passiveis de observação nas aulas de anatomia humana. Seu estado era cadavérico e deplorável.
Por fim, Lilian encontrava-se distante de tudo e de todos que a lembrasse das humilhações que havia passado. Afastara-se, inclusive, de Jacó; que nunca foi capaz de perdoar os atos de Juliana.
O fim estava próximo para a mulher carregada de rancor e ódio; com esse jeito, havia afastado muitos dos próprios amigos. Havia perdido tudo em nome de um amor impossível e talvez, por pura falta de amor próprio e loucura.
Por ironia do destino, ocorreu um fato que abalou a muitos; principalmente Jacó. Lilian havia morrido na madrugada anterior, retornando de um local desconhecido, para casa.
Ele não entendia e tão pouco podia aceitar a idéia que a mulher de sua vida e amor de infância, partira para sempre. O desespero misturava-se a tamanha confusão de não compreender como uma mulher tão linda, em todos os sentidos, morrera de forma tão estranha e repentina.
Difíceis foram os dias para Jacó, após o ocorrido. Ele perdeu todo o sentido e parecia que, no fundo de sua alma, ainda havia esperança de partilhar uma vida com a mulher que crescera amando em silêncio.
Pouco tempo depois, descobriu que Juliana havia se recuperado. Foi avisado por uma amiga, de que ela o procurava e desejava conversar.
— Jamais! Jamais irei conversar com aquela maldita mulher! — gritou com raiva, enquanto lágrimas rolavam. — Por mim, ela teria ido no lugar de Lilian! Foi ela a culpada de tudo isso! Foi ela quem matou o meu amor!
Longo foi o tempo de silêncio e o vazio na existência do pobre homem.
Quatro anos se passaram, até que uma carta chegou às mãos de Jacó. Ao começar a leitura, não pode conter tamanha emoção e as lágrimas, que rolavam em seu rosto. Era uma mensagem de Lilian.
— Quem pode ter me enviado tal mensagem, uma vez que o meu amor se foi há mais de quatro anos? — Questionava-se.
Na carta, algo que ele jamais poderia imaginar, se fez ver, palavra por palavra; Lilian explicou sua missão nesta existência. Foi difícil compreender a princípio, porém ele se esforçou não em julgar, mas compreender. Afinal de contas era sua amada falando, além da vida:
“Jacó, hoje eu vivo o dia mais importante de minha vida. Salvar a vida de uma pessoa, que me prejudicou muito, mas que por mim também foi imensamente prejudicada em vidas passadas. Hoje vou me encontrar com Juliana e irei retirar dela, todo o mal que a acometeu por pura ignorância e imaturidade. Não sei o que ocorrerá após isso, mas terei feito o que nasci para realizar. Terei salvado com amor a vida daquela que mais me odiou nesta existência; o amor venceu e permita que ele vença em sua vida também”.
Olhando para a janela da sala e fitando o céu azul e limpo, ele chorou feito uma criança. O amor por Lilian ainda estava vivo e era forte e puro, tal qual a carta que acabara de ler.
— Ela deu a vida para salvar Juliana. — Concluiu. — Ela sabia que enfraquecia toda vez que curava algo. Ela sabia dos riscos e mesmo assim, salvou-a.
Na carta, Lilian também falou a respeito do amor que ele sentia por ela e pediu perdão por nunca poder retribuir. Ela havia feito uma escolha, e com isso cumpriu a missão, mesmo pagando o preço mais caro.
Naquele instante, Jacó pegou o telefone e ligou para Juliana, tomado por turbulenta emoção. Mesmo sem ter certeza do que estava fazendo, precisava acabar com as nuvens negras em seu peito.
Do outro lado, Juliana atendeu e ficou em silêncio ao ouvir a voz embargada, dele.
— O que você fez à Lilian? Me explica!
— Preciso realmente te dizer o que Lilian fez por mim, mesmo sem eu merecer. — Disse Juliana. — Você vai entender como o amor mais puro e verdadeiro mudou meu ser e desfez o ódio, que quase me matou;
Você tem toda razão de ter sido apaixonado por ela; e ainda ser. Lilian era o amor da forma mais genuína e sincera, e hoje, ela habita em meu peito também.
A dor do homem era dilacerante; apesar de compreender o feito de sua amada, jamais entenderia o que era uma vida sem ela. Desligou o telefone e tudo o que se ouviu então, foi o silêncio.
Bastava para ele, aceitar; mesmo sabendo que era um simples mortal; mesmo sabendo que os mortais não conseguem tais feitos, facilmente. Desejou, por um momento, ter a compreensão e o coração de Lilian; a maturidade e o entendimento, além de qualquer desejo e ilusão. Contudo, era ele; um simples mortal, sem o amor de sua vida.