O por quê de tudo?
As filhas eram três. O grande orgulho do pai que sempre fora zeloso e preocupado com a educação e bem estar das suas meninas. Quando questionado sobre o porquê de não ter tentado um filho homem ele sempre respondia: “Não trabalho para homens!”.
João Inácio era seu nome. De origem humilde trabalhou desde cedo e, lá pelos 20 anos já tinha a sua própria caminhonete e viajava como caixeiro-viajante para uma grande indústria de tecidos da capital. O casamento nunca foi dos melhores. Casou-se com Nívia, filha de pais abastados que, após as núpcias, nunca entendeu direito o jeito meio sovina como João Inácio levava a vida e também não costumava acompanhá-lo nas festas onde ele encontrava os seus amigos. Era nelas que ele se sentia verdadeiramente na sua essência.
João Inácio perdeu o seu pai muito cedo, passou muito trabalho e sonhava em constituir uma família de revista mas, infelizmente, ela envolveu-se em muitos problemas, parecendo muito mais um folhetim. Mas ele e Nívia seguiram a vida juntos criando suas Marias (as três tinham o Maria no seu nome composto), até que João Inácio teve, de súbito, um derrame e foi-lhe dado no máximo seis meses de vida.
Nívia, desesperada, largou a casa e as Marias e foi acompanhá-lo no tratamento. No hospital ficaram quarenta dias. João Inácio retornou para casa praticamente paralítico. E dessa situação as melhoras foram mínimas e ele viveu por quatro anos e meio graças ao cuidado da esposa e ao tratamento médico que foi dos melhores, todo ele pago com a herança que Nívia recebera quando da morte do pai. Na época não se falava em assistência médica.
Não foi tarefa fácil para ela, mulher que até então nunca tinha passado por nada tão delicado. Teve que transformar-se em fortaleza para segurar a barra do marido e, ainda, acompanhar, mesmo de longe, as filhas.
João Inácio acabou morrendo em um sábado de aleluia, em casa, cercado pela família, especialmente as irmãs e cunhados por parte da esposa, já que neles ele sempre se assentou como um pássaro em seu ninho. Tinha muito mais afinidade com a família da esposa do que com a sua própria família. Nívia, aliviada e sem dormir por uma boa quantidade de dias pode, finalmente, descansar um pouco. O sábado de aleluia combinou com a triste situação em que ela se encontrava.
Nessa época a Maria mais nova tinha doze anos, a do meio dezenove e a mais velha vinte.
A Maria do meio já namorava o seu primeiro homem e, no mesmo ano, deciciu casar-se, sem estrutura alguma, mesmo a contragosto da mãe e dos familiares. Deu o seu grito de libertação e foi viver a vida do marido, atrás da casa da sogra. A Maria mais velha continuou a sua vida na capital e a mais nova passou a ser o centro de todas as atenções.
E a vida seguiu, e todas seguiram os seus desejos sem que a mãe as impedisse em coisa alguma. Das Marias mais novas vieram três netos para Lívia. Ela, que sempre fora uma super mãe, passou a ser uma super vó, mais parecendo uma galinha rodeada por seus pintinhos.
Em meio à trajetória comum da vida dessas mulheres, a Maria do meio foi diagnosticada com câncer, já em estágio avançado. Nenhuma surpresa para quem com ela convivia e percebia o quanto não andava bem nos últimos tempos. A família desmoronou e a Maria mais velha resolveu largar tudo na capital, onde trabalhava há muitos anos, para ficar com Nívia. Sabia que a mãe não aguentaria o tanto de inverdades que para ela seriam passadas. Era parecida demais com o pai para aceitar fuga de verdades e mesmo qualquer contrasenso que colocasse a família em perigo. Sempre foi diferente e um tanto rejeitada pelas irmãs. Era como se ela oferecesse perigo, como se vivesse uma vida arriscada demais, uma espécie de bicho grilo, uma pessoa que falava demais e não entendia as mazelas que a vida ofertava todos os dias e que deixava as irmãs tão insatisfeitas e mal resolvidas. Na verdade ela nunca teve tempo sequer para traduzir a palavra “mazela”, pois sempre esteve envolta por muito trabalho, muitas vezes para cobrir as carências da família como um todo.
E a doença da irmã destruiu o pouco que ainda havia de afetividade entre as duas. Poucas foram as vezes que a Maria mais velha pode ver a irmã. A tradução literal da “insanidade”, do brotar de ódio no que precisava ser entendido com amor, uma vez que a morte é certa para todos.
Em quatro meses a Maria do meio veio a óbito e a família literalmente desestruturou.
Maria mais velha, simpatizante da doutrina espírita, buscou entender o significado da morte da irmã e o certo ódio com que foi tratada por longos anos, especialmente no período da doença. Até os seus sobrinhos foram dela afastados.
Certa noite a Maria do meio apareceu para ela em um sonho, tão nítido que, mesmo após nove anos, ela pode descrevê-lo em detalhes: Era dia lindo, céu azul e, de uma ladeira de pedras, descia Maria do meio dirigindo um carro antigo, do tipo rabo de peixe, na cor rosa. Na cabeça um lenço amarrado ao pescoço e óculos escuros. Ao vê-la tão linda e cheia de graça, Maria mais velha, imóvel próxima ao local, sentiu que seu corpo estava sendo puxado levemente para baixo. Ela sentiu literalmente que estava entrando no meio das pedras da rua e subitamente acordou.
Por inúmeras vezes tentou entender o sonho, tirando alguns significados: Maria do meio era linda, com a doença havia perdido o cabelo e nunca dirigira. No sonho aparecia de lenço na cabeça, dirigindo um enorme carro. Ao olhar para a irmã o sentimento de Maria mais velha foi o de sempre: não seria possível uma aproximação amorosa. O ideal seria mesmo que ela sumisse para dar lugar à Maria do meio com vida.Triste interpretação.
14/06/2021