O Segredo de Maximus

“Nem tudo o que parece é”. Às vezes, nossa imaginação nos leva a ver coisas que não existem. O medo faz isso, somos envoltos por ele e sem perceber ficamos à mercê, perdidos na impossibilidade de sermos livres. Essa máxima, porém, não se aplicava à pacata cidade de Esperança, o medo parecia não existir ali. Crianças brincavam até altas horas, mulheres andavam sozinhas pelas ruas sem medo de serem estupradas e roubadas. Era o lugar perfeito para se viver. Homicídio? Há muito tempo ninguém ouviu sequer falar nesta palavra.

A cidade era pequena, todo mundo conhecia todo mundo, com isso, havia um ar de parentesco entre os conterrâneos. Nada de especial, radical ou sinistro acontecia em Esperança. Até a última casa da rua, a casa da senhora D’Arc, tida por nós como bruxa, na verdade era uma senhora bem amável e nós, adolescentes imaginávamos que aquela casa tinha uma penumbra sombria, algo sinistro. Entretanto, nada de ruim realmente acontecia. Tudo era fruto de nossa fértil imaginação.

Até que um dia, o improvável aconteceu. Um carro de som anunciou a chegada do Circo Maximus. “Um espetáculo de outro mundo”. Todos ficamos boquiabertos com a magnitude do circo. Carros, caminhões e ônibus chegavam sem parar e a nossa pacata cidade ficou irreconhecível, um vai e vem desenfreado de pessoas deixou as ruas lotadas. O prefeito adorou a novidade, “é um momento único em nossa cidade” repetiu o bom homem no evento de Boas- Vindas. Os moradores não falavam em outra coisa que não fosse o circo, as pessoas, os animais...

Na escola, os professores estavam eufóricos, ansiavam o espetáculo de abertura com muita veemência, diziam ser uma experiência única. Todos pareciam estar enfeitiçados. Era como se o Circo Maximus fosse um grande ímã e os moradores fossem sugados para ele, sem escapatória. Os circenses eram convidados para almoços, alguns moradores disponibilizaram as próprias casas como gesto de acolhimento aos visitantes. Aos poucos tivemos a leve impressão de que o circo Maximus era uma extensão da própria cidade. As moças suspiravam pelos rapazes do circo, até as próprias mães ficavam desconcertadas quando eles passavam. Os maridos agiam da mesma forma.

Criou-se em toda a cidade uma aura de ansiedade pela abertura do picadeiro. Meus amigos e eu agimos diferente. Embora estivéssemos ansiosos para assistir à apresentação, sabíamos que algo incomum pairava sobre aquele enorme circo. Como os adultos não percebiam isso? Ficamos nos indagando. O que acontecia quando as luzes se apagavam? Por que escolheram uma cidade tão pequena para ficar? Por que nunca ouvimos falar no circo Maximus? Essas eram as perguntas que pairavam sobre o meu grupo.

Ana, Gabi, Tom, e eu sentíamos algo estranho percorrer nossas espinhas quando passávamos por perto do circo que ainda não estava totalmente pronto. Em nossas casas, nossos pais e irmãos estavam anestesiados pela espera do show. Minha irmã, Silva suspirava pelo trapezista, o garoto loiro de cabelos compridos. Eu disse ao meu pai que o rapaz olhava para Silva com um olhar penetrante e inquietante como se fosse devorá-la, meu pai apenas disse que eram os hormônios, tudo era culpa dos hormônios. Bom, no meu íntimo, eu sabia que algo não cheirava bem e não eram os hormônios.

Meus amigos e eu cogitamos não ir. Iriamos apenas ficar à espreita. E como em um passe de mágica chegou o grande dia. A cidade estava em festa como nunca esteve antes. “isso é bom para os negócios” diziam os comerciantes. A real é que a chegada do circo fez bem a Esperança, bem até a abertura do picadeiro. Idosos, crianças e adultos, todos foram para a grande noite, com exceção de nós quatro.

-Teste! Testando um, dois, três... Som ok! – Ouvimos de longe e sob a luz da lua, esse som para nós quatro representou o perigo. Às 8h em ponto, o picadeiro deu à luz, o Circo Maximus estava em sua composição máxima. Toda Esperança estava sentada na gigantesca arquibancada. Nós quatro não entramos. Algo nos inquietava ao ponto de nos deixar desconfortáveis, os outros, pelo contrário, estavam muito animados. Nós ficamos de longe observando e vimos o pior.

Percebemos que ao comprar comida, fosse ela doce ou salgada, os Esperancenses agiam estranhos. Deduzimos que alguma coisa estava realmente errada. A Silva comprou uma maçã do amor e na primeira mordida ficou áerea, grogue. O trapezista a tomou pelo braço e a levou para dentro. Esta foi a última vez que vi minha irmã. Foi uma apresentação movimentada. Os gritos, palmas e risos eram ouvidos de longe. O espetáculo durou 2h e finalmente os Esperancenses, aos poucos saiam para suas casas.

Ficamos à espreita e percebemos que 7 pessoas não retornaram, uma delas era a Silva. Fiquei desesperado. Meus pais não se importaram, nem perceberam que tinham outra filha. Ninguém se importou. Procuramos a polícia, o prefeito e nada. Ninguém se deu conta do que algo errado acontecia ali, no picadeiro do Maximus. A cada nova apresentação, mais pessoas sumiam. E as pessoas que sumiam, simplesmente não eram notadas pelos familiares. Lavagem cerebral? Não sei ao certo.

Sem perspectiva de sucesso, decidimos ir, mas nada compramos, não ingerimos alimento algum do circo. Para o meu espanto, para o meu terrível espanto, deparei-me com a Silva vestida com muita purpurina fazendo malabares. Silva era desastrada e tinha medo de altura, mas naquele momento estava andando na corda bamba e fazendo trapézio. Aos poucos vimos que os que sumiram na verdade faziam parte do circo. Os palhaços que alegravam a noite eram os irmãos Rodolfo que tinham sumido na noite anterior. Os animais do circo, não eram animais e sim pessoas. Pessoas que sumiram antes, assim deduzimos.

Um pavor sobre-humano se acentuou em meu corpo e me vi preso no medo que me enclausurou. Ao meu lado, as pessoas estavam impactadas, bestificadas com os palhaços, com as apresentações do magnífico circo. E eu? e nós quatro? Exalávamos o pavor colossal. Aos poucos, os números da noite foram apresentados e todos que ali se apresentavam chamavam nosso seleto grupo para participar, temendo o pior, negamos a todo custo. Mas não sei dizer como isso aconteceu...

Acordei amarrado, tudo era escuridão, som algum foi ouvido, apenas o terrível som da minha própria respiração. Tentei tatear, levantar e correr, mas meu corpo estava impossibilitado, assim como meus amigos. Ouvi de relance um assobio dos infernos que fez meu corpo inteiro arrepiar. Senti o fim: Nós nos tornaríamos uma extensão do Circo Maximus.

As luzes se acenderam e nós quatro não éramos mais pessoas e sim animais exóticos, meu corpo estava repleto de pelos. Não era mais humano. Ao fazer uma varredura no corpo que não era meu, me dei conta de que era um felino. As pessoas maravilhadas olhavam-me como se eu fosse um troféu. Ao longe avistei minha mãe sendo levada por um palhaço, naquele tenebroso momento de confusão me dei conta de que todos ali não teriam escapatória. Todos estavam condenados.

As luzes se apagaram mais uma vez, e o silêncio tomou conta do ambiente. Havia muitos animais, animais não, pessoas transformadas. E todos estavam em silêncio. A apresentação da noite havia chegado ao fim. Eu tentei falar, juro que tentei, mas não saia fonema de minha boca. E em meu novo corpo, a fala não era uma ação a ser produzida. Os dias se passaram e eu apenas me dava conta das vezes que as luzes eram acesas, na última apresentação decorei a saída. Resolvi fugir e levar comigo o máximo de animais/pessoas que eu pudesse.

No fim das contas, consegui salvar apenas meus três amigos. Nossos familiares, amigos e conhecidos ficaram para trás. Tornaram-se o próprio circo. Lembro-me fielmente da sensação de liberdade, estávamos enclausurados e por puro milagre conseguimos nos libertar. Quando saímos do circo, éramos animais correndo desesperados pela vida, mas quando atingimos uma distância considerável voltamos ao nosso corpo. Um grupo de polícias nos encontrou desacordados no meio da rodovia. Estávamos desidratados, nossos corpos e mentes debilitados. O pior de tudo é que jamais esquecemos o pavor sentido no picadeiro do Circo Maximus.

Até hoje me pergunto como apenas nós percebemos. Como só nós escapamos para contar a história, uma história desacreditada por aqueles que a ouviram. Até hoje somos taxados de loucos. Nossa pacata Esperança nunca existiu, disse o policial que nos encontrou. Ele afirmou que nós sofremos um surto coletivo e que o circo Maximus não existe, assim como Esperança, tudo foi fruto da nossa imaginação.

Pego-me pensando, meu neto, nos seus avós e em como eles foram apagados da história, realmente é como se todos os habitantes de Esperança tivessem sido deletados, dizimados e restou apenas nós quatro: Os sobreviventes. Hoje, já cansado, guardo na lembrança e na alma o segredo do Circo Maximus e todo o sofrimento que esse segredo nos trouxe. E se porventura, meu querido e amado Denis, você ouvir falar no Circo Maximus, fuja e não olhe para trás.

Daniele Pereira
Enviado por Daniele Pereira em 18/05/2021
Código do texto: T7258344
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