A CAVERNA (o caso da sessão de hipnose)
Ed Ronaldo não estava num bom dia. Quando acordava sem sua habitual fome de leão e não corria a devorar a enorme porção matinal de farinha láctea, algo só poderia estar errado.
Nem sequer chegou a praticar a sessão matinal de alongamentos aprendida no YouTube: “Como aquecer seus músculos e ativar seu privilegiado cérebro”, em 6 aulas de 15 min. Ao contrário, sentia-se desmotivado, estado de espírito habitual quando passava mais de 2 semanas sem um bom caso a estimular seu instinto detetivesco.
Virou-se preguiçosamente e conferiu seu iPhone 12, presente de sua amada Diana Helena, a biomédica de BH, a qual comiserou-se com a situação de penúria de nosso protagonista:
— Diana, não posso continuar com este Samsung A7 2017. A plenitude de minhas capacidades cognitivas exige um equipamento de apoio condizente.
— Mas Ed, não posso sempre financiar seus gastos. Você precisa de um emprego, pois não quer mais estudar. Assim não...
— Já lhe disse Diana! A escola tradicional nada mais tem a me ensinar. Vocês humanos comuns não percebem, mas a vida está acima dessas frivolidades.
— Ok Ed. Mas nossa última conversa está de pé! Ou procura um psicólogo ou nosso amor não tem futuro!
Uma semana havia se passado desde o último encontro de Ed Ronaldo com Diana, quando a ruivinha, numa folga de seus plantões, veio visitar seu excêntrico namorado em Pedra do Monte, município da grande BH.
O IPhone 12 tilintou e Ed Ronaldo se exasperou — 09h27min — mensagem de Diana: Dra. Bertinelli, 15h10min; NÃO SE ATRASE!
O cãozinho Fox Terrier Bilau, vizinho de nosso detetive ocioso apareceu correndo e latindo. Conhecia o som do smartfone e sempre descia a rua íngreme até a praça central, acompanhando seu amigo até o ônibus para BH. Mas desta vez Ed estava soturno.
— “Estas questões sentimentais estão afetando minha soberba capacidade dedutiva...” — pensou já no ônibus, ao retirar de sua inseparável mochila Wilson a reluzente Graphic Novel do mês; pelo menos teria 1h e 50 min para a leitura voraz, até chegar à capital.
////
— Senhor Ederson Ronaldo, 23 anos, ensino fundamental incompleto, solteiro, reside em casa dos pais, curso de detetive particular pelo YouTube... hummmm — vejo aqui sua ficha. Como poderia ajudá-lo?
— Dra. Bertinelli, na verdade estou aqui para ajudar minha namorada, coitada... sempre tão insegura!
— Bem, seu questionário sobre interesses valoriza muito as mentes investigativas, estou vendo aqui.
— Pois é doutora, algumas pessoas nascem com habilidades especiais.
— O que parece ser o seu caso, certo?
— Bom, devemos ser honestos. Não posso negar minhas aptidões.
— E você acha... estas... hã... habilidades... interferem no seu relacionamento afetivo?
— Para ser franco, Diana me aborrece com sua falta de visão de mundo. Sempre pensando em trabalho, renda, futuro. Não tenho tempo para essas miudezas.
— Como o Sr. gasta seu tempo, Sr. Ederson?
— Doutora, não se ofenda. Mas como me é de praxe, pesquisei longamente sobre seu trabalho com hipnose. Foi o motivo maior de estar aqui. Concedi até mesmo a Diana a oportunidade de pagar a consulta, pois pretendo aprender um pouco mais sobre esta técnica e utilizá-la em minhas investigações.
— Então passemos à primeira sessão. Deixe sua mochila aí no criado ao lado. Olhe em direção ao relógio de pêndulo à frente de seu divã. Quando contar 48 movimentos completos à esquerda você adormecerá e nos levará aos recônditos de sua mente.
— Estou contando doutora, mas sinto dizer: vai precisar de muito mais até interromper a convulsiva... atividade... de... minhas... cél... células... cin... cinzentas...
////
— Doutora Bertinelli, aqui está frio! Poderia desligar o ar condicionado... mas, o quê?
Ed sentiu o corpo umedecido e se viu deitado a um piso frio e pegajoso. Algo zunia perto de seus ouvidos.
— Que diabos! Onde estou?
— 15h38min. Meu relógio espião russo nunca falha — Ed sempre recorria ao seu velho amigo de aventuras, em momentos de incerteza.
— Meu iPhone 12... sumiu!
Olhou em volta e divisou enormes estruturas pontiagudas pendendo do teto elevado do lugar. Filetes de água desciam pelas imediações ao seu redor. A semiescuridão era sufocante. Ed Ronaldo demonstrava sinais de inquietude: — uma caverna... “seres alados sibilam e aspiram o ar viciado” —, observou o atento detetive amador.
Pensou em sentir medo, mas logo se lembrou das técnicas de controle de pânico aprendidas no YouTube. Acalmou-se. Tateou seu bolso esquerdo e lá estava sua lanterna Led alemã Lenser, com bateria para até 18 h. Levantou-se e começou a explorar a caverna, totalmente seguro de seus passos, graças ao tênis antiderrapante Reebok Zig Kinetica que calçava, mais uma contribuição da piedosa Diana Helena.
— Meu gravador espião biônico Bird Watcher! Tenho aqui 18 h de gravação contínua; nada vai me escapar — aliviou-se ao palpar seu bolso direito.
Foi quando uma voz cavernosa se insinuou no que parecia ser um sistema de som Bose de alta potência — Ed possuía também conhecimentos estereofônicos, sempre autodidata, desde tenra idade.
— Ed. Ederson Ronaldo! Este é o seu nome correto, confere?
— Mas... quem fala? Juro já conhecer este tom de voz. Identifique-se!
— Não se lembra de mim Ed? Estou com você desde sua infância, dentro de seu baú de imbuia, no criado ao lado de sua cama, ou mesmo em sua mochila, nas viagens de ônibus.
— Bruce? Bruce Wayne?
— Bruce é apenas um disfarce Ed. Estou acima dele. Sou o propósito de uma vida...
— Ba... Bat... Batman? É mesmo você?
— A seu dispor.
Ed Ronaldo quase não acreditou ao apontar sua lanterna alemã para onde seus aguçados instintos indicavam. Uma grande sombra enegrecida, esvoaçante, contornava um indivíduo enorme, de postura incrivelmente altiva. Sua face, oculta por uma armadura negra encimada por apêndices pontiagudos, ostentava um par de brilhantes olhos afilados num tom madrepérola. Não fosse sua admirável capacidade adaptativa, nosso jovem investigador teria sofrido um colapso ansioso.
////
— Tá certo Batman... muito lhe admiro e reconheço sua influência sobre minha formação nas artes dedutivas... mas, sei que você não é real!
— Meu caro Ed Ronaldo, tenho acompanhado suas primeiras missões... seu talento é ímpar.
— Cruzado de Capa, isto tudo é fruto da hipnose efetivada pela Dra. Bertinelli...
— Me lembro bem desta jovem; tive alguns problemas com ela... mas hoje é uma aliada.
— Aaahh... agora entendo! Fui transportado para a sua Graphic Novel do mês: “O Filho do Demônio”; tá aqui na minha... uai! Cadê minha mochila?
— Bem Ed, não tenho muito tempo para divagações. Minha vida é uma dualidade insana. Não a recomendo para ninguém. Na verdade, preciso de sua ajuda.
— O Cavaleiro das Trevas precisando de ajuda? Compreendo o fato de minha contribuição ser inestimável a quem precisar... mas suas capacidades estão em outro patamar... obviamente ainda o alcançarei, porém...
— Não se subestime Ed. Este erro... pode custar sua vida!
— Ok, Cruzado Encapuzado. Modéstia à parte, reconheço ser capaz de ajudá-lo. Qual o seu problema?
— Estou tomado por um grande dilema. Como está descrito nesta história em seu poder, renunciei à minha vida afetiva, por ser incompatível com minha cruzada contra o crime...
Ed imediatamente se pôs a pensar em Diana Helena: “teria ele o mesmo fim?”
— Tenho dúvidas! O que você faria em meu lugar? Devo renunciar à promessa feita sobre os corpos assassinados de meus pais? Tenho direito à felicidade? Ou minha missão é maior?
— Quem está perguntando? É você Bruce? — Sua excepcional intuição percebeu a mudança para um tom de voz mais intimista.
— Como já disse, ele é fraco Ed! Já decidi por ele, mas insistiu em lhe trazer aqui — retrucou novamente a voz autoritária.
— Senhores, por favor, deixemos de lado as discussões — Ed sempre lia sobre múltiplas personalidades; era sabedor do fato de muitos mistérios se esconderem sob esses comportamentos.
— Me responda Ed. O que você faria? — Novamente a voz insegura...
O maior detetive do mundo tinha sua faceta de fragilidade afinal. E a revelara sem disfarces para o promissor aspirante a investigador do interior de Minas. Ed Ronaldo, extremamente hábil em analisar fatos aparentemente desconexos, pôs-se a exercer seu maior talento, o dedutivo:
— “Isto não é por acaso. Amo Diana e ela a mim. Mas temos vidas muito diferentes. Ela me cobra uma guinada radical, rumo a uma vida monótona e pasteurizada. Por outro lado, não posso desperdiçar meus talentos com situações banais do cotidiano. A Dra. Bertinelli me jogou numa encruzilhada... mas... como ela sabia? Como saio dessa?” — as pupilas dilatadas e o frenesi dos movimentos oculares involuntários denunciava o intenso escrutínio psíquico.
— Senhor Ed Ronaldo, não tenho o dia todo! — a voz cavernosa interrompeu o transe...
////
Ed Ronaldo sempre admirou quem colocava a inteligência em primeiro lugar. Cabeça acima da massa bruta. Para ele a verdadeira força residia no uso adequado das conexões neuronais, frequentemente deixadas de lado na profusão de coisas estúpidas com as quais as pessoas costumavam perder seu tempo no dia-a-dia.
Não lhe passava despercebido estar diante de uma das mentes mais brilhantes que já tivera conhecimento, quase a rivalizar com a sua própria. E por isso mesmo pesou bem suas palavras. Ainda que fictício, o binômio Batman / Bruce Wayne, com suas mais de oito décadas de atuação, sempre servira de inspiração e modelo de conduta para jovens espalhados por todos os cantos do globo. Sua responsabilidade era enorme.
— Escutem vocês dois: ainda sou jovem. Minha experiência vêm do conhecimento acumulado de farta leitura, arma tão esquecida pelas novas gerações. Tenho algo a dizer — Ed Ronaldo navegava bem pelos mares da Filosofia.
— Batman, seu comportamento é consequencialista, o que o faz acreditar na premissa de suas atitudes sempre resultarem nas melhores consequências para todos. Isto é o que te move: “o fim justifica os meios” — a imponente figura encapuzada se empertigou e assentiu com a cabeça.
— Bruce, sua angústia vem do fato de suas ideias estarem mais próximas das razões morais deontológicas; ou seja, se preocupa mais com o que está sendo feito ou com a maneira de o fazer — o homem de queixo quadrado o fitou, perplexo.
— Em resumo, vocês dois se digladiam, mas não percebem: um não existe sem o outro! Antes de agir, devemos sim pensar, de forma a que o resultado final seja o melhor possível, ou até mesmo venha a resultar no menor prejuízo tolerável, se não houver outra opção. A razão do sucesso de vocês dois, ao longo de mais de oitenta anos, se fundamenta nisso. Vocês ambos se completam. Não há razão para conflito. As teorias filosóficas não são excludentes, e sim complementares.
— Mas, mas... — as diferentes vozes se misturavam.
— Concluindo então: — Ed levantou o sobrolho direito, indicando insatisfação por ser interrompido — parem com essa história de definir o objetivo um do outro: vocês dois são um só! Depois criticam o Harvey, haja paciência... destino não se escolhe, se vivencia. Não cabe a vocês optarem pela vida amorosa ou pela vida de combate ao crime. “Somos o que podemos ser”. Não uma caricatura do que deveríamos ser. Se alguém tiver a missão de decidir, que seja em conjunto com o outro lado interessado; e sinto dizer: por aqui nesta história a contraparte feminina já se manifestou; e infelizmente, de forma negativa... sinto muito!
Um silêncio entrecortado pelo ruflar de asas dos mamíferos alados e pelos sons repousantes dos filetes aquosos perdurou por um minuto ou mais. Até que uma única voz potente e segura de si ecoou pelo sistema Bose:
— Obrigado Ed Ronaldo — a voz agora uníssona primava pela firmeza — tinha conhecimento de seu potencial, mas confesso estar estupefato. Não esperava tanto. Ficará na lembrança aqui em Gotham. Pode voltar ao seu mundo... em 48 movimentos... o pêndulo... iniciando agora...
////
— Sr. Ederson, pode acordar. Agora, no estalar de meus dedos!
— Onde? Como? — Instintivamente, como sempre o fazia, Ed mirou seu relógio espião russo: 16h12min; Dra. Bertinelli? Preciso urgentemente melhor dominar esta técnica hipnótica. Fui surpreendido. Quando começamos?
— Calma meu rapaz. Ainda não conversamos sobre seu transe hipnótico. O que tem a me dizer?
— Não posso agora doutora. Diana me espera na rodoviária. Mesmo horário próxima semana?
Em verdade o que o atraíra, depois da imersiva experiência literária, não era outra coisa senão o fascínio pelo novo. Nada lhe causava tanta satisfação quanto o desafio, o inusitado, o incompreensível. O futuro o seduzia, e de maneira fascinante. Saiu radiante; sentia saudades de sua amada.
Obs:
— pequena homenagem a Bob Kane e Bill Finger, criadores do icônico morcego encapuzado.
— Batman, O Filho do Demônio; Mike W. Barr / Jerry Bingham, DC Comics, 1987.
— Ed Ronaldo é personagem de minha autoria, baseado em histórias de detetives, publicado no Inkspired com o título “As aventuras de Ed Ronaldo (o detetive soberbo)”, 2021.
Nem sequer chegou a praticar a sessão matinal de alongamentos aprendida no YouTube: “Como aquecer seus músculos e ativar seu privilegiado cérebro”, em 6 aulas de 15 min. Ao contrário, sentia-se desmotivado, estado de espírito habitual quando passava mais de 2 semanas sem um bom caso a estimular seu instinto detetivesco.
Virou-se preguiçosamente e conferiu seu iPhone 12, presente de sua amada Diana Helena, a biomédica de BH, a qual comiserou-se com a situação de penúria de nosso protagonista:
— Diana, não posso continuar com este Samsung A7 2017. A plenitude de minhas capacidades cognitivas exige um equipamento de apoio condizente.
— Mas Ed, não posso sempre financiar seus gastos. Você precisa de um emprego, pois não quer mais estudar. Assim não...
— Já lhe disse Diana! A escola tradicional nada mais tem a me ensinar. Vocês humanos comuns não percebem, mas a vida está acima dessas frivolidades.
— Ok Ed. Mas nossa última conversa está de pé! Ou procura um psicólogo ou nosso amor não tem futuro!
Uma semana havia se passado desde o último encontro de Ed Ronaldo com Diana, quando a ruivinha, numa folga de seus plantões, veio visitar seu excêntrico namorado em Pedra do Monte, município da grande BH.
O IPhone 12 tilintou e Ed Ronaldo se exasperou — 09h27min — mensagem de Diana: Dra. Bertinelli, 15h10min; NÃO SE ATRASE!
O cãozinho Fox Terrier Bilau, vizinho de nosso detetive ocioso apareceu correndo e latindo. Conhecia o som do smartfone e sempre descia a rua íngreme até a praça central, acompanhando seu amigo até o ônibus para BH. Mas desta vez Ed estava soturno.
— “Estas questões sentimentais estão afetando minha soberba capacidade dedutiva...” — pensou já no ônibus, ao retirar de sua inseparável mochila Wilson a reluzente Graphic Novel do mês; pelo menos teria 1h e 50 min para a leitura voraz, até chegar à capital.
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— Senhor Ederson Ronaldo, 23 anos, ensino fundamental incompleto, solteiro, reside em casa dos pais, curso de detetive particular pelo YouTube... hummmm — vejo aqui sua ficha. Como poderia ajudá-lo?
— Dra. Bertinelli, na verdade estou aqui para ajudar minha namorada, coitada... sempre tão insegura!
— Bem, seu questionário sobre interesses valoriza muito as mentes investigativas, estou vendo aqui.
— Pois é doutora, algumas pessoas nascem com habilidades especiais.
— O que parece ser o seu caso, certo?
— Bom, devemos ser honestos. Não posso negar minhas aptidões.
— E você acha... estas... hã... habilidades... interferem no seu relacionamento afetivo?
— Para ser franco, Diana me aborrece com sua falta de visão de mundo. Sempre pensando em trabalho, renda, futuro. Não tenho tempo para essas miudezas.
— Como o Sr. gasta seu tempo, Sr. Ederson?
— Doutora, não se ofenda. Mas como me é de praxe, pesquisei longamente sobre seu trabalho com hipnose. Foi o motivo maior de estar aqui. Concedi até mesmo a Diana a oportunidade de pagar a consulta, pois pretendo aprender um pouco mais sobre esta técnica e utilizá-la em minhas investigações.
— Então passemos à primeira sessão. Deixe sua mochila aí no criado ao lado. Olhe em direção ao relógio de pêndulo à frente de seu divã. Quando contar 48 movimentos completos à esquerda você adormecerá e nos levará aos recônditos de sua mente.
— Estou contando doutora, mas sinto dizer: vai precisar de muito mais até interromper a convulsiva... atividade... de... minhas... cél... células... cin... cinzentas...
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— Doutora Bertinelli, aqui está frio! Poderia desligar o ar condicionado... mas, o quê?
Ed sentiu o corpo umedecido e se viu deitado a um piso frio e pegajoso. Algo zunia perto de seus ouvidos.
— Que diabos! Onde estou?
— 15h38min. Meu relógio espião russo nunca falha — Ed sempre recorria ao seu velho amigo de aventuras, em momentos de incerteza.
— Meu iPhone 12... sumiu!
Olhou em volta e divisou enormes estruturas pontiagudas pendendo do teto elevado do lugar. Filetes de água desciam pelas imediações ao seu redor. A semiescuridão era sufocante. Ed Ronaldo demonstrava sinais de inquietude: — uma caverna... “seres alados sibilam e aspiram o ar viciado” —, observou o atento detetive amador.
Pensou em sentir medo, mas logo se lembrou das técnicas de controle de pânico aprendidas no YouTube. Acalmou-se. Tateou seu bolso esquerdo e lá estava sua lanterna Led alemã Lenser, com bateria para até 18 h. Levantou-se e começou a explorar a caverna, totalmente seguro de seus passos, graças ao tênis antiderrapante Reebok Zig Kinetica que calçava, mais uma contribuição da piedosa Diana Helena.
— Meu gravador espião biônico Bird Watcher! Tenho aqui 18 h de gravação contínua; nada vai me escapar — aliviou-se ao palpar seu bolso direito.
Foi quando uma voz cavernosa se insinuou no que parecia ser um sistema de som Bose de alta potência — Ed possuía também conhecimentos estereofônicos, sempre autodidata, desde tenra idade.
— Ed. Ederson Ronaldo! Este é o seu nome correto, confere?
— Mas... quem fala? Juro já conhecer este tom de voz. Identifique-se!
— Não se lembra de mim Ed? Estou com você desde sua infância, dentro de seu baú de imbuia, no criado ao lado de sua cama, ou mesmo em sua mochila, nas viagens de ônibus.
— Bruce? Bruce Wayne?
— Bruce é apenas um disfarce Ed. Estou acima dele. Sou o propósito de uma vida...
— Ba... Bat... Batman? É mesmo você?
— A seu dispor.
Ed Ronaldo quase não acreditou ao apontar sua lanterna alemã para onde seus aguçados instintos indicavam. Uma grande sombra enegrecida, esvoaçante, contornava um indivíduo enorme, de postura incrivelmente altiva. Sua face, oculta por uma armadura negra encimada por apêndices pontiagudos, ostentava um par de brilhantes olhos afilados num tom madrepérola. Não fosse sua admirável capacidade adaptativa, nosso jovem investigador teria sofrido um colapso ansioso.
////
— Tá certo Batman... muito lhe admiro e reconheço sua influência sobre minha formação nas artes dedutivas... mas, sei que você não é real!
— Meu caro Ed Ronaldo, tenho acompanhado suas primeiras missões... seu talento é ímpar.
— Cruzado de Capa, isto tudo é fruto da hipnose efetivada pela Dra. Bertinelli...
— Me lembro bem desta jovem; tive alguns problemas com ela... mas hoje é uma aliada.
— Aaahh... agora entendo! Fui transportado para a sua Graphic Novel do mês: “O Filho do Demônio”; tá aqui na minha... uai! Cadê minha mochila?
— Bem Ed, não tenho muito tempo para divagações. Minha vida é uma dualidade insana. Não a recomendo para ninguém. Na verdade, preciso de sua ajuda.
— O Cavaleiro das Trevas precisando de ajuda? Compreendo o fato de minha contribuição ser inestimável a quem precisar... mas suas capacidades estão em outro patamar... obviamente ainda o alcançarei, porém...
— Não se subestime Ed. Este erro... pode custar sua vida!
— Ok, Cruzado Encapuzado. Modéstia à parte, reconheço ser capaz de ajudá-lo. Qual o seu problema?
— Estou tomado por um grande dilema. Como está descrito nesta história em seu poder, renunciei à minha vida afetiva, por ser incompatível com minha cruzada contra o crime...
Ed imediatamente se pôs a pensar em Diana Helena: “teria ele o mesmo fim?”
— Tenho dúvidas! O que você faria em meu lugar? Devo renunciar à promessa feita sobre os corpos assassinados de meus pais? Tenho direito à felicidade? Ou minha missão é maior?
— Quem está perguntando? É você Bruce? — Sua excepcional intuição percebeu a mudança para um tom de voz mais intimista.
— Como já disse, ele é fraco Ed! Já decidi por ele, mas insistiu em lhe trazer aqui — retrucou novamente a voz autoritária.
— Senhores, por favor, deixemos de lado as discussões — Ed sempre lia sobre múltiplas personalidades; era sabedor do fato de muitos mistérios se esconderem sob esses comportamentos.
— Me responda Ed. O que você faria? — Novamente a voz insegura...
O maior detetive do mundo tinha sua faceta de fragilidade afinal. E a revelara sem disfarces para o promissor aspirante a investigador do interior de Minas. Ed Ronaldo, extremamente hábil em analisar fatos aparentemente desconexos, pôs-se a exercer seu maior talento, o dedutivo:
— “Isto não é por acaso. Amo Diana e ela a mim. Mas temos vidas muito diferentes. Ela me cobra uma guinada radical, rumo a uma vida monótona e pasteurizada. Por outro lado, não posso desperdiçar meus talentos com situações banais do cotidiano. A Dra. Bertinelli me jogou numa encruzilhada... mas... como ela sabia? Como saio dessa?” — as pupilas dilatadas e o frenesi dos movimentos oculares involuntários denunciava o intenso escrutínio psíquico.
— Senhor Ed Ronaldo, não tenho o dia todo! — a voz cavernosa interrompeu o transe...
////
Ed Ronaldo sempre admirou quem colocava a inteligência em primeiro lugar. Cabeça acima da massa bruta. Para ele a verdadeira força residia no uso adequado das conexões neuronais, frequentemente deixadas de lado na profusão de coisas estúpidas com as quais as pessoas costumavam perder seu tempo no dia-a-dia.
Não lhe passava despercebido estar diante de uma das mentes mais brilhantes que já tivera conhecimento, quase a rivalizar com a sua própria. E por isso mesmo pesou bem suas palavras. Ainda que fictício, o binômio Batman / Bruce Wayne, com suas mais de oito décadas de atuação, sempre servira de inspiração e modelo de conduta para jovens espalhados por todos os cantos do globo. Sua responsabilidade era enorme.
— Escutem vocês dois: ainda sou jovem. Minha experiência vêm do conhecimento acumulado de farta leitura, arma tão esquecida pelas novas gerações. Tenho algo a dizer — Ed Ronaldo navegava bem pelos mares da Filosofia.
— Batman, seu comportamento é consequencialista, o que o faz acreditar na premissa de suas atitudes sempre resultarem nas melhores consequências para todos. Isto é o que te move: “o fim justifica os meios” — a imponente figura encapuzada se empertigou e assentiu com a cabeça.
— Bruce, sua angústia vem do fato de suas ideias estarem mais próximas das razões morais deontológicas; ou seja, se preocupa mais com o que está sendo feito ou com a maneira de o fazer — o homem de queixo quadrado o fitou, perplexo.
— Em resumo, vocês dois se digladiam, mas não percebem: um não existe sem o outro! Antes de agir, devemos sim pensar, de forma a que o resultado final seja o melhor possível, ou até mesmo venha a resultar no menor prejuízo tolerável, se não houver outra opção. A razão do sucesso de vocês dois, ao longo de mais de oitenta anos, se fundamenta nisso. Vocês ambos se completam. Não há razão para conflito. As teorias filosóficas não são excludentes, e sim complementares.
— Mas, mas... — as diferentes vozes se misturavam.
— Concluindo então: — Ed levantou o sobrolho direito, indicando insatisfação por ser interrompido — parem com essa história de definir o objetivo um do outro: vocês dois são um só! Depois criticam o Harvey, haja paciência... destino não se escolhe, se vivencia. Não cabe a vocês optarem pela vida amorosa ou pela vida de combate ao crime. “Somos o que podemos ser”. Não uma caricatura do que deveríamos ser. Se alguém tiver a missão de decidir, que seja em conjunto com o outro lado interessado; e sinto dizer: por aqui nesta história a contraparte feminina já se manifestou; e infelizmente, de forma negativa... sinto muito!
Um silêncio entrecortado pelo ruflar de asas dos mamíferos alados e pelos sons repousantes dos filetes aquosos perdurou por um minuto ou mais. Até que uma única voz potente e segura de si ecoou pelo sistema Bose:
— Obrigado Ed Ronaldo — a voz agora uníssona primava pela firmeza — tinha conhecimento de seu potencial, mas confesso estar estupefato. Não esperava tanto. Ficará na lembrança aqui em Gotham. Pode voltar ao seu mundo... em 48 movimentos... o pêndulo... iniciando agora...
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— Sr. Ederson, pode acordar. Agora, no estalar de meus dedos!
— Onde? Como? — Instintivamente, como sempre o fazia, Ed mirou seu relógio espião russo: 16h12min; Dra. Bertinelli? Preciso urgentemente melhor dominar esta técnica hipnótica. Fui surpreendido. Quando começamos?
— Calma meu rapaz. Ainda não conversamos sobre seu transe hipnótico. O que tem a me dizer?
— Não posso agora doutora. Diana me espera na rodoviária. Mesmo horário próxima semana?
Em verdade o que o atraíra, depois da imersiva experiência literária, não era outra coisa senão o fascínio pelo novo. Nada lhe causava tanta satisfação quanto o desafio, o inusitado, o incompreensível. O futuro o seduzia, e de maneira fascinante. Saiu radiante; sentia saudades de sua amada.
Obs:
— pequena homenagem a Bob Kane e Bill Finger, criadores do icônico morcego encapuzado.
— Batman, O Filho do Demônio; Mike W. Barr / Jerry Bingham, DC Comics, 1987.
— Ed Ronaldo é personagem de minha autoria, baseado em histórias de detetives, publicado no Inkspired com o título “As aventuras de Ed Ronaldo (o detetive soberbo)”, 2021.