O Casarão do Coca

Quem de minha infância fez parte que não lembre do antigo casarão do Coca, antiga residência de fazendeiros do tempo da escravidão. Velho, mas lindo e que hoje já não existe mais, pois foi demolido para a construção do novo prédio da escola. Como o conheci? Foi doado pelo proprietário para ampliar a escola onde estudávamos. Eu tive aulas na segunda série no casarão. Era uma delícia! Carteiras antigas de madeira pesada, onde sentávamos aos pares, a mesa era levemente inclinada e tinha um tinteiro e uma saliência para colocar o lápis para ele não cair. Era o máximo!

Minha mãe era servente e limpava a escola. Quantas vezes eu ajudei a varrer e limpar as salas de aula do casarão, de dia e às vezes à noite e enquanto limpávamos havia uma classe do MOBRAL, aulas para alfabetização de adultos. Eu alguns dias frequentava às aulas e ajudava os mais velhos com o lápis a fazer as letras. Muitos tinham a mão dura e para mim, era uma alegria ajudar. Tinha um andar de cima, mas que não era usado e algumas salas trancadas, onde o Senhor Coca tinha guardado alguns de seus pertences, inclusive, um deles era seu quarto. Acreditem, ele dormia no casarão, embora tivesse sua casa moderna no lote ao lado.

Quando estávamos limpando as salas de aula, de vez em quando o Senhor Coca aparecia sempre sorridente e ficava algum tempo ali conversando com minha mãe, contando vez e outra algumas histórias sobre o casarão e os escravos. Eu ficava de olhos radiantes ouvindo e ele sempre afagava meus cabelos e eu sorria. Eu perguntava a ele se não tinha medo de dormir ali, pois muitos falavam que o casarão era assombrado e que ouviam-se barulhos a noite de escravos acorrentados, pois as correntes arrastavam pelo chão de madeira e fazia muito barulho. Ele dizia que não, que os fantasmas não o incomodavam, pois ele era merecedor de uma enorme fortuna ali enterrada. O “enterro” ali fora prometido a ele, mas ele não queria e ia passar para uma outra pessoa também merecedora de tal fortuna. E isso ele faria, “passaria o enterro” a outra pessoa antes de morrer.

Eu faço aniversário dia vinte e quatro de dezembro e minha mãe foi visitar e levar um bolo de amendoim, de receita de nossa família, de presente para uma parente e que surpresa, chegando lá minha mãe contou que era meu aniversário e ela me deu um embrulho de presente. Abri e que linda era uma bonequinha chamada Maria, uma linda portuguesinha vestida a caráter. Agradeci e fiquei encantada com o presente. E daquele dia em diante nunca me separei da boneca.

Ia ajudar minha mãe a limpar a escola e o casarão e levava Maria comigo. Num certo dia, limpando uma das salas do casarão, deixei Maria em cima de uma carteira próxima a porta e entretida ajudando minha mãe, não percebi que a boneca sumiu. Somente quando o Senhor Coca me chamou e explicou que duas meninas haviam entrado ali e pegado a boneca, ele a pegou de volta e queria me devolver. Pediu autorização a minha mãe e me levou até seu quarto onde guardou a boneca. Chegando lá, ele me colocou sentada numa cadeira, me devolveu Maria e me contou sobre o “enterro” a ele destinado. Neste momento minha mãe chegou, preocupada pela minha demora, e nós duas ali ouvimos dele que a partir daquele dia, ele estaria “passando o enterro” para mim. Que este dinheiro é encantado, somente a pessoa destinada conseguirá desenterrá-lo. Que dois escravos de olhos pendurados guardam o tesouro, mas que para a pessoa destinada, nada vai acontecer. Ele também disse que por muitas vezes a noite o casarão era invadido e onde antigamente havia uma cozinha, restava somente ali um fogão a lenha em um canto da parede. Este fogão era sempre atacado e quebrado, em busca do “tal enterro”, pois a lenda dizia que o tesouro fora enterrado no fogão a lenha da cozinha, junto com dois escravos. Mas o que as pessoas não sabiam e que nos foi revelado pelo Senhor Coca que aquele fogão não era o antigo, mas um novo. O antigo fogão a lenha, onde o tesouro havia sido enterrado, ficava em um outro cômodo e nos levou lá para mostrar o lugar onde ele ficava, pois já não existia mais. E que o fogão novo, era constantemente por ele reconstruído.

Eu fui crescendo e este fato nunca foi por mim esquecido, ficou guardado na minha memória, de minhas histórias de infância.

Depois de um tempo, o Senhor Coca morreu. Eu fui no velório dele e fiquei imaginando se um dia teria coragem suficiente para realizar o que a mim foi prometido.

Eu tinha sete anos na época e até hoje esta história me intriga, me faz ficar pensando se eu realmente sou merecedora de tal feito.

Anos bem depois, veio a notícia de que o casarão seria demolido para minha infinita tristeza, pois desde menina admirei as construções antigas. Achava que deveriam ser restauradas e nunca demolidas!

Como minha mãe trabalhava na escola, eu acompanhava a construção do novo prédio da escola e ouvi histórias sobre os empregados da obra cavarem incansavelmente por vários lugares, tentando encontrar o tesouro encantado, mas sem sucesso.

Enfim o novo prédio foi construído e eu terminei meu ensino fundamental nas salas novas, mas a cada lugar por onde eu andava, estava nítida na memória cada canto do antigo casarão do Senhor Coca.

E por incrível que pareça, onde era verdadeira cozinha do casarão antigo com o fogão de lenha foi construída a nova cozinha e uma dispensa. Neste lugar vez ou outra, quando não havia atividade alguma na cozinha e pairava aquele silêncio, ouviam-se ruídos que vinham de dentro de uma das paredes, a que faz divisa da cozinha com a dispensa. Minha mãe e eu, juntamente com a cozinheira, ouvíamos por diversas vezes barulhos de panelas caindo e lenha estalando ao fogo. Chegamos a correr para a dispensa e chegando lá, tudo estava em ordem, os enormes caldeirões guardados nas prateleiras, os mantimentos todos empilhados, nada caído ou fora do lugar.

Os anos passaram e a escola está lá com suas histórias do passado. A lenda do Senhor Coca ainda é lembrada, mas somente minha mãe e eu fomos as merecedoras do “enterro encantado”. Ainda me pergunto sempre se tenho coragem e ir lá a noite e sozinha?

Sissili
Enviado por Sissili em 19/03/2021
Código do texto: T7210702
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