Esta é uma história que eu ouvi quando criança. Quando contada, foi contada como baseada em fato real. Não foi contada por criança ou adolescente numa dessas rodas de conversa noturna, em que num quarto com as luzes apagadas ou no terreiro sobre a luz do luar, a brincadeira de produzir medo contando histórias de terror atiça a fantasia da meninada. Foi contada por uma velha senhora, nos bastidores de um encontro entre vizinhos para rezar o Terço Rosariano. A devota, fonte da nossa história, morena, de cabelos esbranquiçados envoltos em um pano rosado, rosto cheio, em seu vestido longo e usando chinelos de borracha, pesadamente sentada numa cadeira com as pernas cruzadas, lembro, contou tudo com muita solenidade, usando de pausas e entonações que produziam o efeito de suspense.

Eis a história!

Era um dia de mês de agosto, numa pequena comunidade rural, de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, onde seria realizada a abertura das festividades do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, com o levantamento de bandeira, terço em homenagem à Nossa Senhora, vários outros rituais com músicas, danças e orações. Também de influência afro-brasileira, o Reinado remete à devoção aos santos negros e ao respeito pela matriz africana de nossas raízes. Não me lembro se ocorreu no sábado ou no domingo, mas, lembro de ser num fim de semana.

O Cruzeiro da comunidade, espaço que receberia parte da festa, ficava afastado de casas ou qualquer tipo de construção, situado na beirada de uma estrada, tendo ao seu entorno um vasto e denso cerrado, não destes de vegetação de média altura e troncos retorcidos, mas, de árvores grandes e imponentes. No centro do Cruzeiro, colocada sobre uma plataforma de cimento com dois degraus circundantes, imperava uma alta cruz de madeira, com pintura de azul e de uma altura de pouco mais de três metros. O pátio ao redor do cruzeiro era cimentado e murado com uma parede de um metro de altura. E ainda havia para além desse pátio cimentado alguns metros de terreiro de chão batido, mas praticamente todo conservado com grama, que devido à época do ano, estava essa amarelada e seca.

Nas solenidades do Reinado dessa comunidade, assim como em toda festa de Reinado, são queimados fogos de artifício, ocorre o levantamento de mastros de santos, a peregrinação das guardas com seus uniformes coloridos pelas estradas vizinhas ao cruzeiro, com cantos e danças e a realização de culto celebrativo. Os festeiros e anfitriões oferecem em suas casas ou no salão comunitário o café da manhã, lanche da tarde, almoço e jantar às caravanas de convidados do evento. Promessas ou exposições de graças alcançadas são compartilhadas entre os fiéis, e as ruas ficam coloridas e alegres com o som dos tambores, violão, zabumba, triângulo e pandeiro.

Apesar de ser uma festa muito alegre e espirituosa, neste dia, vez ou outra ocorreu excessos por parte de alguns participantes. Não havia restrição quanto ao uso de bebida alcóolica, dois bares locais estavam abertos desde o raiar do sol e mesmo durante o dia um ou outro já aparentava sinais de embriaguez. Justiça seja feita, estes eram os participantes menos envolvidos com a festa, que apreciavam por gostar da alegria do movimento ou simplesmente acompanhavam algum familiar ou amigo festeiro.

 A noite caiu seca e ventosa, nem muito fria e nem muito quente, como se espera das noites de agosto. No cruzeiro, orações era proferidas e danças ao redor da Cruz eram entoadas. As pessoas estavam num misto de cansaço e alegria. Quando já fazia muito tempo em que o sol havia se posto, uma pequena discussão se forma. No meio de um grupo de pessoas, dois homens começaram a discutir asperamente. O motivo da discussão pouco importava, o que preocupava os que se aproximavam era a agressividade das ofensas mútuas. Ambos se portavam de forma muito agitada, expansiva e nervosa, e nitidamente estavam alcoolizados.

Alguns tentavam acalmar os ânimos, mas, em vão. Para piorar os dois estavam armados, um com canivete e o outro com uma garrafa quebrada ali mesmo naquele tumulto. Após instantes de ameaças e gritos, se avançaram em movimentos rápidos e espaçados, rodando suas armas rudimentares avulsamente, atrapalhando a intervenção dos sóbrios. Uma ou outra mulher começou a chorar, a música parou e todos se aglomeraram. De repente se atracaram em numa luta corporal, se agarraram mutuamente e caíram no chão. Rolaram, se apertaram e se socaram, com a intromissão tímida dos pacificadores. Percebeu-se num e noutro sangue e marcas de agressão. Os homens conseguiram enfim apartá-los com alguma dificuldade, mas eles continuaram a proferir palavrões e maldições enquanto tentavam se soltar. Em meio a gritaria dos dois e o alvoroço que se instalou, uma voz de criança começou a ecoar e ganhar destaque.

_ Mãe, mãe, olha aquilo mãe, olha aquilo, olha que menino feio, parece um bicho.

_ Cala a boca menino, não é hora de brincadeira!

_ Mas mãe ele tá em cima da cruz! Olha, olha!

_ Que isso Marcos, onde está este menino ou bicho? Não estou vendo bicho nenhum!

_ Olha lá mãe, olha, em cima da cruz!

_ Não tem nada em cima da cruz meu filho, pare de inventar mentira!

_ Eu também tô vendo, tem sim, e ele está pulando de alegria, ele está dando risada, olha como ele pula! – falou outra criança.

De repente todas as três crianças menores que ali estavam começaram a gritar.

Um menino na cruz! - Um menino  feio e pelado!  - Parece bicho! - Eu tê vendo! – Que feio! – Ele cuspiu na cruz!

As pessoas mudaram o foco dos brigões para as crianças.

_ Mãe, ele está falando para continuar a briga! 

_ pare com isso Pedrinho!

_Mas mãe, ele está falando, vai Sérgio, use a faca, vai Juca, acerte ele, sangue, sangue, eu quer ver sangue.

A mãe se assusta: você conhece estes homens que estão brigando?

_ Não mãe, mas o bicho feio está falando, você não tá escutando?

A mãe da criança espantada: alguém sabe o nome desses dois?

Um jovem respondeu: é o Juca do Rio Manso e o Sérgio do Tiãozinho.

A mãe e os que ouvem sentem calafrios.

_ Crianças, o bicho está na cruz ainda? Você estão vendo? Como ele é?

_ Ele é muito feio – vermelho! -  magrelo -  está sem roupa -  tem olhos grandes. _ Mãe, ele tá com raiva por que a briga tá acabando!

As crianças continuaram a descrição. Os brigões e o grupo em volta diminuiram a agitação, e Chico, um dos cerimonialistas do Reinado gritou:

_ Irmãos e irmãs, o espírito do mal está entre nós, vamos nos unir em orações, para que ele nos deixe, e para que possamos celebrar Jesus Cristo no meio de Nós, com as Graças da Maria nossa mãe. Vamos orar juntos!

De mãos dadas ao redor do cruzeiro, todos entoaram: Pai nosso que estais nos céus... Ave Maria, cheia de Graça...

Em meio às orações ouvia-se choro, abraços e rostos gélidos de medo. Os brigões se ajoelharam. Um vento soprou forte em meios às árvores. Ouviu-se novamente gritos de crianças:

_ Ele sumiu - ele sumiu! – ele foi embora!

...

E assim, naquela noite, o restante da festa foi de oração, abraçados todos ao redor do cruzeiro. Ninguém comentava nada, só orava, orava e orava, pediam e oravam. Os brigões fizeram as pazes. Somente na volta para casa, na dispersão, ouvia-se murmurinhos. Curiosamente as crianças esqueceram do ocorrido pouco tempo depois. Os adultos mantiveram a lembrança, e mesmo na dúvida do que realmente aconteceu, se foi pura fantasia ou não, nunca mais deixaram por zelar pela paz e bom comportamento no Reinado da comunidade.
Nasceu ali, para aquelas pessoas da comunidade, e para outras que ouviam a história, a crença de que as crianças conseguem ver aquilo que os adultos não conseguem... ou não querem ver!