EUDÓXIA

Eram tempos de privações aqueles. Eu contava uns sete anos. Meu pai abdicara de seu pequeno negócio na cidade e voltara para o campo, onde sentia-se melhor e mais produtivo. Mas as coisas não corriam bem naqueles dias. Além do isolamento, havia carência de recursos para coisas básicas, como sabão, por exemplo. No matadouro existente numa fazenda vizinha, mamãe adquiria, por níqueis, miúdos de bois e com eles operava milagres. Eram desde quitutes deliciosos até o prosaico e tão indispensável sabão. Num grande tacho feito da metade de um tonel, ela lançava tudo que não era comestível, acrescentava soda cáustica e fervia por várias horas. Depois deixava esfriar e, quando aquela massa adquiria uma consistência mais ou menos sólida, usava uma grande faca para cortar em cubos o conteúdo. Estava pronto para uso o sabão.

Eudóxia era uma negra extraordinária, próxima dos quarenta anos, que exercia serviços domésticos na sede de outra fazenda vizinha. Pessoa mais bonita acho que a memória de minhas retinas jamais registrou outra antes ou depois dela. Seus olhos brilhantes e úmidos sem dúvida traziam mensagens da alma daquela mulher! Ao sorrir, desfazia toda e qualquer perturbação que pudesse pairar no ambiente, e era música o que saía de sua garganta! Fosse Eudóxia um planeta, eu queria ser seu satélite natural.

Eu mirava o corpo esguio de Eudóxia, envolto em branco vestido de algodão cru - que ia até os tornozelos e insinuava largo e generoso regaço - e desejava colo.

Às vezes, porém, quando se encontrava distraída ou em ambiente silencioso, Eudóxia deixava transparecer de seu olhar uma tristeza. E era tamanha essa tristeza que nem seus grandes e coloridos brincos, anéis, pulseiras, colares e chocalhos conseguiam disfarçar. Ao pensar nisso, eu me perguntava: seria Eudóxia infeliz? Seria possível a infelicidade em pessoa tão singular? Qual seria o mistério de Eudóxia? Mas eu jamais lhe perguntaria isso. Eu não falava com ela, nada lhe perguntava. Apenas a olhava e olhava e olhava.

Eu ia para casa, mas não parava de pensar em Eudóxia. À noite, sonhava que ela me pedia de minha mãe e me levava com ela para a fazenda. Lá, passeávamos pelos campos, a colher frutos e flores, a admirar os pássaros, a correr e rolar pelo chão, numa brincadeira sem fim. Quando acordava, ficava aborrecido, queria continuar a sonhar. Eu queria ir com Eudóxia, ser de Eudóxia, ser como Eudóxia. Queria a minha pele como a pele de Eudóxia. Disse isso a um meio-irmão meu, do tipo "endiabrado", e ele me disse que era possível. Era só tomar muito, muito sol. Passei a expor-me com tal intensidade aos raios solares a ponto de adquirir queimaduras sérias, que me provocaram febre e desidratação.

Certa madrugada, acordei com o ruído de alguém que sofrenava a montaria bem junto à cancela do nosso quintal. O cavaleiro gritou, ainda montado:

- Ó de casa!

Meu pai respondeu:

- Quem vem lá?

- Sou mensageiro da Fazenda dos Porciúncula! Trago uma notícia para vocês.

Papai abriu a porta e mandou o homem entrar. Parecia adivinhar que era coisa séria. Levantei-me e colei o ouvido à parede da sala. A fazenda dos Porciúncula era onde vivia Eudóxia e, portanto, o assunto me interessava. Mas não deu para ouvir nada. A conversa foi breve e sussurrada.

Pela manhã, nossos pais nos deixaram aos cuidados de nosso meio-irmão adolescente, aquele que me receitou banhos de sol, e foram visitar os Porciúncula. Quando voltaram, disseram que Eudóxia estava morta. Cometera suicídio por ingestão de soda cáustica. Eu não manifestava para a família a minha fascinação por Eudóxia. Mas, diante daquela notícia, minhas pernas amoleceram, minha vista se turvou e só não caí porque estava sentado. Minha mãe correu em me acudir. Depois que me refiz, ela perguntou:

- Você gostava muito da Eudóxia, não é filho?

- Gostava sim, mãe. Estou muito triste.

Ela me pôs no colo, acariciou-me os cabelos e me levou para a cama onde, exausto por todas as emoções do dia, não demorei a adormecer. Meus sonhos com Eudóxia, agora, eram pesadelos terríveis. Eu a via no caixão, o abdome a derreter sob o efeito da soda cáustica, suas vísceras a liquefazerem-se, num movimento de tacho fervente. Numa outra sequência, o corpo já frio, o fazendeiro usa um enorme facão para retalhar Eudóxia, de cujo ventre extrai cubos de sabão. "Meu Deus, o que fazem com minha Eudóxia?" - ouvi meu próprio grito, ao despertar.

Por muito tempo, andou comigo uma grande tristeza. Mas a vida dura que levava não dava espaço para coisas como depressão, se é que uma criança na minha idade podia ter dessas coisas. Assim, com o passar das semanas, meses e anos a ferida enorme da perda de Eudóxia (minha primeira grande perda!) cicatrizou. Mas é uma cicatriz um tanto enganosa, que ainda sangra diante de outras grandes perdas. Das quais, aliás, os tempos de agora têm sido pródigos.

José Luiz Barbosa de Oliveira
Enviado por José Luiz Barbosa de Oliveira em 05/01/2021
Reeditado em 21/06/2021
Código do texto: T7152902
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.