A Pensão do Sargento

Já passava da metade do expediente quando a seção de pessoal do batalhão do exército de Caxias do Sul, a maior cidade do interior do Rio Grande do Sul, recebeu um e-mail da central de pensões militares de Brasília. O jovem Cabo Mathias abre a mensagem, lê e já repassa ao seu superior, Subtente Martins:

- Sub, uma missão para nós essa semana no interior. Parece que há suspeita de percebimento indevido na aposentadoria de um sargento reformado em Vacaria. Não houve prova de vida desse veterano já há algum tempo. Possivelmente ele está doente ou em casa ou já falecido e algum familiar ou conhecido deve estar ficando com os valores da pensão para si. Geralmente ocorre dessa maneira.

O suboficial Martins sempre se entusiasmava com esse tipo de missão. Era uma excelente oportunidade de viajar para o interior a trabalho e sair um pouco da rotina burocrática de uma seção administrativa do exército.

Os militares então ajustaram para fazerem a averiguação na sexta-feira seguinte, logo cedo e assim dar tempo de retornarem no mesmo dia com a missão de fiscalização completa.

Na alvorada de sexta, estavam os dois com uma viatura seguindo pela BR 116 em direção a Vacaria.

- O que pode ser isso Sub? Como um familiar pode estar logrando um militar da reserva, que dedicou a maior parte da vida para servir à nação?

- As pessoas são capazes dos maiores absurdos Mathias. Nesses quase trinta anos de serviço já vi de tudo. As pessoas se corrompem facilmente quando o assunto é dinheiro.

Em pouco menos de duas horas já estavam na cidade de Vacaria, uma das mais frias do Brasil.

- Caramba Sub, como é mais frio que Caxias aqui.

- Sim, aqui sempre é mais frio que nossa cidade. Você trouxe teu suéter? Vai precisar dele, dependendo o horário que sairmos daqui hoje.

Adentram no bairro da periferia que o GPS da viatura os direcionava.

- Sub, a cidade é bem pobre não é?

- Sim, aqui não existem muitas indústrias. A base da economia é a produção de maças e outras frutas. Esse é um trabalho bem árduo e a cidade não dá conta da mão-de-obra necessária e os pomares precisam recrutar gente de fora do município e às vezes até fora do estado e do país vir para trabalhar aqui.

- Caramba! Não fazia ideia.

- VOCÊ CHEGOU AO SEU DESTINO! – Anunciou o sistema de GPS da viatura.

- Uma casa bem boa Sub! O bairro é pobre, mas a casinha do Sargento parece ser confortável.

- Realmente! Uma casa bem construída. Agora é só nós batermos e confirmar qual é a situação desse nosso veterano.

Entre estacionar e juntar a documentação de fiscalização os dois demoraram alguns instantes, porém ninguém na casa havia até aquele momento saído. Na residência que estavam prestes a tocar tudo era silêncio, mas nos arredores, os vizinhos e alguns cães já haviam notado a presença dos forasteiros de uniforme verde-oliva.

Os militares dirigiram-se até o portão. A casa era bem cercada com muros e grades altos.

Tocaram o interfone. Não obtiveram resposta. Tentaram mais uma vez. Nada.

- Há algum número de telefone no cadastro do veterano Sub?

- Tem um de telefone fixo.

Tentaram uma ligação e ouviram que o aparelho tocou no interior da residência.

Aguardaram mais alguns instantes e nenhum sinal de algum morador. Como haviam chamado atenção dos vizinhos, resolveram descobrir alguma informação com uma senhora que varria a frente de sua casa, do outro lado da rua.

- Com licença minha senhora! Eu sou o Cabo Mathias e aquele ali é Subtente Martins. Estamos aqui para tentar conversar com o Senhor... Serafim...Adelcio Vieria Serafim. A Senhora o conhece?

Com a mão direita por cima dos olhos e com a esquerda segurando-se na vassoura, a mulher responde pensativa:

- Adelcio... Serafim...olha seu moço, eu não recordo. Ele morava nessa casa? Ali mora a Thereza. Ela seria filha dele?

- Thereza? Não sei dizer Senhora. Só sei que o endereço do Senhor Adelcio é esse.

- A Dona Norma morou a vida toda aqui na vila. Ela deve saber. Eu só recordo da Thereza nessa casa, mas ela é sozinha. Não tem filhos. É solteirona.

- Onde mora a Dona Norma Senhora? Indagou Martins.

- Ali na frente! Duas casas depois da casa de Thereza. Ela é muito velinha. Os senhores vão precisar falar com o neto. Cláudio é o nome dele. Ele cuida da Vó.

Agradeceram a informação e voltaram a atravessar a rua, agora em direção à casa de Dona Norma.

Uma pequena casa modesta, mas com um pátio bastante limpo. Tocaram a campainha e logo dois pequenos cães pinscher apareceram latindo freneticamente!

- Parem seus moleques! Vinha o homem rapidamente tocando os cães e indo em direção do portão. – Pois Não!

- Bom dia Sr Claudio! Eu sou o Subtenente Martins e esse é o Cabo Mathias. Somos do Exército e estamos aqui procurando o Sr. Adelcio, que pelas informações que possuímos reside duas casas ao lado da sua.

Pensativo Claudio disse que não conhecia ninguém com esse nome e só sabia de Thereza. A solitária mulher que reside há anos na casa.

- A sua vizinha aqui da frente, sugeriu que talvez a sua avó possa saber dele, pois mora aqui há muito tempo.

- Possivelmente. Eu não vejo outra pessoa ali a não ser a Dona Thereza. Ela não costuma falar muito com os vizinhos. Os senhores chegaram a falar com ela?

- Batemos ali e não há ninguém na casa.

- Hum. Pode ser que tenha ido à feira.

- Será que podemos falar com a sua avó e ver se ela se recorda de algo que possa nos ajudar?

- Perfeitamente! Só terão de ter um pouco de paciência, pois ela tem Alzheimer e pode ser que não recorde bem das coisas.

Após pedirem licença acompanharam Cláudio até o pátio nos fundos da casa.

Sentada em uma confortável cadeira de braços amplos estava a Dona Norma, olhando os cães brincarem um com o outro.

- Vovó, esses moços são do quartel. Eles precisam saber se a Senhora se recorda de um vizinho que morava na casa da Thereza, aqui ao lado. Qual é mesmo o nome dele?

- Ele se chama Adelcio Vieira Serafim. Era militar do batalhão do exército aqui de Vacaria, quando existia o batalhão aqui. – Respondeu Martins.

Com olhar plácido, Norma olhava para os militares em silêncio. Sem resposta e já ficando constrangido, o neto interviu:

- Vovó, eles não podem esperar! A Senhora sabe ou não?

- O Sargento? Indagou olhando fixamente os militares.

- Isso, o Sargento Serafim! A Senhora sabe onde reside? Disse apreensivo Martins.

- Há anos ele foi embora! A mulher dele havia o deixado por outro. Um colega do quartel. Foram para o Mato Grosso se não estou enganada. Serafim sofria muito por ela. A única que lhe cuidava era sua sobrinha. Na época que ele foi deixado pela mulher ela era pequena. Passava todo tempo com ele. Um amor de pessoa. Tinha sido rejeitada pelos pais. A mãe era meio irmã do Serafim. No fim foi abandonada pelo Tio também.

- Vovó, eu não recordo dele e nem dela.

- Você era muito pequeno para lembrar-se dele. Mas ela você conhece. Ela mora ainda na casa que o Tio abandonou.

- A Dona Thereza?

- Sim! Ela ficou com a casa. Acredito que espera até hoje algum sinal do Tio. Pelo menos ela tem um teto para morar.

- Obrigado pelas suas informações Senhora! Já nos ajudou bastante. Iremos tentar achá-la. – O suboficial agradeceu e se encaminhavam para deixar a residência. Dona Norma disse:

- Vocês poderiam achar o Serafim! Se acharem ele digam que a Norma sente saudades! Ele era um excelente vizinho.

- A Dona Thereza é bastante discreta Srs. Ela me cumprimenta e a vejo cumprimentar os outros vizinhos, porém é muito reservada. Nunca veio aqui e acho que minha Vó, pelo tempo que está doente, só recorda quando Thereza era ainda uma mocinha. Nem sabe que ela se tornou uma mulher solitária. Claudio finalizou e abriu o portão para os dois.

Como não dispunham de um número de telefone celular e o fixo que tocava na casa não havia ninguém para atender, resolveram os dois aguardar na viatura e esperar se ela não voltaria para casa ao meio-dia.

- Estranho! Disse o suboficial.

- O que é estranho chefe?

- O cadastro do nosso Sargento. Não referencia nenhum parente próximo. Havia a esposa, mas pouco tempo depois do casamento ela foi retirada de dependente. Fora ela não há nenhum dependente no sistema.

- O que isso significa Sub?

- Que tem algo errado nessa história.

Passados alguns instantes, pouco depois do meio-dia, uma senhora de vestes simples e sacolas na mão se aproxima do portão da casa com passos rápidos. Quase não houve tempo de os militares deixarem a viatura e a interpelarem.

- Bom dia Senhora! Com licença! Martins mal abriu a porta e já iniciou a fala. Apresentaram-se e logo disseram o porquê estavam ali.

Com bastante calma e atenção Thereza ouviu a explicação e disse:

- Os senhores precisavam falar com meu Tio para ele dizer que está tudo bem com ele? É isso?

- Sim. Mais ou menos isso. Respondeu Martins.

- Tudo bem! Meu Tio ficará muito feliz com a visita dos Srs. Irei apenas prepará-lo, pois com certeza ele irá querer estar arrumado para lhes receber! Não é todo dia que colegas do exército vêm até aqui.

- Ele mora aqui então? Indagou Mathias.

- Sim! Quase que a vida toda. Ele está muito velhinho agora. Eu cuido dele depois que a ingrata da mulher dele foi embora.

- Podemos então vê-lo Dona Thereza? Indagou Martins.

- Claro! Eu vou lhes acomodar na sala e irei arruma-lo no quartinho dele. É lá que ele fica, pois adora aquele lugar.

- Obrigado. Martins agradeceu e se sentaram nos sofás da apertada sala. Numa estante diversas fotos antigas. Em várias delas um militar jovem, que logo deduziram ser o Sargento que tanto ansiavam encontrar.

Os militares ouviram Thereza descer as escadas, imaginando que nesse tipo de porão era onde o Sargento ficava a maior parte do tempo.

Como a situação estava se encaminhando para a resolução, ambos não focaram tanto a atenção na questão de que todos os vizinhos ou nunca haviam visto o Sargento, ou diziam que ele tinha ido embora, como falou a Dona Norma.

No interior de seus pensamentos preferiram repousar na possibilidade de que o veterano era mais recluso e caseiro ou simplesmente não era de se relacionar com seus vizinhos. – Eu mesmo não sei o nome de ninguém que mora nos apartamentos ao lado do meu em Caxias – Pensava Martins.

Passaram-se alguns minutos e ouviram a Sra. Tereza subindo as escadas.

- Pronto Senhores! O titio está arrumado e lhes aguardando. Podem me acompanhar.

Desceram as estreitas escadas de madeira do porão. A Sra. Tereza na frente. O cheiro era um pouco forte e aumentava quando mais desciam.

Quando terminara os degraus virando-se para o lado disse a anfitriã:

- Olha Tio! Os teus colegas do exército! Vieram lhe fazer uma visita!

O vulto do Sargento estava ao fundo, sentado e encostado muito próximo de uma escrivania. Em cima dela, jornais e revistas antigas. Algumas fotos em porta-retratos.

- Diga olá para seus colegas titio! Vieram de Caxias só para ver se o Senhor estava bem.

Martins, por instantes pensou que se tratava de uma brincadeira. Essa ideia logo se afastou, pois não teria graça alguma a cena que ora se apresentava diante de seus olhos.

Mathias estava, como dizem no linguajar da caserna, totalmente “congelado”. Ficou branco e só passou a olhar para o seu superior hierárquico, esperando que lhe dissesse algo. Também passou pela cabeça numa fração de segundos que o que via era apenas um devaneio ou um sonho e que na verdade talvez estivesse em casa dormindo. Lembrou-se dos detalhes do início do dia, de preparar a viatura, apanhar Martins e pegarem a estrada. Não fazia sentido aquilo tudo ser um sonho.

- P-P-Por que moça?

- Por que você o mantém assim moça? Indagou Martins.

- Como assim?

- Por que o mantém nesse estado aqui embaixo Senhora?

- Porque é onde ele sempre gostou de passar o dia! É aqui que ele fica lendo seus jornais, suas revistinhas. Aqui tem tudo que ele precisa!

- Senhora... Por favor! Ele está... Ele não pode... Meu deus!! Martins não conseguia mais verbalizar.

Sentado na velha cadeira, estava um cadáver vestindo um uniforme militar de passeio devidamente limpo e com os sapatos lustrados.

Não havia mais vida naquele corpo há muito tempo. Uma figura esquelética mumificada que tão somente ostentava suas divisas e medalhas. No crânio um enorme orifício de saída na nuca.

- Ele tentou se machucar quando aquela mulher o trocou pelo colega. Mas eu cuidei bem do titio. Cuidei do seu machucado. Ele é tudo que eu tenho senhor Martins! Ele é minha família. Eu vou cuidar dele para sempre. Eu prometo.

Eu prometo Titio.

DM Silvei
Enviado por DM Silvei em 17/12/2020
Reeditado em 21/12/2020
Código do texto: T7137695
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