Purgatório

por Bruno Tavares

"Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem.”

( Marcel Proust )

Eu me balanço lentamente, nesta cadeira. Como os ponteiros de um relógio, que se movem compassados; roubando pouco a pouco, a vida de todos. O tempo é implacável. Tento anestesiar em mim tal fato, porém ninguém escapa à ação das horas.

— Vovô, vovô! — Exclama o pequeno Júlio.

— Olá meu querido. — Respondo.

Meu neto adora brincar, é a alegria da casa. Faz dois anos que não o vejo. Ainda o escuto. Não, não estou louco. É minha memória que trazem estas lembranças.

Pai! Vamos lá. Está na hora do almoço. — Diz meu filho, enquanto me tira do meu conforto e me coloca na cadeira de rodas.

Lá vou eu.

Antes eu gostava de duas rodas, mas não dessa bosta de cadeira. Eu adorava andar de moto; visitava vários lugares, conhecia pessoas e momentos incríveis. A vida é uma loucura sem sentido, entende? Se é condição ou escolha, não sei dizer.

Às vezes, criamos um sentido. Um sentido nosso. Em outro dado momento, estamos condicionados a ela.

Você é prisioneiro de sua própria mente e corpo. Procure, portanto, cuidar para que sua morada seja sempre limpa e agradável. Você não pode ir muito longe, além das fronteiras de seu corpo físico, a não ser pelo pensamento.

A mente é como uma janela, pela qual se pode enxergar além dessa limitação. Você vislumbra uma espécie de paisagem do tempo e das lembranças. Minha paisagem é vasta, longos campos de alegria e de dor e sofrimento, também. No entanto, busco olhar o verde e não o que está seco.

Sou otimista; meus amigos e família sempre disseram isso. Apesar de não ter mais tanto otimismo e um pouco só de fé, desde que minha mulher me deixou... Ela era linda e chamava-se Sofia.

Quando a conheci, eu era jovem e servia ao exército. Primeiro, me encantei por seu olhar e boca. O perfume dela parecia me convidar para uma dança. E assim o fiz. Em um baile, a chamei para dançar e a partir dali não mais nos separamos. Contudo, a vida é implacável. Leva embora até mesmo, as coisas que parecem ser eternas. Ela parecia, e como eu gostaria que fosse. Tudo se foi.

Estou em um labirinto estranho. Ouço vozes ao meu redor. Algumas delas clamam por pessoas que nunca mais irão ouvir. Gritos e às vezes, acalento. São corredores infinitos. — Já imaginou que a vida pode ser um imenso corredor? — Uma passagem ou talvez, um túnel. E à medida que vamos caminhando neste túnel, ele se torna mais frio e vazio. Comprime você de tal forma, que não dá mais para ser quem era antes.

O tempo transforma tudo em passado, a cada passo dado. Como fotos em uma estante. Algumas vezes, vejo anjos em seus uniformes azuis. Eles vêm e me dão remédios. Curam a minha alma.

De tempos em tempos me fazem dormir também. — O sono dos esquecidos. — O tempo e o relógio na parede. "Tic-Tac". Lá se vão mais alguns segundos, minutos, horas e dias de sua vida. Se bem que não sei ao certo se ainda estou vivo. — Onde estou mesmo? — Ah, que se dane!

Lá fora a luz é intensa, e as pessoas andam de um lado para o outro. Eu não conheço todos aqui. — Que droga! Por que minha juventude foi roubada? Tenho que pagar o preço do tempo, das conseqüências, por quê? — Não sei mais.

Olho para o lado tentando encontrar o meu filho, que esta me levando para o almoço, porém me dou conta que sozinho, empurro a minha cadeira de rodas. Ele não está mais aqui. Era apenas mais uma lembrança.

”Não tem problema. Logo, logo, vem um dos anjos que me ajudam”.

Chega um anjo. O nome dela é Rubi. Possui uma luz incrível, e nem lembro qual foi a última vez que me senti assim, tão iluminado e jovial.

Ela é linda, como todos os outros anjos e cheia de sua luz própria. Usam pequenos crachás, como produtos que precisam de identificação.

Falando em produtos... Hoje, temos mais acesso à tecnologia e cada vez menos à vida. Disseram que era para conectar as pessoas, porém, acredito que se criou um buraco de individualismo e artificialidade, como a mente das máquinas o é.

A liberdade e a vida são duas coisas que dinheiro nenhum compra, mas se fossem produtos seriam os mais caros. Absurdamente caros!

Pessoas morreriam por não poder comprar e muitas matariam pra ter. Infelizmente, nem sempre a engrenagem funciona de maneira natural.

E estou aqui nesse local que para mim, tem cheiro de fim da linha, você me entende? Não é bom... Não depois de ter vivido tanta coisa fantástica. Tantas recordações boas e estou aqui, no entanto. — O que fazer? Não há o que fazer. — São etapas; talvez esta seja a mais difícil. Não somos descartáveis, mas, nossa sociedade moderna não tem tempo. Por isso fui deixado aqui. Isso parece até um purgatório, mas é um asilo.

Bruno Tavares
Enviado por Bruno Tavares em 12/12/2020
Reeditado em 14/12/2020
Código do texto: T7134209
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