O colírio

Denise abriu o pacotinho pardo da farmácia e encarou o frasco contra a luz. O rótulo cobria o frasco inteiro, tornando impossível perceber quanto liquido existia. Com um estilete ela arrancou, com cuidado, um pedaço do rótulo. Pronto. Agora ela podia monitorar quanto liquido ainda existia.

Era sempre assim: ela comprava um colírio e do nada ele aparecia vazio. Em várias ocasiões ela pus a culpa no rótulo. Sem poder acompanhar o esvaziamento do colírio, ela só prestaria atenção nele em dois momento, quando ele começava a usar e quando ele acabava. Mas isso não era explicação suficiente, posto que ela poderia perceber a quantidade do liquido também pelo peso do frasco. A sensação que ela tinha é que do nada o frasco ficava vazio.

Conjecturou que ela estava deixando a embalagem destampada. O liquido devia estar evaporando. Outra pessoa usando não era, pois Denise morava sozinha. O mistério estava posto.

Religiosamente, ela checava o nível de liquido do colírio antes e após usar. Repetiu esse processo até o frasco chegar na metade. Um dia, logo após ela pingar o colírio o telefone tocou. Ela atendeu e era um ex-colega de faculdade querendo indicações de hotéis no interior do estado (Denise era do interior). Ele se alongou falando que estava organizando um Congresso, que iria receber mais de 30 especialistas em contabilidade para exportação, que se ela quisesse ir, ele conseguiria desconto no hotel e não cobraria a inscrição (aqui Denise sentiu que ele estava flertando). Ele falou também sobre o casamento que não deu certo, reclamou da ex-esposa que era muito retrógrada e que sentia saudades da mulheres loucas da faculdade (aqui Denise teve certeza que ele estava flertando). Ela se sentiu ligeiramente lisonjeada com o telefonema, passou os nomes dos hotéis que lembrava serem mais famosos e então desligou. Claro que toda essa conversa fez ela esquecer do colírio.

No dia seguinte, após algumas horas preenchendo planilhas em frente ao computador, ela sentiu os olhos arranharem. Pegou o colírio e… Não era possível. Estava no final. Examinou a tampa, a embalagem, tudo parecia normal e correto. Apenas o liquido não estava mais lá. Um colírio não é coisa cara. Pouco dinheiro compra. O que irritava Denise não era o dinheiro que se perdia, era o mistério. Afinal de contas, para onde ia o líquido? Como ele escapava do frasco?

Ela se dispôs a repetir a experiência mais uma vez. Cerca de duas semanas depois de comprar o colírio novo, houve um acidente de carro bem na hora em que Denise pingava o colírio nos olhos. O barulho fez com que ela corresse para a janela, e foram uns quinze minutos testemunhando a desgraça alheia. O troco veio no dia seguinte, quando ela pegou o frasco e viu que ele tinha esvaziado.

Ela repetiu isso cinco vezes. Sempre acontecia alguma, ela sempre se distraia, esquecia de observar o frasco e o líquido evaporava. Então desistiu. Fosse o que fosse não queria ser descoberto. Talvez o líquido do colírio tivesse propriedade quânticas que demandavam observações constantes para se fixar dentro da embalagem. Talvez houvesse na sua casa um duende com conjuntivite, um espírito com olho seco ou uma entidade maconheira. Talvez as companhias de colírio tenham desenvolvido uma tampa que se degrade com o tempo e deixe o líquido evaporar (e o fato de ela deixar de observar o frasco seria mera coincidência). Ela poderia gastar mais tempo da sua vida elaborando testes complicados e precisos para cada uma dessas hipóteses, mas honestamente, Denise tinha mais o que fazer.