Águas Sombrias - A Verdade sobre o Lago Verde - PARTE II
 
     Após vivênciar a experiência relatada no capítulo anterior, passei a ficar praticamente obcecado pela vontade de entender a lógica por trás daqueles insólitos acontecimentos. As respostas mais coerentes vieram um tempo depois, mas vou seguir a abordagem dos fatos em ordem mais ou menos cronológica.

     A primeira coisa que fiz, nos dias seguintes, foi procurar por um colega de aula do tempo do Ensino Fundamental, quando estudávamos na Escola Estadual, que ficava no prédio onde hoje funciona a Câmara de Vereadores e a Secretaria de Educação de Ilópolis. Eu não tenho mais contato com ele há muitos anos e, por isso, vou lhe dar um nome fictício neste relato: Sílvio. Pelas informações que tenho, ele foi trabalhar como pedreiro em Porto Alegre, no início dos anos 2000 e ficou morando por lá mesmo. A família dele vivia bem próximo do Lago Verde – onde está até hoje – e, por isso mesmo, sempre soube de muitas histórias estranhas supostamente acontecidas por aquelas bandas ao longo do tempo. Sílvio havia me contado várias dessas histórias quando conversávamos nos intervalos das aulas, e eu queria muito ouvi-las de novo, agora com outras possibilidades de entendimento.

     Encontrei-o algumas semanas depois, em uma sexta-feira de noite, no Bar do Fachi, mais popular ponto de encontro dos jovens de nossa faixa etária naquela época. Convidei Sílvio para tomar uma cerveja e rapidamente entramos no assunto dos “causos misteriosos” envolvendo o Lago Verde. Creio ser interessante mencionar que naquela época – final de 1998 – eu havia acabado de publicar meu primeiro livro, Odisséia nas Sombras, o que gerou certa repercussão no Município. Então, as pessoas viam como natural o meu interesse de escritor por ouvir histórias e causos diversos e relatavam o que sabiam de boa vontade, se limitando a pedir anonimato, para não se exporem e correrem o risco de virar alvo de piadas por parte daqueles que não acreditam nesse tipo de acontecimentos.

Para a minha surpresa, Sílvio tinha uma nova história que, ao contrário daquelas que me haviam sido relatadas na infância, das quais ele só tinha ouvido falar através de parentes e amigos, agora tratava-se de algo vivenciado presencialmente, bem pouco tempo atrás. Para deixar a narrativa mais fluida e facilitar a leitura, vou transcrever o relato na forma de um conto, que decidi intitular como

O Menino do Lago

     Em um sábado de noite, haveria um baile no salão da comunidade de Linha Peca, distante mais ou menos uns 5 km da cidade de Ilópolis. Sílvio e um grupo de mais três rapazes, formado por primo e amigos, estavam bebendo em um bar no centro, quando decidiram que queriam ir ao evento. Nenhum deles tinha carro, e como não arrumaram qualquer carona, optaram por ir a pé mesmo. Compraram várias latas de cerveja para beber no caminho, acreditando que a caminhada seria divertida e que, para retornar, conseguiriam que alguém os trouxesse de volta.


     Inicialmente, nenhum membro do grupo parecia ter a mínima preocupação por terem que passar pelas margens do Lago Verde no meio da noite, já que esse era o caminho mais rápido para se chegar à Linha Peca. Era lua cheia, o céu estava sem núvens e a temperatura estava bem agradável. Em tese, daria para percorrer o trajeto sem maiores dificuldades. Talvez até arrumassem uma carona no caminho, com alguém que também estivesse indo ao baile. Porém, quando passou diante da própria casa – que estava às escuras em função de toda a família já ter se recolhido – Sílvio começou a ficar apreensivo. Se lembrou das diversas vezes em que a mãe recomendou que não fossem para perto do lago à noite. Também lhe veio à mente os diversos relatos de aparições fantasmagóricas feitos por outros parentes, e nenhum deles parecia estar brincando ao tocar nesse assunto. Chegou até mesmo a pensar em propor ao grupo que desistissem da ideia, mas como sabia que não seria ouvido, preferiu ficar quieto. Cogitou sugerir aos amigos que caminhassem o mais rápido possível quando chegassem às margens do reservatório, mas ficou com vergonha porque deduziu que o acusariam de estar com medo. Então seguiu calado, com uma crescente sensação de que algo ruim viria pela frente.

     Quando chegaram próximo ao final do calçamento – na altura daquele local onde há uma espécie de piso de cimento que se prolonga da margem para dentro da água, e é utilizado como plataforma de descarga para lanchas, jet skis e similares – o grupo ouviu um longo assobio, melodioso e tétrico ao mesmo tempo, que pareceu vir do meio do lago. Imediatamente, todos pararam de rir e conversar, ficando no mais absoluto silêncio. Sílvio sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha. Olharam em direção à água e, sob a luminosidade pálida do luar, avistaram, lá no meio, um menino acenando para eles. Ficaram como que petrificados assistindo aquela cena. O menino acenava, tornava a mergulhar, sumindo nas águas escuras, para em seguida emergir de novo, emitir aquele enregelante assobio, acenar e afundar novamente na escuridão.



     Sílvio não conseguiria dizer por quanto tempo ficaram vislumbrando aquela cena fantasmagórica. Sabe apenas que sua atenção foi despertada pelo grito vindo da sua esquerda. Quando olhou naquela direção, um de seus amigos estava apontando para a margem, com expressão de desespero. Então, ficou em pânico ao perceber que seu primo estava entrando no lago, já com a água na altura do peito. Ele parecia em transe, e dava a impressão de que continuaria em frente até sumir nas profundezas, só tendo sido impedido por que o rapaz mais velho entre os membros da turma se jogou na água e rapidamente nadou até o amigo, arrastando-o para fora.

     Sílvio e o garoto que estava ao seu lado ajudaram os outros dois a sair da água. De volta à estrada, todos pareciam perfeitamente despertos e cientes de que algo muito anormal estava acontecendo. Antes mesmo que pudessem falar qualquer coisa ou cogitar o que fazer, começaram a ouvir passos de algo, ou alguma coisa, que vinha correndo pela escuridão, na direção deles. Imediatamente, se puseram a fugir de volta para a cidade, correndo e gritando estrada à fora.

     Dentro de poucos minutos, já estavam diante da casa de Sílvio, que, conforme já mencionado, ficava próxima. Só então se deram conta de que estavam faltando dois rapazes, justamente os que haviam entrado na água. Nesse momento, os familiares de Sílvio já estavam saindo de casa para ver qual era o motivo da gritaria. Sem tempo para detalhes, foi dito que algo estranho tinha acontecido no lago e dois amigos estavam desaparecidos. Rapidamente, um grupo de cinco ou seis pessoas com lanternas e facões se dirigiu ao local onde a dupla havia sido vista pela última vez.

     O primo de Sílvio estava ali mesmo, deitado no chão em posição fetal, chorando baixinho, em estado de choque. Apesar de tudo, não aparentava estar machucado. Quando questionado sobre onde estava o outro garoto, dizia apenas que alguma coisa o havia arrastado para longe. O grupo continuou procurando pela estrada, pela margem do lago e pelas encostas de mato.

     Subitamente, notaram alguém se aproximando pela estrada escura. Quando apontaram as lanternas naquela direção, viram que era o rapaz desaparecido que voltava mancando e caminhando com dificuldade. Estava ensanguentado, com a camisa esfarrapada e a calça rasgada na altura dos joelhos. Faltava-lhe o sapato no pé esquerdo. Cogitaram levá-lo ao hospital, mas depois, na claridade, viram que ele estava muito esfolado e até com alguns cortes, mas nenhuma lesão mais grave. No hospital fariam muitas perguntas e seria difícil dar alguma explicação convincente sem parecer ridículo. Por fim, decidiram tratar seus ferimentos em casa mesmo.

     Quando perguntado sobre o que havia acontecido, ele disse simplesmente que alguma coisa o agarrou e saiu lhe arrastando pela estrada, até passar pela frente da Escola EMAFA, quando finalmente foi solto. Ou seja, foi arrastado nos cascalhos por mais de 300 metros.

     A família de Sílvio repreendeu o grupo, dizendo que todos sabiam ser perigoso circular por aquela área tarde da noite. Também disseram que muita gente já tinha presenciado a aparição do Menino do Lago, um fenômeno que se repetia ocasionalmente há muitos anos. Supunham que se tratava do espírito de alguém que havia se afogado ali, em algum momento do passado. Explicaram que, um bom tempo antes da construção da Escola EMAFA, um pouco para cima daquele local, havia várias casas de famílias, inclusive de alguns parentes. Quando surgiu, na segunda metade da década de 70, a proposta da Prefeitura de remover esse pessoal para a Vila Santa Rita, a quase totalidade aceitou de bom grado, justamente por que tinham medo de sair de casa durante a noite.

     Obviamente, fiquei muito intrigado com a história do Sílvio, o que só aguçou a minha curiosidade para procurar saber mais. Pouco tempo depois, fique sabendo da versão “real” de um fato muito polêmico envolvendo um casal de “namorados”, que tinha dado o que falar na cidade, pelo menos entre os jovens. Vim a saber que, na verdade, a história não era como se contava, mas sim tinha relação com os insólitos acontecimentos do Lago Verde. Mas, esse relato farei no próximo capítulo.

     Quero concluir citando que, duas ou três semanas depois dessa conversa com o Sílvio, encontrei na rua o rapaz que teria sido arrastado em seu relato. Nos conheciamos do tempo de escola e até tinhamos jogado futebol juntos algumas vezes, então não tive receio de tocar no assunto. Quando perguntei o que havia acontecido naquele momento fatídico, ele – que tinha um sotaque carregado e costuma usar umas gírias engraçadas – ficou constrangido, mas respondeu mais ou menos assim:

     “Eu gritei: Corre, piazada, que tá vindo o diabinho encarnado! Dai aquela coisa me puxou e levei um peitaço que tá louco! Me esfolei tudo os peito e os beiço!”

     Questionei se ele não tinha conseguido ver o que era que estava lhe puxando, e a resposta foi:

     “Só vi dois zóião vermeio me oiando! Parecia que chegava sair fuísca naquela escuridão!”

     Eu disse então algo como “Que bom que pelo menos aquilo não foi para dentro da água…”, ao que ele interrompeu:

     “Tentou me arrastar para dentro da água, sim! Só que eu me agarrei numas capoeiras e depois me firmei num pinheirinho. Daí a coisa me largou.”

     Por fim, fiz a pergunta que não queria calar: “O que será que era aquela coisa?”. Ele respondeu meio sem jeito, e já foi saindo, encerrando a conversa:

     “Acho que era o demônho”.
André Bozzetto Jr
Enviado por André Bozzetto Jr em 26/11/2020
Reeditado em 27/11/2020
Código do texto: T7121334
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