Águas Sombrias - A Verdade sobre o Lago Verde
Eu e os outros dois amigos nos entreolhamos e era nítido o pavor no rosto de cada um. Sem dizer absolutamente nenhuma palavra, simplesmente nos precipitamos rapidamente em direção ao interior do carro, buscando sumir dali o mais rápido possível. Contudo, nem sequer havíamos entrado no veículo e a luz dos faróis e da lâmpada de interior apagaram subitamente. A música dos alto-falantes também cessou de repente. Mesmo assim, Leandro sentou ao volante e tentou dar partida. Nada. Nem sinal de que o carro poderia voltar a ligar. O único foco de iluminação que tínhamos naquele instante era a pequena chama de um isqueiro que Marquinhos tirou do bolso e acionou. Tudo acontecia muito rápido. Ao mesmo tempo que as vozes se aproximavam por um lado e as luzes por outro, começamos a ouvir também um novo barulho que, para mim, era ainda mais apavorante do que os demais. Era o som de galhos se partindo e mata sendo pisoteada por alguém, ou por alguma coisa que estava chegando pelas nossas costas. Era algo grande e, pelo barulho, dava a impressão que derrubaria uma árvore ao nosso redor a qualquer momento. Nesse instante, uma lufada de ar quente apagou a chama do isqueiro e mergulhamos na escuridão total. Escutei Marquinhos praguejando enquanto tentava acender novamente, mas sem sucesso.
Em meio ao pânico, alguém – provavelmente o Marquinhos – gritou “Corre, piazada!”, e foi isso o que fizemos. Corremos, imagino que cada um para um lado, destrambelhadamente em meio às trevas, tomados pelo mais completo pavor. Acredito que eu tenha tropeçado e caído no mínimo umas três ou quatro vezes. Trombei contra galhos e tronco de árvores e, enquanto me lembro disso, penso que só por um milagre não me machuquei seriamente.
Como se não bastasse todo esse terror, ainda havia espaço para um novo elemento apavorante. Enquanto corria, eu gritava pelos nomes dos meus amigos e pedia por socorro, porque estava realmente em pânico. Eles não respondiam, mas alguma outra coisa respondia. Quando eu berrava “Leandro?!”, uma voz gutural, grossa e cavernosa repetia ao meu redor: “Leandro?!”. Quando eu gritava “Marquinhos?!”, uma voz tétrica e espectral repetia: “Marquinhos?!”. Se eu dizia “Socorro!”, alguma voz medonha dizia: “Socorro!”, logo em seguida. Não tenho vergonha de admitir que comecei a chorar de medo nesse momento.
De repente, senti como se fosse uma rajada de vento quente me atingindo e não sei se caí, se acabei saltando involuntariamente de algum barranco ou se alguma outra coisa aconteceu, mas o fato é que parecia não estar mais tocando o solo por alguns instantes, como se estivesse flutuando. A impressão que eu tenho é que isso não durou mais do que alguns segundos até que me estatelei no chão, inclusive batendo a lateral da cabeça com muita força, a ponto de ficar bem zonzo, talvez no limite de perder a consciência.
Quando consegui me levantar, meio grogue, notei que tudo estava em silêncio. Avistei, não muito distante, o que parecia ser a luz de um poste de iluminação pública. Andei o mais rápido que consegui naquela direção e notei, com muito alívio, que estava saindo do bosque de pinus e entrando na Rua Augusto Tomasini. Debaixo da luz do poste, reparei que minhas mãos estavam esfoladas por ter caído nos cascalhos, as minhas calças estavam sujas de terra nos joelhos e na bunda, além de ter uma mancha úmida na altura do zíper. Provavelmente me urinei de tanto medo. Também estava com um grande “galo” entre os cabelos, acima da orelha esquerda. Fora isso, de resto parecia tudo bem.
Instintivamente, comecei a correr pelas ruas desertas de volta em direção ao centro da cidade, sem saber o que fazer. Será que os meus amigos também teriam conseguido sair dos arredores do lago? Parei diante da casa do Marquinhos, que ficava apenas poucos quarteirões distante da entrada do bosque, e vi que estava tudo escuro e silencioso. Sua família com certeza estava dormindo. Olhei para o relógio no meu pulso e levei um susto ao constar que eram 02:40 da madrugada. Como poderia ter se passado todo esse tempo? A impressão que eu tinha é que tinham transcorrido apenas alguns minutos, ou no máximo meia hora, desde que as coisas começaram a ficar estranhas no lago.
Agindo meio que sem raciocinar, caminhei até a casa do Leandro – que ficava perto da minha – e reparei que lá também estava tudo escuro e silencioso. O carro não estava estacionado no lugar de costume, no pátio da frente. O que fazer então? Acordar as famílias e contar a verdade? Julguei que ninguém iria acreditar. Achariam que eu estava bêbado ou drogado. Além disso, tive medo da possível reação dos pais se soubessem que nosso plano era ir ao bordel. Chamar a polícia? Sem chance. A polícia não gostava da nossa turma porque, além de ficarmos até tarde pelas ruas aos finais de semana, atitude classificada como “de marginais”, ainda usávamos camisetas de bandas de rock, alguns tinham cabelos compridos e brincos, o que servia perfeitamente ao estereótipo de “maconheiros” com o qual algumas pessoas gostavam de nos rotular.
Sem saber o que fazer, acabei não fazendo nada e fui para casa. Entrei silenciosamente para não correr o risco de acordar alguém e coloquei minha calça diretamente dentro da máquina de lavar roupa, para diminuir a chance de a minha mãe perguntar o porquê do estado em que ela se encontrava.
Não sei se por exaustão, esgotamento ou qualquer outro motivo, tive a impressão de que peguei no sono tão logo deitei a cabeça no travesseiro. Tive o sono agitado por sonhos estranhos dos quais não me recordo direito. Lembro apenas de uma parte, onde estava diante do Lago Verde, ao entardecer. O céu estava escuro, como se uma tempestade se aproximasse. Então, várias pessoas, com roupas de diferentes épocas começaram a sair da água e andar na minha direção. Entre elas, havia um velho de aparência indígena que dizia “Eu avisei que ninguém deveria vir aqui nestes dias! Eu avisei!”. Então fui acordado pela minha mãe, dizendo que o Leandro estava me esperando na sala. Lá fora o sol já estava alto e sua luminosidade entrava pelas frestas da janela.
Enquanto me vestia, escutei a voz do Leandro conversando com o meu irmão sobre alguma trivialidade qualquer, o que me tranquilizou. Fui ao banheiro e depois entrei na sala como se tudo estivesse dentro da normalidade. Leandro, como se nada tivesse acontecido na noite anterior, disse que iria até a comunidade de Linha Gramadinho buscar algumas coisas para sua mãe e passou para ver se eu gostaria de lhe fazer companhia. Respondi que sim e imediatamente fomos saindo. Nesse momento vi a minha calça no varal e me senti aliviado. Minha mãe não devia ter percebido nada.
Embarcamos no carro do pai do Leandro, mas ao invés de irmos para Gramadinho, fomos diretamente para a casa do Marquinhos. Uma quadra antes da sua residência, o avistamos na calçada, caminhando afobadamente. Ele estava justamente indo nos procurar. Então, nós três nos dirigimos até o bar do Fachi, que estava vazio aquela hora da manhã. Pedimos uma Coca-cola de dois litros e nos sentamos em uma mesa no canto. Era hora de tentarmos entender o que havia acontecido na noite anterior.
Contei a minha versão e eles ouviram tudo atentamente. Pareciam espantados, mas não exatamente surpresos, pois viveram situações parecidas. O segundo a fazer seu relato foi o Leandro. Ele disse que quando começou a correr no escuro, também gritou pelos nossos nomes, mas não nos ouviu respondendo em momento algum. Também não escutou nenhuma vez a nossas vozes chamando por ele. Marquinhos confirmou a mesma coisa. Todos nós estávamos chamado uns aos outros, mas não nos ouvíamos.
Leandro contou que, tentando correr na direção contrária ao horrendo barulho de mata sendo despedaçada, acabou indo parar na estrada do outro lado do bosque, bem na hora em que vinha passando um carro. Ele fez sinal para que parasse, e ficou feliz ao ver que seus ocupantes eram conhecidos. Tratavam-se de quatro garotos de nossa idade, que frequentaram a escola conosco durante anos e moravam na comunidade de Linha Borges. Eles estavam muito bêbados, rindo e gritando dentro do carro, empolgadíssimos para ir ao bordel. Com certa dificuldade, Leandro tentou disfarçar o pavor e disse que seu carro havia tido uma pane e que, ao procurar ajuda no escuro, acabou se perdendo dos demais amigos. Com muito esforço, convenceu o alucinado quarteto a lhe dar uma carona de volta ao seu veículo.
No curto trajeto, nada de anormal foi observado. Leandro sentou novamente ao volante e, ao dar partida, dessa vez o carro ligou normalmente. Ao verem o veículo funcionando, os garotos da Linha Borges partiram fazendo grande estardalhaço sem nem lhe perguntar se ele precisa de mais alguma coisa, fissurados que estavam da ideia de irem para a zona. Leandro então saiu de lá dirigindo atentamente, em busca de algum sinal de Marquinhos ou de mim. Obviamente, não nos avistou. Então, fez a mesma coisa que eu fizera anteriormente, passou na frente da casa do Marquinhos e da minha, onde viu tudo escuro e silencioso. Também chegou à mesma conclusão que eu: tentar ir para a cama e dormir. Um detalhe interessante é que ele disse que passava um pouco da meia-noite quando chegou em casa. Então, parece que esse insólito evento tem algo a ver com lapsos de tempo.
Em seguida, foi a vez de Marquinhos contar sua história e ela foi a mais rápida e estranha de todas. Ele disse que estava correndo pela mata quando sentiu “como se fosse um vento quente” que o envolveu no momento em que caiu e começou a rolar pela encosta de um barranco. Então apagou. Quando acordou, o sol já estava começando a raiar. Ele estava sentindo uma tremenda dor de cabeça, como se estivesse com uma grande ressaca, e percebeu que havia sangue ressecado ao redor do seu nariz. Mas agora vem a parte mais espantosa: ele não estava nas margens do lago ou no meio do bosque, como seria de se imaginar, mas sim, no centro da cidade. No local onde hoje há o prédio da Unidade de Saúde de Ilópolis, nos anos 90 tinha outro bem menor, que também funcionava como Posto de Saúde, e na entrada do terreno havia um gramado com uma árvore perto da calçada. Foi ali que ele acordou. Então partiu rapidamente para casa – que ficava apenas um quarteirão de distância – com receio de que alguém pudesse vê-lo ali, deitado na grama, e o acusasse de estar bêbado ou drogado. Sem conseguir dormir, ficou andando de um lado para o outro do quarto, até os seus pais acordarem e ele poder sair, fingindo que havia passado a noite em casa.
Nenhum de nós tinha qualquer teoria sobre o que havia acontecido. Ao longo dos anos, quando voltávamos a tocar no assunto, surgiam várias, mas, naquela manhã ensolarada de sábado, apenas estávamos felizes por estarmos vivos e saudáveis, e também por nossos pais não terem descoberto nada. Combinamos de guardar segredo, pois, em uma cidadezinha onde todo mundo se conhece, não queríamos virar motivo de chacota, uma vez que ninguém iria acreditar em nós.
Com o tempo, eu descumpri o combinado e contei essa história para algumas pessoas – poucas, é verdade. Apesar do mal-estar por não ter mantido a palavra empenhada com meus amigos, por outro lado isso acabou sendo extremamente útil por dois motivos: em primeiro lugar, serviu para eu ver que muita gente poderia sim ter acreditado em nosso relato, pelo simples fato de que casos semelhantes já aconteceram com várias pessoas, como vim a ficar sabendo. Em segundo lugar, acabei encontrando os indivíduos certos para me ajudar a entender o que havia acontecido conosco naquela noite e também com tantos outros ao longo dos anos, pois o assunto já era “investigado” há muito tempo, embora sempre de forma extremamente confidencial e por um número muito restrito de conhecedores. Foi o que eu soube através deles que, pela primeira vez, irei relatar em seguida.
Não começarei essa história pelo início, mas sim pelo meio. É estranho, eu sei, mas esse relato será cheio de fatos estranhos e misteriosos, então é bom se acostumar. Vou iniciar por este ponto porque assim ficará fácil ao leitor entender o motivo de meu interesse pelo assunto e o porquê de eu estar falando sobre isso apenas agora, mais de vinte anos depois do incrível acontecimento que irei narrar.
Primeiro, me deixe falar rapidamente sobre o lugar. Ilópolis, “A Cidade da Erva-mate”, é um pequeno município de pouco mais de 4.000 habitantes, localizado na parte menos famosa da serra gaúcha, mais especificamente na Encosta Superior Nordeste do Planalto Meridional do Rio Grande do Sul, parte alta do Vale do Taquari. A grande maioria da população é composta por descendentes de italianos que chegaram à região no início do século XX, atraídos pela oportunidade de extração madeireira proporcionada pela enorme floresta de araucárias que ali existia e, com o passar das décadas, adotou a exploração da erva-mate como o foco principal de sua atividade econômica.
Entre os vários atrativos turísticos do município – que não iremos detalhar por não ser do objetivo deste texto – com certeza ocupa lugar de destaque o Lago Verde, um inspirador espelho d’água de 178.000 metros quadrados, rodeados de mata nativa, com grande concentração de araucárias, entrecortada por frondosos bosques de pinus. O lago é, na verdade, um reservatório artificial, construído no início da década 1940 para represar a água que alimentaria uma pequena usina hidrelétrica construída nas imediações com o objetivo de fornecer energia ao povoado, bem antes de ele ser emancipado. No início dos anos 80, a usina foi desativada, e a partir de então a barragem continuou existindo como um cartão postal apto a várias atividades de lazer e recreação, como pesca, natação, canoagem e outros esportes aquáticos, além de um local agradável e convidativo para passeios, caminhadas, piqueniques e acampamentos. Pelo menos esta é a versão oficial. Como irei relatar nas próximas páginas, a história real é bem mais obscura, e as pouquíssimas pessoas ainda vivas que conhecem a verdade não gostam de tocar no assunto e se recusam a revelar o que sabem, mas eu irei contar.
Assim como qualquer ilopolitano da minha geração, ou de gerações anteriores à minha, cresci ouvindo “histórias de assombração” sobre o Lago Verde. Este nome, inclusive, começou a se popularizar a partir da década de 1990, quando Ilópolis passou a ganhar alguma notoriedade em nível nacional por seu potencial ecoturístico, alardeado em programas de TV e publicações especializadas. Antes desse momento, o povo costumava a se referir ao local apenas como “A Barragem”. E do que tratavam os causos sobrenaturais relacionados à Barragem? Um pouco de tudo, mas lembro que os mais populares faziam menção à aparições de fantasmas, supostos espíritos de pessoas que teriam morrido afogadas nas águas escuras do lago em diferentes épocas, e que na calada da noite emergiam da escuridão para assombrar algum transeunte incauto. Também ouvi, por diversas vezes, menções a almas penadas de pessoas que haviam sido sepultadas em um antigo cemitério que foi demolido e removido no início dos anos 90 para a construção da Escola EMAFA, localizada em uma pequena elevação às margens do reservatório. Eu lembro muito bem desse cemitério. Ele ficava onde hoje está o Monumento à Agricultura, na pequena área calçada ao lado da escola. Tinha uma aparência realmente tétrica, com poucas sepulturas e lápides em meio a uma vegetação rasteira, que passava uma impressão de esquecimento e abandono. Não é difícil acreditar que tal visão despertasse nos transeuntes de imaginação mais fértil a sensação de cenário de filme de terror, com direito a fantasmas macabros perambulando à noite entre os túmulos em ruínas. Mas isso seria tudo? Não. Com certeza, havia mais. Porém, só fui descobrir posteriormente, pois quando se é criança, fica praticamente impossível distinguir fatos insólitos pautados na realidade de fantasias inventadas apenas para amedrontar meninos desobedientes. Para mim, as respostas começaram a aparecer em 1998. Vou começar a descrição dos fatos em um novo subtítulo, que chamarei de
Aquilo que espreita na escuridão
Eu tinha 17 anos e estudava fora. Voltava para Ilópolis aos finais de semana e, nessas circunstâncias, o que mais gostava de fazer era me reunir com outros caras da minha idade para tomar cerveja, bater papo, jogar sinuca pelos bares da cidade e depois ir para algum baile na expectativa de ficar com alguma garota. Simples assim. Era a década de 90, em um lugar minúsculo do interior gaúcho, sem internet, sem celular e com o senso comum bem menos politicamente correto do que nos dias atuais.
Há basicamente duas formas de se chegar ao Lago Verde. Uma delas é seguindo até o final a Rua Conselheiro José Bozzetto, que atravessa o centro da cidade e segue pavimentada até às imediações da Escola EMAFA. A outra é pela bem menos movimentada Rua Augusto Tomasini, que termina em um considerável declive de estrada de terra e mergulha em um denso bosque de pinus, já nas cercanias do lago. Em uma parte mais retirada deste bosque, haviam construído recentemente um prostíbulo que estava dando o que falar. Naquela sexta-feira em questão, Leandro, Marquinhos e eu havíamos combinado que iríamos “conhecer a zona” que tanto atiçava a curiosidade – ainda que fosse uma curiosidade bizarra – da maioria, senão de todos, os jovens da cidade.
Logicamente, não tínhamos qualquer pretensão de “fazer programa” com as prostitutas, mas sim dar uma olhada no ambiente, que alguns amigos já haviam adiantado se tratar de uma espelunca de quinta categoria. Todo mundo sabe que cerveja de zona custa uma fortuna e, como mal tínhamos dinheiro, decidimos comprar umas latas de cerveja em um bar qualquer e beber nas margens do lago, para só depois seguirmos até o bordel ali próximo.
O Leandro era o único que já tinha carteira de habilitação, e o pai dele lhe emprestava o carro para dar umas voltas aos finais de semana. Foi assim que chegamos até o bosque de pinus. Estacionamos entre as árvores, bem de frente para as águas do lago. Leandro deixou os faróis ligados com luz baixa e também acionou a lâmpada no interior do veículo. Pelos alto-falantes ouvíamos as músicas de uma fita K7 do Iron Maiden, nossa banda favorita. Estava uma temperatura agradável, quase calor, algo bem incomum se tratando das noites ilopolitanas, o que nos estimulou a ficar ao ar livre de bom grado, recostados no capô do carro. Devia ser por volta de 23 horas e conversávamos sobre um assunto qualquer, provavelmente garotas. Fazia bem pouco tempo que havíamos chegado, ainda estávamos na primeira lata de cerveja, quando as coisas começaram a ficar estranhas. Até aqui eu me lembro de tudo perfeitamente.
Primeiro foi uma sensação esquisita. Parecia que o ar havia ficado mais parado, pesado, fazendo sentir até uma certa dificuldade em respirar. Ao mesmo tempo, tive uma espécie de calafrio e começou a crescer dentro de mim uma sensação de desconforto – de medo, para falar a verdade – e isso parecia aumentar a cada segundo. Nem tive tempo de comentar sobre isso com os outros rapazes, porque nesse momento começaram as luzes. Pareciam faróis de carros se aproximando pela estrada e iluminando de forma estranha os troncos das árvores. Só que não havia nenhum barulho de carro e os fachos de luz não se aproximavam na horizontal, como se fossem, de fato, faróis, mas sim de forma ondulatória, como se subissem até o topo das árvores e descessem novamente. Olhei para os rostos dos meus amigos e reparei que eles observavam as luzes com expressões que não pareciam denotar exatamente medo, mas sim estranhamento, como se não entendessem o que estava acontecendo. O medo para valer tomou conta de todos alguns segundos depois, quando começaram as vozes.
Primeiro, me deixe falar rapidamente sobre o lugar. Ilópolis, “A Cidade da Erva-mate”, é um pequeno município de pouco mais de 4.000 habitantes, localizado na parte menos famosa da serra gaúcha, mais especificamente na Encosta Superior Nordeste do Planalto Meridional do Rio Grande do Sul, parte alta do Vale do Taquari. A grande maioria da população é composta por descendentes de italianos que chegaram à região no início do século XX, atraídos pela oportunidade de extração madeireira proporcionada pela enorme floresta de araucárias que ali existia e, com o passar das décadas, adotou a exploração da erva-mate como o foco principal de sua atividade econômica.
Entre os vários atrativos turísticos do município – que não iremos detalhar por não ser do objetivo deste texto – com certeza ocupa lugar de destaque o Lago Verde, um inspirador espelho d’água de 178.000 metros quadrados, rodeados de mata nativa, com grande concentração de araucárias, entrecortada por frondosos bosques de pinus. O lago é, na verdade, um reservatório artificial, construído no início da década 1940 para represar a água que alimentaria uma pequena usina hidrelétrica construída nas imediações com o objetivo de fornecer energia ao povoado, bem antes de ele ser emancipado. No início dos anos 80, a usina foi desativada, e a partir de então a barragem continuou existindo como um cartão postal apto a várias atividades de lazer e recreação, como pesca, natação, canoagem e outros esportes aquáticos, além de um local agradável e convidativo para passeios, caminhadas, piqueniques e acampamentos. Pelo menos esta é a versão oficial. Como irei relatar nas próximas páginas, a história real é bem mais obscura, e as pouquíssimas pessoas ainda vivas que conhecem a verdade não gostam de tocar no assunto e se recusam a revelar o que sabem, mas eu irei contar.
Assim como qualquer ilopolitano da minha geração, ou de gerações anteriores à minha, cresci ouvindo “histórias de assombração” sobre o Lago Verde. Este nome, inclusive, começou a se popularizar a partir da década de 1990, quando Ilópolis passou a ganhar alguma notoriedade em nível nacional por seu potencial ecoturístico, alardeado em programas de TV e publicações especializadas. Antes desse momento, o povo costumava a se referir ao local apenas como “A Barragem”. E do que tratavam os causos sobrenaturais relacionados à Barragem? Um pouco de tudo, mas lembro que os mais populares faziam menção à aparições de fantasmas, supostos espíritos de pessoas que teriam morrido afogadas nas águas escuras do lago em diferentes épocas, e que na calada da noite emergiam da escuridão para assombrar algum transeunte incauto. Também ouvi, por diversas vezes, menções a almas penadas de pessoas que haviam sido sepultadas em um antigo cemitério que foi demolido e removido no início dos anos 90 para a construção da Escola EMAFA, localizada em uma pequena elevação às margens do reservatório. Eu lembro muito bem desse cemitério. Ele ficava onde hoje está o Monumento à Agricultura, na pequena área calçada ao lado da escola. Tinha uma aparência realmente tétrica, com poucas sepulturas e lápides em meio a uma vegetação rasteira, que passava uma impressão de esquecimento e abandono. Não é difícil acreditar que tal visão despertasse nos transeuntes de imaginação mais fértil a sensação de cenário de filme de terror, com direito a fantasmas macabros perambulando à noite entre os túmulos em ruínas. Mas isso seria tudo? Não. Com certeza, havia mais. Porém, só fui descobrir posteriormente, pois quando se é criança, fica praticamente impossível distinguir fatos insólitos pautados na realidade de fantasias inventadas apenas para amedrontar meninos desobedientes. Para mim, as respostas começaram a aparecer em 1998. Vou começar a descrição dos fatos em um novo subtítulo, que chamarei de
Aquilo que espreita na escuridão
Eu tinha 17 anos e estudava fora. Voltava para Ilópolis aos finais de semana e, nessas circunstâncias, o que mais gostava de fazer era me reunir com outros caras da minha idade para tomar cerveja, bater papo, jogar sinuca pelos bares da cidade e depois ir para algum baile na expectativa de ficar com alguma garota. Simples assim. Era a década de 90, em um lugar minúsculo do interior gaúcho, sem internet, sem celular e com o senso comum bem menos politicamente correto do que nos dias atuais.
Há basicamente duas formas de se chegar ao Lago Verde. Uma delas é seguindo até o final a Rua Conselheiro José Bozzetto, que atravessa o centro da cidade e segue pavimentada até às imediações da Escola EMAFA. A outra é pela bem menos movimentada Rua Augusto Tomasini, que termina em um considerável declive de estrada de terra e mergulha em um denso bosque de pinus, já nas cercanias do lago. Em uma parte mais retirada deste bosque, haviam construído recentemente um prostíbulo que estava dando o que falar. Naquela sexta-feira em questão, Leandro, Marquinhos e eu havíamos combinado que iríamos “conhecer a zona” que tanto atiçava a curiosidade – ainda que fosse uma curiosidade bizarra – da maioria, senão de todos, os jovens da cidade.
Logicamente, não tínhamos qualquer pretensão de “fazer programa” com as prostitutas, mas sim dar uma olhada no ambiente, que alguns amigos já haviam adiantado se tratar de uma espelunca de quinta categoria. Todo mundo sabe que cerveja de zona custa uma fortuna e, como mal tínhamos dinheiro, decidimos comprar umas latas de cerveja em um bar qualquer e beber nas margens do lago, para só depois seguirmos até o bordel ali próximo.
O Leandro era o único que já tinha carteira de habilitação, e o pai dele lhe emprestava o carro para dar umas voltas aos finais de semana. Foi assim que chegamos até o bosque de pinus. Estacionamos entre as árvores, bem de frente para as águas do lago. Leandro deixou os faróis ligados com luz baixa e também acionou a lâmpada no interior do veículo. Pelos alto-falantes ouvíamos as músicas de uma fita K7 do Iron Maiden, nossa banda favorita. Estava uma temperatura agradável, quase calor, algo bem incomum se tratando das noites ilopolitanas, o que nos estimulou a ficar ao ar livre de bom grado, recostados no capô do carro. Devia ser por volta de 23 horas e conversávamos sobre um assunto qualquer, provavelmente garotas. Fazia bem pouco tempo que havíamos chegado, ainda estávamos na primeira lata de cerveja, quando as coisas começaram a ficar estranhas. Até aqui eu me lembro de tudo perfeitamente.
Primeiro foi uma sensação esquisita. Parecia que o ar havia ficado mais parado, pesado, fazendo sentir até uma certa dificuldade em respirar. Ao mesmo tempo, tive uma espécie de calafrio e começou a crescer dentro de mim uma sensação de desconforto – de medo, para falar a verdade – e isso parecia aumentar a cada segundo. Nem tive tempo de comentar sobre isso com os outros rapazes, porque nesse momento começaram as luzes. Pareciam faróis de carros se aproximando pela estrada e iluminando de forma estranha os troncos das árvores. Só que não havia nenhum barulho de carro e os fachos de luz não se aproximavam na horizontal, como se fossem, de fato, faróis, mas sim de forma ondulatória, como se subissem até o topo das árvores e descessem novamente. Olhei para os rostos dos meus amigos e reparei que eles observavam as luzes com expressões que não pareciam denotar exatamente medo, mas sim estranhamento, como se não entendessem o que estava acontecendo. O medo para valer tomou conta de todos alguns segundos depois, quando começaram as vozes.
No começo era um som confuso, que não dava para distinguir claramente. Chegou a me passar pela cabeça que poderiam ser as vozes de pessoas conversando na outra margem do lago, apesar de ser uma distância muito grande para isso ser possível. Porém, logo ficou óbvio que não poderia ser esse o caso, pelo simples fato de que as vozes estavam se aproximando! Se aproximando por cima, ou por dentro do lago! Era como se fosse um turbilhão de vozes, algumas femininas, outras masculinas, falando todas ao mesmo tempo, umas parecendo rir, outras chorar. Não duvido que ali no meio estivessem sendo pronunciadas palavras em algum idioma primitivo e desconhecido, enquanto começaram a ganhar destaque os gritos. Sim, gritos estridentes, horríveis que me faziam gelar o sangue e suar frio. E estavam chegando mais perto.
Eu e os outros dois amigos nos entreolhamos e era nítido o pavor no rosto de cada um. Sem dizer absolutamente nenhuma palavra, simplesmente nos precipitamos rapidamente em direção ao interior do carro, buscando sumir dali o mais rápido possível. Contudo, nem sequer havíamos entrado no veículo e a luz dos faróis e da lâmpada de interior apagaram subitamente. A música dos alto-falantes também cessou de repente. Mesmo assim, Leandro sentou ao volante e tentou dar partida. Nada. Nem sinal de que o carro poderia voltar a ligar. O único foco de iluminação que tínhamos naquele instante era a pequena chama de um isqueiro que Marquinhos tirou do bolso e acionou. Tudo acontecia muito rápido. Ao mesmo tempo que as vozes se aproximavam por um lado e as luzes por outro, começamos a ouvir também um novo barulho que, para mim, era ainda mais apavorante do que os demais. Era o som de galhos se partindo e mata sendo pisoteada por alguém, ou por alguma coisa que estava chegando pelas nossas costas. Era algo grande e, pelo barulho, dava a impressão que derrubaria uma árvore ao nosso redor a qualquer momento. Nesse instante, uma lufada de ar quente apagou a chama do isqueiro e mergulhamos na escuridão total. Escutei Marquinhos praguejando enquanto tentava acender novamente, mas sem sucesso.
Em meio ao pânico, alguém – provavelmente o Marquinhos – gritou “Corre, piazada!”, e foi isso o que fizemos. Corremos, imagino que cada um para um lado, destrambelhadamente em meio às trevas, tomados pelo mais completo pavor. Acredito que eu tenha tropeçado e caído no mínimo umas três ou quatro vezes. Trombei contra galhos e tronco de árvores e, enquanto me lembro disso, penso que só por um milagre não me machuquei seriamente.
Como se não bastasse todo esse terror, ainda havia espaço para um novo elemento apavorante. Enquanto corria, eu gritava pelos nomes dos meus amigos e pedia por socorro, porque estava realmente em pânico. Eles não respondiam, mas alguma outra coisa respondia. Quando eu berrava “Leandro?!”, uma voz gutural, grossa e cavernosa repetia ao meu redor: “Leandro?!”. Quando eu gritava “Marquinhos?!”, uma voz tétrica e espectral repetia: “Marquinhos?!”. Se eu dizia “Socorro!”, alguma voz medonha dizia: “Socorro!”, logo em seguida. Não tenho vergonha de admitir que comecei a chorar de medo nesse momento.
De repente, senti como se fosse uma rajada de vento quente me atingindo e não sei se caí, se acabei saltando involuntariamente de algum barranco ou se alguma outra coisa aconteceu, mas o fato é que parecia não estar mais tocando o solo por alguns instantes, como se estivesse flutuando. A impressão que eu tenho é que isso não durou mais do que alguns segundos até que me estatelei no chão, inclusive batendo a lateral da cabeça com muita força, a ponto de ficar bem zonzo, talvez no limite de perder a consciência.
Quando consegui me levantar, meio grogue, notei que tudo estava em silêncio. Avistei, não muito distante, o que parecia ser a luz de um poste de iluminação pública. Andei o mais rápido que consegui naquela direção e notei, com muito alívio, que estava saindo do bosque de pinus e entrando na Rua Augusto Tomasini. Debaixo da luz do poste, reparei que minhas mãos estavam esfoladas por ter caído nos cascalhos, as minhas calças estavam sujas de terra nos joelhos e na bunda, além de ter uma mancha úmida na altura do zíper. Provavelmente me urinei de tanto medo. Também estava com um grande “galo” entre os cabelos, acima da orelha esquerda. Fora isso, de resto parecia tudo bem.
Instintivamente, comecei a correr pelas ruas desertas de volta em direção ao centro da cidade, sem saber o que fazer. Será que os meus amigos também teriam conseguido sair dos arredores do lago? Parei diante da casa do Marquinhos, que ficava apenas poucos quarteirões distante da entrada do bosque, e vi que estava tudo escuro e silencioso. Sua família com certeza estava dormindo. Olhei para o relógio no meu pulso e levei um susto ao constar que eram 02:40 da madrugada. Como poderia ter se passado todo esse tempo? A impressão que eu tinha é que tinham transcorrido apenas alguns minutos, ou no máximo meia hora, desde que as coisas começaram a ficar estranhas no lago.
Agindo meio que sem raciocinar, caminhei até a casa do Leandro – que ficava perto da minha – e reparei que lá também estava tudo escuro e silencioso. O carro não estava estacionado no lugar de costume, no pátio da frente. O que fazer então? Acordar as famílias e contar a verdade? Julguei que ninguém iria acreditar. Achariam que eu estava bêbado ou drogado. Além disso, tive medo da possível reação dos pais se soubessem que nosso plano era ir ao bordel. Chamar a polícia? Sem chance. A polícia não gostava da nossa turma porque, além de ficarmos até tarde pelas ruas aos finais de semana, atitude classificada como “de marginais”, ainda usávamos camisetas de bandas de rock, alguns tinham cabelos compridos e brincos, o que servia perfeitamente ao estereótipo de “maconheiros” com o qual algumas pessoas gostavam de nos rotular.
Sem saber o que fazer, acabei não fazendo nada e fui para casa. Entrei silenciosamente para não correr o risco de acordar alguém e coloquei minha calça diretamente dentro da máquina de lavar roupa, para diminuir a chance de a minha mãe perguntar o porquê do estado em que ela se encontrava.
Não sei se por exaustão, esgotamento ou qualquer outro motivo, tive a impressão de que peguei no sono tão logo deitei a cabeça no travesseiro. Tive o sono agitado por sonhos estranhos dos quais não me recordo direito. Lembro apenas de uma parte, onde estava diante do Lago Verde, ao entardecer. O céu estava escuro, como se uma tempestade se aproximasse. Então, várias pessoas, com roupas de diferentes épocas começaram a sair da água e andar na minha direção. Entre elas, havia um velho de aparência indígena que dizia “Eu avisei que ninguém deveria vir aqui nestes dias! Eu avisei!”. Então fui acordado pela minha mãe, dizendo que o Leandro estava me esperando na sala. Lá fora o sol já estava alto e sua luminosidade entrava pelas frestas da janela.
Enquanto me vestia, escutei a voz do Leandro conversando com o meu irmão sobre alguma trivialidade qualquer, o que me tranquilizou. Fui ao banheiro e depois entrei na sala como se tudo estivesse dentro da normalidade. Leandro, como se nada tivesse acontecido na noite anterior, disse que iria até a comunidade de Linha Gramadinho buscar algumas coisas para sua mãe e passou para ver se eu gostaria de lhe fazer companhia. Respondi que sim e imediatamente fomos saindo. Nesse momento vi a minha calça no varal e me senti aliviado. Minha mãe não devia ter percebido nada.
Embarcamos no carro do pai do Leandro, mas ao invés de irmos para Gramadinho, fomos diretamente para a casa do Marquinhos. Uma quadra antes da sua residência, o avistamos na calçada, caminhando afobadamente. Ele estava justamente indo nos procurar. Então, nós três nos dirigimos até o bar do Fachi, que estava vazio aquela hora da manhã. Pedimos uma Coca-cola de dois litros e nos sentamos em uma mesa no canto. Era hora de tentarmos entender o que havia acontecido na noite anterior.
Contei a minha versão e eles ouviram tudo atentamente. Pareciam espantados, mas não exatamente surpresos, pois viveram situações parecidas. O segundo a fazer seu relato foi o Leandro. Ele disse que quando começou a correr no escuro, também gritou pelos nossos nomes, mas não nos ouviu respondendo em momento algum. Também não escutou nenhuma vez a nossas vozes chamando por ele. Marquinhos confirmou a mesma coisa. Todos nós estávamos chamado uns aos outros, mas não nos ouvíamos.
Leandro contou que, tentando correr na direção contrária ao horrendo barulho de mata sendo despedaçada, acabou indo parar na estrada do outro lado do bosque, bem na hora em que vinha passando um carro. Ele fez sinal para que parasse, e ficou feliz ao ver que seus ocupantes eram conhecidos. Tratavam-se de quatro garotos de nossa idade, que frequentaram a escola conosco durante anos e moravam na comunidade de Linha Borges. Eles estavam muito bêbados, rindo e gritando dentro do carro, empolgadíssimos para ir ao bordel. Com certa dificuldade, Leandro tentou disfarçar o pavor e disse que seu carro havia tido uma pane e que, ao procurar ajuda no escuro, acabou se perdendo dos demais amigos. Com muito esforço, convenceu o alucinado quarteto a lhe dar uma carona de volta ao seu veículo.
No curto trajeto, nada de anormal foi observado. Leandro sentou novamente ao volante e, ao dar partida, dessa vez o carro ligou normalmente. Ao verem o veículo funcionando, os garotos da Linha Borges partiram fazendo grande estardalhaço sem nem lhe perguntar se ele precisa de mais alguma coisa, fissurados que estavam da ideia de irem para a zona. Leandro então saiu de lá dirigindo atentamente, em busca de algum sinal de Marquinhos ou de mim. Obviamente, não nos avistou. Então, fez a mesma coisa que eu fizera anteriormente, passou na frente da casa do Marquinhos e da minha, onde viu tudo escuro e silencioso. Também chegou à mesma conclusão que eu: tentar ir para a cama e dormir. Um detalhe interessante é que ele disse que passava um pouco da meia-noite quando chegou em casa. Então, parece que esse insólito evento tem algo a ver com lapsos de tempo.
Em seguida, foi a vez de Marquinhos contar sua história e ela foi a mais rápida e estranha de todas. Ele disse que estava correndo pela mata quando sentiu “como se fosse um vento quente” que o envolveu no momento em que caiu e começou a rolar pela encosta de um barranco. Então apagou. Quando acordou, o sol já estava começando a raiar. Ele estava sentindo uma tremenda dor de cabeça, como se estivesse com uma grande ressaca, e percebeu que havia sangue ressecado ao redor do seu nariz. Mas agora vem a parte mais espantosa: ele não estava nas margens do lago ou no meio do bosque, como seria de se imaginar, mas sim, no centro da cidade. No local onde hoje há o prédio da Unidade de Saúde de Ilópolis, nos anos 90 tinha outro bem menor, que também funcionava como Posto de Saúde, e na entrada do terreno havia um gramado com uma árvore perto da calçada. Foi ali que ele acordou. Então partiu rapidamente para casa – que ficava apenas um quarteirão de distância – com receio de que alguém pudesse vê-lo ali, deitado na grama, e o acusasse de estar bêbado ou drogado. Sem conseguir dormir, ficou andando de um lado para o outro do quarto, até os seus pais acordarem e ele poder sair, fingindo que havia passado a noite em casa.
Nenhum de nós tinha qualquer teoria sobre o que havia acontecido. Ao longo dos anos, quando voltávamos a tocar no assunto, surgiam várias, mas, naquela manhã ensolarada de sábado, apenas estávamos felizes por estarmos vivos e saudáveis, e também por nossos pais não terem descoberto nada. Combinamos de guardar segredo, pois, em uma cidadezinha onde todo mundo se conhece, não queríamos virar motivo de chacota, uma vez que ninguém iria acreditar em nós.
Com o tempo, eu descumpri o combinado e contei essa história para algumas pessoas – poucas, é verdade. Apesar do mal-estar por não ter mantido a palavra empenhada com meus amigos, por outro lado isso acabou sendo extremamente útil por dois motivos: em primeiro lugar, serviu para eu ver que muita gente poderia sim ter acreditado em nosso relato, pelo simples fato de que casos semelhantes já aconteceram com várias pessoas, como vim a ficar sabendo. Em segundo lugar, acabei encontrando os indivíduos certos para me ajudar a entender o que havia acontecido conosco naquela noite e também com tantos outros ao longo dos anos, pois o assunto já era “investigado” há muito tempo, embora sempre de forma extremamente confidencial e por um número muito restrito de conhecedores. Foi o que eu soube através deles que, pela primeira vez, irei relatar em seguida.