316 - Solidão
Recebia muita correspondência misturada com a publicidade dos supermercados e os pedacinhos de papel onde alguém, a troco do que se não sabia, desentupiria tudo e consertaria o que avariasse, em teoria, era bom de ver. Depois de separar os papéis, eliminava a maior parte deles e nunca abria, na presença de ninguém, a carta. Duas vezes por semana chegavam envelopes com formatos diferentes, uns com perfume e, um ou outro, com o sobrescrito sem selo sinal de ter sido depositado, pessoalmente, na caixa do correio. Metia tudo numa pasta e respondia no café ou, em dias de frio e chuva, no quarto a que chamavam pomposamente escritório mas que também servia para a Cristina vestir a roupa da faxina e guardar os detergentes. Acantonava-se ali na beira da secretária e respondia. Demorava pouco umas vezes e alongava-se outras até que o chamassem para o almoço. Todos tinham vontade de saber quem tanto lhe escrevia mas, como Agostinho era viúvo, ninguém ousou perguntar nada. Na verdade, também não havia quem, olhando o velho, achasse normal um romance, uma amizade tão constante ou negócios tão frequentes. Lida, a correspondência desaparecia no fundo do cofre que havia, incrustado na parece, sob a estampa de uma santa lacrimosa de que não faziam questão de saber o nome e que ficava sempre de banda depois do Senhor Agostinho fechar tudo e sair. Sentindo-se doente, incapaz de sair da cama, deixaram de chegar as cartas e, quando a sua saúde piorou, ele disse ao filho mais velho que abrisse o cofre e as destruísse sem ler. E o rapaz, curioso embora, jurou cumprir à risca o que o pai pedia, cortou-as uma a uma com a tesoura da cozinha. A trabalheira que deu colar os bocadinhos dos puzzles para adivinhar a história de amor que Agostinho a si mesmo inventara!